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“Menos Marx, mais Mises”: um trabalho de referência

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O livro Menos Marx, mais Mises – O liberalismo e a nova direita no Brasil, de autoria da cientista política Camila Rocha e recentemente lançado pela editora Todavia, adapta e expande a tese de doutorado premiada pela Associação Brasileira de Ciência Política. A autora, nossa amiga, jamais escondeu sua visão de esquerda. Ao contrário do que por vezes se verifica, porém, isso não comprometeu a extrema seriedade da pesquisa por ela empreendida.

O objetivo da autora foi compreender a trajetória dos think tanks dedicados a divulgar as ideias do liberalismo de autores como Hayek e Mises no Brasil – razão por que seu ponto de partida, inevitavelmente, seria o nosso Instituto Liberal, fundado em 1983 – e, principalmente, a partir daí, compreender a emergência da geração contemporânea que se ergueu contra o pacto da Nova República e recebeu a alcunha de “nova direita”.

Trata-se do primeiro esforço genuíno no sentido de cumprir o papel de registrar fidedignamente o que se passou nos últimos anos. O trabalho sintetiza informações preciosas sobre a história dos institutos liberais desde Donald Stewart Jr. e sobre os bastidores do capítulo atual, do qual participamos. O detalhe que destaco é que a investigação de Camila se iniciou quando ela decidiu se aventurar a uma pesquisa de campo em 2015, batendo à porta do escritório do Instituto Liberal, à época presidido por Bernardo Santoro, sem imaginar como uma presença ideologicamente estranha seria recebida.

As primeiras páginas, tanto da pesquisa quanto da tese, registram com sensibilidade e generosidade sua experiência ao adentrar o ambiente do edifício Rex, na rua Álvaro Alvim, 37, quinto andar, porta 518, onde, na época, eu e os demais colegas do instituto trabalhávamos. Não há como evitar um envolvimento emocional e nostálgico com a abordagem adotada, de vez que não é todo dia que você vê basicamente o início da sua trajetória profissional ser imortalizado nas páginas de uma pesquisa acadêmica.

Entre nós, em um esforço sincero de empatia, respeito e compreensão, Camila, sem modificar suas próprias concepções políticas, vivenciou um período “extremamente agradável do ponto de vista pessoal” e afirma ter se tornado “muito mais democrática e aberta à reflexão genuína diante de opiniões divergentes”.  A introdução descreve com riqueza de detalhes o local onde trabalhávamos e como vivíamos cada momento de nossa experiência de atuar profissionalmente defendendo aquilo em que acreditávamos.

A partir de sua passagem pelo instituto, Camila iniciou uma série de entrevistas com militantes, ativistas, intelectuais e lideranças políticas a fim de mapear o fenômeno que se estava processando no país. Em meu livro Guia Bibliográfico da Nova Direita, que em breve terá edição ampliada e reformulada (praticamente um novo livro), trabalho basicamente com o mesmo conceito de “Nova Direita” que Camila diagnosticou em sua investigação. A diferença é que minha abordagem foi apresentar, através de resenhas de livros, assumindo a visão de um insider, alguns dos principais marcos de ideias e referências bibliográficas que moldaram os discursos existentes no seio desse novo fenômeno sociopolítico. Ao contrário, Camila fez, como outsider, um profundo mapeamento antropológico da dinâmica de pessoas e movimentos que concretizaram o fenômeno, fazendo de Menos Marx, mais Mises uma inequívoca obra de referência para a posteridade. Não há exagero em afirmar que o livro de Camila será um pilar para a construção da memória histórica do ciclo teórico-político contemporâneo.

As semelhanças de entendimento ficam claras enumerando algumas conclusões a que Camila alude em seu texto. Em primeiro lugar, ela admite que a “Nova Direita” tem por característica fundamental a disposição por se assumir como “de direita”, ou, no mínimo, como adepta de uma estrutura discursiva que tem por alvo geral o “pacto democrático progressista baseado em uma nova Constituição, que ficou conhecida como Constituição Cidadã” – o que eu apresentaria, em outras palavras, como uma espécie de consenso mínimo social democrata de fundo para a discussão e o fazer político no período que sucede ao regime militar.

Sua afirmação é a de que aquilo que chamamos de “Nova Direita” efetivamente surgiu nos anos 2000 “a partir de uma reação ao pacto de 1988 e suas consequências sociais e institucionais, cujo desenvolvimento ao longo do tempo foi percebido como a consolidação de uma ‘hegemonia cultural esquerdista’”. A percepção de uma ampla predominância da esquerda e da necessidade de assumir um pacote teórico-propositivo avesso a essa predominância é tratada como o marco fundante dessa geração, de maneira similar ao entendimento que adoto em meu próprio livro.

