O Capitalismo é o Sistema Social mais equitativo (I)
O suposto aumento extraordinário das desigualdades se não for um fenômeno intrinsecamente associado ao capitalismo de livre mercado, é disto uma consequência inquestionável. As desigualdades sociais teriam atingido, desta forma, seu ápice com o aperfeiçoamento das instituições da liberdade, com o advento do regime capitalista e ascensão da sociedade de mercado. Eis então o primeiro elemento compondo a retórica das desigualdades. Este texto tem por objetivo alicerçar a análise das desigualdades e sua suposta associação ao capitalismo de livre mercado através do levantamento de algumas questões institucionais, e desigualdades institucionalizadas.
n.b.: por fazer apelo a diversas citações, muitas em francês, tomei a liberdade de traduzir improvisadamente algumas e disponibilizar a tradução no final do texto, após as notas pessoais e referências.
Introdução
Ao falar em desigualdades institucionalizadas, ou desigualdades oriundas de um quadro normativo particular, procuro fazer alusão à diferença de tratamento perante a lei, da dissociação ou distinção da pena segundo status, à exclusão ou constrangimento do direito natural à liberdade, à determinação da justiça em função do status, aos privilégios de grupo, raça, origem ou credo, que adquirem via decreto normativo caráter explícito, incontornável e inamovível. Faço alusão à idéia de equidade (æquitas, para os romanos), ao princípio de isonomia(ἰσονομία, para os gregos), ou simplesmente igualdade perante a lei: princípios caros, em particular, aos liberais.
Estas noções estão, em alguma escala, diretamente associadas à idéia de soberania individual, ao ideal de império da lei, de estado democrático de direito e democracia liberal. Ou seja, princípios garantindo que os indivíduos são julgados principalmente segundo seus atos e não segundo seu status pelo monopólio normativo promovido dentro do estado de direito. As desigualdades institucionais podem ser concebidas como desigualdades ex lege, isto quer dizer, como uma limitação importante da extensão da liberdade associativa e política, ou a concessão a priori de privilégios legais e diferenças em matéria de tratamento a determinados grupos. Consequentemente, a exclusão ou limitação da liberdade que termina por cercear discriminatoriamente os objetivos, decisões e ações empreendidas por indivíduos naturalmente iguais – no sentido de igualdade em direito natural à liberdade –, e em decorrência, a deturpação da noção de justiça – dar a cada um o que lhe é devido, punir o criminoso de acordo com seu crime –, e a corrupção da lei natural e generalização da imoralidade, visto que corrompe completamente qualquer possibilidade de identificação do mérito e da virtude.
Estas desigualdades não são alheias e nem deixam de ter impacto sobre as desigualdades materiais. Poderíamos citar, como exemplos ilustrativos, as consequências materiais engendradas pelo regime de escravidão, ou pelos privilégios legais conferidos à nobreza ou a uma classe política durante boa parte da Antiguidade, da Idade Média e Moderna, ou a falta de liberdade associativa e liberdade política dos regimes totalitários contemporâneos – que muitas vezes transformavam automaticamente opositores dos regimes em criminosos de estado, quando não os submetiam à escravidão ou à pena de morte –, ou ainda, a todos os impedimentos regulamentários conferindo privilégios legais (ou mesmo materiais) como o protecionismo, as barreiras à entrada nos mercados ou sistemas de cotas em função de religião, raça, ou nível de renda. A ideia que será desenvolvida aqui é que a equidade no sentido mais puro do termo – igualdade perante a lei, ausência de privilégios legais – foi desenvolvido e aprimorado durante o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, e que é então desta sorte um traço indissociável do capitalismo além de fundamental para o seu funcionamento.