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O CNJ e sua mordaça aos togados rebeldes

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No redemoinho de rumorosas práticas de censura, ativismo e fomento à impunidade que têm se multiplicado no Judiciário, em particular nas cortes superiores, certos fatos maquiados de irrelevância passam convenientemente despercebidos pelo crivo da grande mídia, sendo banalizados, aos olhos do grande público leigo, como meros atos de rotina dos tribunais. Foi o que se passou com o recente provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgado pela imprensa como proibição a juízes de se manifestarem “contrariamente ao sistema eleitoral, gerando infundada desconfiança sobre o pleito”, com a louvável finalidade de conter “a escalada da intolerância ideológica e de atos violentos com motivação político-partidária.[1]”. Contudo, o alinhamento de magistrados em torno do projeto de construção de um “ambiente pacífico e saudável”, como consta no preâmbulo da deliberação em questão, não passa de eufemismo para mordaça.

Antes de abordar o tema em si, vale tecer alguns comentários sobre as origens e as funções do CNJ, que, prometo a você, caro leitor paciente, não serem enfadonhos, mas bastante úteis para a visualização, em toda a sua dimensão, da distorção ora tratada. Concebido por juristas da envergadura do meu mestre Joaquim Falcão, o CNJ foi criado pela Emenda Constitucional 45/2004 para exercer o controle externo do Judiciário, inclusive do STF, onde, segundo declarações do próprio Falcão em evento solene, “apenas 8% das ações estão relacionadas ao controle da constitucionalidade”, e “80% das decisões são monocráticas, o que, para mim, é inconstitucional[2]”.

Não à toa, o CNJ foi investido, tanto pela Constituição Federal[3] quanto pelo seu Regimento Interno[4], das atribuições de controlar a atuação do Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais de juízes, seja apreciando reclamações, levando ao conhecimento do Ministério Público eventuais abusos de magistrados, seja até zelando pela regularidade de atos administrativos praticados nos juízos. Trata-se de um órgão de fiscalização, responsável, enquanto tal, por verificar o cumprimento das normas do país pelos magistrados, e não por inovar, criando regras de conduta para estes.

Assim, foi espantoso deparar com o Provimento 135 do último dia 2 de setembro[5] que, a pretexto de supostamente pacificar um país de ânimos tensionados, impõe aos juízes obrigações de fazer algumas coisas, e de não fazer outras tantas. Em primeiro lugar, cidadãos só podem ser forçados a fazer ou a deixar de fazer algo por força de lei, ou seja, de normas emanadas do Legislativo, e não por determinações administrativas de um órgão fiscalizador como o CNJ.

No caso específico dos magistrados, a Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN)[6], que rege seus deveres funcionais, apenas os proíbe de manifestarem opiniões sobre processos examinados por eles, ou sobre deliberações de outros órgãos judiciais, o que está bem distante do amplo escopo das vedações do CNJ, debatidas em maiores detalhes abaixo. Portanto, qualquer modificação no rol de deveres dos togados implicaria necessariamente uma revisão da LOMAN pelo Parlamento, o que não ocorreu, deixando escancarada, logo no primeiro relance, a irregularidade formal do provimento em questão.

Quanto ao teor das proibições, chama a atenção, logo em seu artigo 2º, o dever atribuído pelo CNJ aos magistrados, até mesmo àqueles não atuantes no âmbito das eleições, de “estimular a confiança social acerca da idoneidade e credibilidade do processo eleitoral brasileiro”. Ora, e se, por quaisquer razões de foro íntimo, o togado não confiar em tamanha lisura? Terá de contrariar sua convicção e agir como longa manus do CNJ, apenas para atender aos desejos deste?

