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Manifesto pela aplicação da Lei

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LEONARDO CORRÊA *

“É preciso que os homens bons respeitem as leis más, para que os homens maus respeitem as leis boas.” – Sócrates

O objeto do presente artigo está, nos dias de hoje, um tanto quanto fora de moda – ou, como diriam alguns, démodé. Num universo editorial de teses, livros, artigos e comentários sobre a constitucionalização do direito privado, nos quais, em muitas ocasiões, se defende a aplicação imediata de dispositivos abertos, fluidos e inespecíficos nas relações privadas, pode soar quixotesca a tentativa de defesa da Lei (ordinária). Mas, quando a consciência geral acadêmica começa a caminhar num mesmo sentido, é momento de se lembrar de outras correntes. A reflexão áspera, nessas ocasiões, pode ser útil para criticar o que é avanço aos olhos de muitos, mas, para alguns, não passa de um retrocesso retumbante.

A ordem do dia é bradar com grandiloquência indignada a palavra “justiça” somada ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, como panaceia geral para a solução de todos os conflitos de interesses. E ai de quem ousar argumentar contra as teses mais calorosas. O poder místico que a palavra somada ao princípio ganhou, praticamente impede o debate dialético-racional.

Nesse ambiente de sectarismo, a lei ordinária – aquela que deve ser clara e específica para que as pessoas saibam o que podem ou não fazer – foi jogada a escanteio. Ora, de que vale um artigo do Código Civil em face da “Justiça” e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana? Ao olhar de alguns, quase nada.

O problema por trás disso tudo é que cada jurista tem o seu próprio conceito de justiça e de dignidade da pessoa humana. Alguns são capazes, inclusive, de escrever centenas de laudas sobre cada um deles. Muitas vezes, pode-se ler e reler esse tipo de trabalho e ficar sem saber o que o autor deles pretende. Parece até técnica de desinformação, a abundância de argumentos e exemplos só se presta a dificultar a análise do encadeamento lógico da tese, para que o leitor, absolutamente entorpecido com a virtuose do autor, aquiesça com a conclusão sem questionar, nem, muito menos, pensar.

A verdade nua e crua é que todas essas teses traduzem-se em uma ruptura nas estruturas evolutivo-históricas do direito. A situação lembra o delírio machadiano, quando Braz Cubas em seu leito de morte vê a história do ser humano passar por seus olhos até o começo dos tempos, chegando ao encontro com a “Natureza ou Pandora”, para, ao final, inerme e paralisado, suplicar ao algoz: “vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere‑me; a coisa é divertida, mas digere‑me”.

Está-se vivendo um delírio jurídico. Essa aplicação imediata de conceitos fluidos é, na realidade, o retorno à justiça salomônica, quando o julgador “age apenas guiado pela sua sabedoria para dar uma norma de composição que ele retira da própria descrição do caso que lhe é apresentado”[1]. Consoante a advertência de San Tiago Dantas “no comando individual, meramente autoritário, encontra-se então esta característica fundamental do seu particularismo: ela é particular no caso, ele não conheceu nenhuma norma preestabelecida, ele se dirige às próprias pessoas que estão em jogo, ela parte de alguém a quem se reconhece autoridade por um tipo qualquer de investidura”[2].

Essa forma de solução de conflitos está nos primórdios do direito e o seu principal defeito, do ponto de vista estritamente técnico, é que nela não há previsibilidade para a sociedade. Ninguém sabe, previamente, o que pode ou não fazer. Fora a questão estritamente técnica, esse sistema carece de legitimidade – na concepção que a entendemos no estado democrático de direito. Ora, a legitimidade da justiça salomônica está na figura do rei, não em um consenso social, e o risco de tirania nestes casos é praticamente absoluto, Thomas Hobbes não nos deixa mentir…

Uma das maiores evoluções do direito no sentido do fim da opressão e da tirania de um só homem foi a positivação das normas jurídicas. Positivada, a norma torna-se universal, aplicável a toda sociedade. Nesse contexto, para saber o que se pode ou não fazer basta, grosso modo, a leitura dos textos legais. Há, portanto, previsibilidade nesse sistema gerando segurança jurídica aos jurisdicionados.