Com o cuidado de respeitar o fato de que os termos são sujeitos a polissemias e de que as autodeclarações são objeto constante de discussão, a autora precisou adotar algumas convenções vocabulares. Alguns de nossos confrades podem não apreciar as opções feitas, mas exorto a que procurem compreender essa dificuldade e reconheçam, ao menos, que a autora as conceitua com bastante propriedade. É assim que ela expõe o “ordoliberalismo” alemão como uma corrente que “considera que o funcionamento do mercado é imperfeito e que o Estado deve atuar para corrigir suas falhas”, a despeito de ter sido a escola liberal, registro, que reergueu a Alemanha no pós-guerra e inspirou as forças mais liberais da antiga UDN no Brasil; o “neoliberalismo” como a visão liberal encampada por Friedrich Hayek de que a crise de 29 foi causada por um excesso de intervenção estatal, bem como uma corrente que ainda admite “que o Estado possua um papel ativo como promotor do livre mercado”, criando “um aparato jurídico-legal” com esse propósito, e englobando, na convenção utilizada por Camila, também a Escola de Chicago e a Escola da Escolha Pública de Virgínia; e, finalmente, um grupo até então menos popular no Brasil, que engloba os chamados libertários e objetivistas, os defensores das ideias de Ludwig von Mises ou Ayn Rand, os anarcocapitalistas ou minarquistas, que defendem versões ainda mais reduzidas de Estado, ou mesmo a sua extinção.

Uma grande novidade da “Nova Direita” é a popularização deste último grupo entre boa parte de sua militância, influenciada marcadamente por versões mais privatistas da Escola Austríaca do que a visão hayekiana (embora eu, pessoalmente, pertença aos “ramos” da Nova Direita que ainda têm maior simpatia por esta última, isto é, pelo que Camila chama de “neoliberalismo”). A visão do mestre de Hayek, Mises, defensor de um Estado menor que o sustentado por seu discípulo, por exemplo, inspira o slogan “Menos Marx, mais Mises” constante do título do livro. Camila designa, em conjunto, o libertarianismo, o Objetivismo e o anarcocapitalismo sob o rótulo de “ultraliberalismo”, expressão que ela toma emprestada do presidente do Instituto Mises Brasil, Helio Beltrão. Novamente, embora eu não empregue este último termo em minha abordagem, é mais um entendimento básico que também expresso em meu Guia Bibliográfico.

Depois de discutir os conceitos iniciais no capítulo “O que há de novo na nova direita?”, Camila traça um histórico, em “A direita tradicional: Hayek e o combate ao comunismo”, das primeiras divulgações da obra hayekiana no Brasil, curiosamente mobilizadas por um dissidente da organização tradicionalista católica Tradição, Família e Propriedade, o empresário Adolpho Lindenberg. Sintetizando a difusão de suas teses nos círculos do entorno do economista Eugênio Gudin, Camila reconstrói com riqueza de detalhes a trajetória do liberalismo econômico a partir dos anos 70, de Henry Maksoud e sua revista Visão aos institutos liberais surgidos na esteira do pioneirismo de Donald Stewart Jr.

O capítulo “A nova direita: Mises e o combate à hegemonia esquerdista” detalha o tópico central do livro. Em minuciosa narrativa, a autora relata como, sobretudo a partir de 2006, sob a influência das pregações de Olavo de Carvalho e o trabalho de institutos que difundiam a Escola Austríaca – mais uma vez, apontamentos similares aos que registro em meu próprio trabalho -, grupos se formaram na rede social Orkut, descontentes com o poderio do lulopetismo e desejosos de “furar” o bloqueio ideológico-discursivo de esquerda que acreditavam sofrer em meios tradicionais como a universidade ou o trabalho, dando início a uma vasta gama de interações que produziram o complexo que chamamos de “Nova Direita”. Subsidiariamente, ela analisa a ascensão de Jair Bolsonaro e a imbricação que se dá entre a “Nova Direita” e o bolsonarismo.

No entanto, conclui Camila em suas “Considerações finais”, “o bolsonarismo compreende um fenômeno político diferente da nova direita, mesmo que ambos coincidam no desejo de romper com o pacto de 1988. Afinal, ainda que o bolsonarismo tenha se nutrido de ideias, de quadros e da mesma política do choque na esfera pública que caracterizou as atividades da nova direita, especialmente em suas origens, também foi capaz de manter sua independência ideológica e política”. Estou, como testemunha, totalmente de acordo; os fatos atestam que a “Nova Direita” é anterior à ascensão de Bolsonaro como candidato viável à presidência e não se limita a um líder político ou se confunde com o governo atual. Sua agenda e seus princípios precisam ser enfatizados, para além de personalismos circunstanciais, se liberais e conservadores desejarem o fomento de um futuro promissor.

Toda essa história foi montada na pesquisa de Camila, em engenhosa arquitetura, através de entrevistas com nomes como o próprio Lindenbergh, Alex Catharino, Antonio Paim, Arthur Chagas Diniz, Fábio Ostermann, Cibele Bastos, Joel Pinheiro da Fonseca, José Stelle, José Carlos Sepúlveda, Luan Sperandio, Márcia Xavier de Brito, Marcus Boeira, Paulo Batista, Rodrigo Constantino, Winston Ling e outros, entre eles este que vos escreve.

O fato de um liberal conservador e uma social-democrata chegarem a conclusões bastante similares sobre um mesmo fenômeno ou um grupo social sugere que se está verificando, na mais mínima das hipóteses, uma razoável aproximação da verdade. Isso apenas reforça minha recomendação para que adquiram a pesquisa de Camila – uma homenagem à honestidade intelectual, à tolerância e à civilidade que seria de bom tom ver inspirando os futuros pesquisadores da academia brasileira.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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