Outro tópico a ser destacado em letras garrafais reside na redação ambígua do artigo 3º, inciso II, que proíbe a vinculação da imagem de magistrados, até mesmo em seu âmbito pessoal, a veículos, sites ou canais que “sabidamente colaborem para a deterioração da credibilidade dos sistemas judicial e eleitoral brasileiros. Nesse item, admito minha curiosidade aguda sobre a extensão do advérbio “sabidamente”, que deixa em aberto o alcance do que “é sabido ou não”, e, sobretudo, de quem decide a fronteira entre a mera suspeita de “complôs” contra as ilibadas instituições pátrias e a “notoriedade” dos ditos “propósitos golpistas”. Aliás, a conferir um sentido literal a essa determinação, os magistrados teriam de cortar vínculos com quaisquer canais da própria cúpula togada, que tem sido o principal elemento gerador de insegurança jurídica e descrédito do Judiciário, como discutido amiúde a partir dos casos concretos abordados neste espaço.

Ainda mais pitoresca é a determinação do artigo 9º, parágrafo 1º, dirigida aos tribunais país afora para que estes criem juízos criminais específicos para o julgamento do que o Provimento designa como “crimes por atos de violência político-partidária”, a saber, condutas motivadas por “questões políticas”, “intolerância ideológica” e “inconformismo direcionado a valores e instituições”. Ora, conheço os crimes de homicídio, roubo, furto, estelionato, estupro, crimes contra a propriedade industrial, e tantos outros cujos verbos descrevem as condutas delituosas praticadas contra a vida, a propriedade, a integridade física e diversos interesses bem caracterizados pela legislação penal. Contudo, admito minha ignorância acerca desses “novicrimes” orwellianos, desprovidos de verbos definidores, e que, de tão amplos, são capazes de abarcar algumas réplicas do Maracanã. Talvez tamanho desconhecimento de minha parte seja devido a falhas na minha formação jurídica e na de meus mestres…

Em entrevista concedida há poucos anos ao site Migalhas[7], a jurista Eliana Calmon, ex-ministra do STJ e ex-corregedora do CNJ, escancarou sua indignação diante do acobertamento explícito, inclusive no âmbito do Conselho, de abusos de togados que, embora merecessem punição severa, foram cuidadosamente varridos para baixo do tapete. Calmon, segundo a qual “é muito difícil punir juiz”, relata que, durante suas investigações financeiras sobre desembargadores, “quase foi crucificada”. Eram magistrados que se recusavam a apresentar suas declarações de rendimentos e que, se porventura o fizessem, se esmeravam em narrativas novelescas para justificar patrimônios incompatíveis com sua renda declarada. “Ora, o que não se explica no patrimônio vem de onde? Caiu do céu”, exclama Calmon em sua perplexidade, manietada por um sistema que, na prática, inviabiliza a punição à corrupção dos poderosos de colarinho engomado.

E assim foi ruindo o sonho, nutrido por Falcão e outros notáveis, de controle eficaz do Judiciário por meio do CNJ, cujo último provimento acaba de converter um órgão originalmente fiscalizador em inquisidor da manifestação de ideias, e até dos relacionamentos interpessoais mantidos pelos magistrados. Enquanto a corrupção grossa encontra terreno fértil para frutificar, as liberdades se esvanecem a passos largos no país das distorções. Resta formular a pergunta quase sempre trazida ao final dos nossos artigos: será mesmo que nossa sociedade seguirá passiva diante de sua redução gradual a essa perversa espécie de “servidão legalizada”? Quem viver verá.

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/09/cnj-proibe-publicacoes-de-juizes-nas-redes-sociais-contra-o-sistema-eleitoral.shtml

[2] https://iabnacional.org.br/noticias/joaquim-falcao-e-homenageado-no-plenario-historico-com-a-medalha-levi-carneiro

[3] Artigo 103-B da CF

[4] https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/124

[5] https://static.poder360.com.br/2022/09/provimento-cnj-eleicoes-2-set-2022.pdf

[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp35.htm

[7] https://www.youtube.com/watch?v=Ya1VdnrqG8E

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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