O embuste populista
Introdução
O termo “populismo” é bastante conhecido por estas bandas da América Latina. Nossa história está repleta de líderes carismáticos que movimentaram as massas com maestria: Juan Perón e os Kirchner, na Argentina; Getúlio Vargas e Lula, no Brasil; Jiménez, Chaves e Maduro, na Venezuela; os seguidos presidentes do PRI e Obrador, no México; Rafael Correa, no Equador…
Porém, parece que o populismo se repaginou, ganhou força e resolveu se aventurar ao redor do mundo. Trump seria um populista, pois manipulou os eleitores do rust belt, ressentidos pela globalização. Marine Le Pen é vista como uma populista de extrema-direita que consolidou seu capital político focado na xenofobia. Aqui no Brasil, Bolsonaro seria um populista que surfou as ondas do lavajatismo e do antipetismo.
O termo populista não seria um adjetivo pejorativo usado somente contra aquele político com cuja ideologia eu não concordo? Ao contrário, se me identifico com a visão de mundo dele, ele não seria, na verdade, um grande líder popular?
Em O embuste populista, livro publicado pela LMV e prefaciado por Ricardo Vélez Rodríguez, os autores Gloria Álvarez e Axel Kaiser investigam esse fenômeno e nos oferecem um panorama mais completo.
Populismo não tem lado
Segundo o professor Ricardo Vélez Rodríguez, “o populismo foi analisado por diversos autores, a maioria deles de esquerda, como uma característica de muitos governos ‘de direita’ latino-americanos; contudo, após o colapso do bloco soviético, foi o meio de sobrevivência ou o caminho para a tomada de poder das esquerdas, como é possível constatar nos exemplos de Cuba, da Venezuela, do Brasil, da Argentina, do Chile e do Peru, dentre outros”.
Ao estudar detidamente o assunto, podemos constatar que o populismo não está preso à dicotomia esquerda versus direita, assim como não é uma característica exclusiva de nosso continente — nem mesmo do Ocidente.
Na definição do cientista político francês Pierre-André Taguieff, o populismo oscila entre extremos: ora no autoritarismo, ora no hiper-democratismo, pode ser conservador ou progressista. Para Taguieff, o populismo “não poderia ser considerado nem como uma ideologia política, nem como um tipo de regime, mas como um estilo político, alicerçado no recurso sistemático à retórica de apelo ao povo e à posta em marcha de um modelo de legitimação de tipo carismático, o mais adequado para valorizar a mudança”.
Esse estilo político é caracterizado por cinco obsessões que moldam a mentalidade populista: 1) idolatria ao estado; 2) discurso vitimista; 3) paranoia antiliberal; 4) pretensão democrática; e 5) obsessão igualitária. Por outro lado, ainda permite uma grande margem de manobra na ação política, deixando o líder livre para imprimir a sua marca pessoal.
Por que o populismo está de volta?
As principais causas apontadas para o ressurgimento do populismo no mundo são: a globalização (que teria causado a perda de postos de trabalho), o neoliberalismo (cuja sanha privatista e fiscalista teria prejudicado o povo latino-americano), a “democratização” dos países islâmicos (na qual ascenderam líderes carismáticos), a independência dos países africanos (ainda marcados pelo tribalismo), a desaceleração econômica recente dos EUA e a crise da democracia (cujos representantes eleitos não representariam o povo).
Segundo Vélez Rodríguez, esse populismo repaginado no século XXI — ou o que ele chamou de neopopulismo — possui as seguintes características:
- Encarna a figura do salvador do povo; e o povo seria uma entidade dotada de unidade que lhe confere identidade, em face das elites ou contra elas.
- O líder trabalha em causa própria, mas com um discurso de que seria pela causa popular; ele se apresenta como porta-voz do povo. A busca do contato direto com as massas tem o objetivo de manipular sua imaginação e suas necessidades.
- O líder explora o ressentimento das massas contra as elites. Em seus discursos, ele denuncia aqueles que seriam os responsáveis pelos males do país e oferece a solução da vontade soberana do povo.
- Sedução. O populista utiliza-se da mídia e pesquisas de opinião para mostrar-se merecedor de confiança. “Confiem em mim e eu os protegerei.”
- Contestação. O neopopulismo emerge como uma alternativa à crise de representatividade da democracia, a qual mostra-se incapaz de atender aos interesses da sociedade.
- Ação direta. O líder apela para um vínculo direto dele com o povo, sem a intermediação das instituições. A internet mostra-se um ótimo canal de comunicação desse tipo.
- Semelhança popular. O governo só é legítimo se tiver a cara e a alma do povão. As antigas elites são desprezadas porque não representam a massa. Os populistas europeus, por exemplo, denunciam que Bruxelas não retrata a cara dos eleitores de cada país.
- Ampla fenotipia. Os populismos políticos são tão elásticos que podem se apresentar como compatíveis com qualquer ideologia (comunismo, socialdemocracia, fascismo, nacionalismo, liberalismo etc). O populismo agrário idealiza o povo-camponês (como os red neck norte-americanos); já o populismo cultural busca representar as massas por meio das expressões artísticas.
- Prevalece uma sistemática de denúncia dos males sociais, os quais seriam infligidos pelas elites. O populista se vale das comunicações periódicas para revelar escândalos contra os de cima. Historicamente, essas comunicações se davam por meio de uma imprensa populista; hoje, as lives semanais na internet podem cumprir essa missão.
- Feição antipolítica. O populismo se vende como contra a política. “O nosso partido é o único ético” ou “serei contra o establishment”. O líder populista visa a se afastar das instituições políticas a fim de preservar seu prestígio pessoal junto ao povo (um apelo de pureza e virtude). Qualquer liderança que ofusque a sua presença deve ser afastada do seu entorno. Aliada ao personalismo, a feição antipolítica conduz o povo a concluir que só a revolução resolve.
- Existem fortes ressentimentos nas massas em face das dificuldades vividas por elas. O antiamericanismo, o antissionismo, a antiglobalização, o anticapitalismo, são alguns dos sentimentos a serem capitalizados politicamente pelos populistas.
- É expresso nas estatizações de empresas, na politização de agências reguladoras, no protecionismo econômico e nas restrições das imigrações, sempre com a retórica de ser para o “bem do povo”.
A consequência nefasta do populismo
Restringindo essa questão à América Latina, cuja tradição patrimonialista facilita que o líder populista se aproprie da máquina pública, a história nos mostra que há invariavelmente, o fortalecimento do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário.
No caso brasileiro em particular, o atual desenho constitucional não permite essa hipertrofia do Executivo; ao contrário, torna-o refém de um Congresso ingovernável — devido à fragmentação partidária — e de um STF irrefreável — natural à “Lei de Ferro da Oligarquia”. Foi na tentativa de escapar dessa armadilha que o governo do ex-presidente Lula gestou um golpe à democracia representativa comprando votos no Congresso — no que ficou conhecido como “mensalão”.
De toda forma — seja o Executivo extrapolando seu poder ou desvirtuando a democracia — , as consequências inescapáveis do populismo são o conflito institucional e a convulsão social.
Ao contrário de quem defende que a solução para esse fenômeno é o fortalecimento das instituições democráticas, eu acredito que a democracia está fadada ao fracasso. O populismo nada mais é que uma consequência natural do sistema democrático.
Como podemos escapar populismo?
Gloria Álvarez e Axel Kaiser propõem que os países da América Latina abracem as ideias da liberdade anglo-saxônicas e adotem reformas liberais em seus governos. Os autores argumentam que a França da década de 60 — país essencialmente socialista — e o Portugal da década passada — sob um governo socialista — adotaram políticas fiscais austeras e reformas econômicas “de direita”, observando um forte crescimento socioeconômico logo em seguida.
A estratégia seria a de construir um novo senso comum, atacar os dogmas e crenças preconcebidas para incutir valores que favoreçam a liberdade. A batalha deveria ser travada na Academia, nos editoriais, na cultura pop, no empresariado, enfim, a batalha cultural deveria permear toda a sociedade.
Ainda segundo aqueles autores, dever-se-ia adotar uma tática de alcançar os sentimentos do indivíduo. Não basta a mensagem ser a correta, ela deve ser atraente. O ideal socialista fala ao coração; uma utopia igualitária não é racional, mas é sedutora. Como eu costumo dizer: em vez de defender privatizações utilizando-se de frias teorias econômicas, a mensagem deveria ser de que uma estatal pode ser administrada pelo mesmo político que já faliu uma lojinha de 1,99 no passado.
No final, a solução já é conhecida por quem defende a liberdade: respeito à propriedade privada, prevalência do indivíduo sobre o coletivo, a ampla divulgação de ideias e a persistente busca por sistemas de autogoverno cada vez melhores.