Outra vantagem da norma positivada clara é que ela delimita o campo de ação do julgador. Para decidir a favor desta ou daquela parte o magistrado tem de aplicar a Lei a partir da hermenêutica. A solução para o conflito de interesses, portanto, deve ser extraída do ordenamento que é conhecido por todos.

Veja-se bem, não se quer dizer com isso que nesse sistema o juiz é um mero autômato acorrentado e tolhido pelo ordenamento jurídico. Há liberdade criativa na interpretação e aplicação da Lei. Entretanto, essa liberdade está limitada às regras concebidas pelos representantes da sociedade que atuam no Poder Legislativo, gostemos ou não deles – aliás, se não gostamos, devemos aprender a votar.

No final das contas, a legitimidade das decisões emanadas do Poder Judiciário está na própria sociedade que elegeu livremente os seus representantes para criar as normas que devem ser observadas por todos, inclusive, e sobretudo, os próprios magistrados. Sobre esse ponto a nossa Constituição dispõe, expressamente, em seu artigo 1º: “todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Com o devido respeito, é inadmissível que se faculte a escolha de aplicar ou não a Lei. Critérios sentimentais ou dispositivos abertos, fluidos e imprecisos não são aptos para justificar a não aplicação de uma Lei específica. Os conflitos de interesse postos perante o Poder Judiciário devem ser resolvidos com base nas regras em vigor para toda a sociedade, e nunca nos sentimentos (de pena, misericórdia, ou o que quer que seja) que o julgador nutra por uma das partes, pois, se assim proceder, a lide torna-se um jogo de dados, um lance de sorte.  Neste estado de coisas, ninguém mais sabe como cumprir as leis diante de lotéricas decisões judiciais.

Aparentemente, tudo isso é fruto de uma compreensão míope do direito. Inculca-se essa idéia (abstrata) de justiça, e todos se esquecem que o direito deve, dentre outras coisas, trazer segurança às relações jurídicas. Assim como outras, a lição de San Tiago Dantas esvaece no tempo…: “Muita gente diz que a finalidade do direito é produzir a justiça, mas tão importante é a produção de justiça como a produção da segurança e numerosos institutos e normas jurídicas não compreenderíamos se a única finalidade do direito fosse fazer justiça. É que ele quer fazer justiça, mas quer fazer também segurança” [3].

Essa tensão, entre justiça e segurança, deve ser objeto de toda e qualquer meditação sobre a aplicação da Lei. Sem ela corremos sérios riscos de sermos parciais, passionais, precipitados e autoritários. Aliás, a precipitação tem sido uma constante nas esporádicas decisões que aplica, diretamente o

Principio da Dignidade da Pessoa Humana e deixam de aplicar a legislação ordinária. Nestes casos, invariavelmente, só se enxerga dignidade em relação a uma das partes.

Um magnífico exemplo disso encontra-se nos casos de cortes (seja de energia elétrica, seja de telefone) por inadimplência. Em todas as decisões contra o corte, sem exceção, o princípio é aplicado em prol do consumidor inadimplente. Mas, sem falar no simples fato de que a Lei ordinária deveria ser aplicada – a despeito dos sentimentos que o juiz nutre em sua análise da situação – a aplicação de um princípio não pode, s.m.j., ser realizada de forma tão sectária.

Há diversas consequências, extra-autos, resultantes de uma decisão como essa. A primeira delas é: o que dizer para todos os demais consumidores que pagam as suas contas, religiosamente, a despeito de todas as dificuldades? Outra: o que dizer aos funcionários da empresa que podem ser demitidos em razão da redução de receita proveniente dos inadimplentes? Essas pessoas não estão sobre o manto da dignidade?

Se não se está, puramente, querendo satisfazer um sentimento de desconforto pessoal do julgador com a ideologia da sociedade em que vivemos, é fundamental que a dignidade seja analisada sobre um prisma muito mais amplo que o de uma única pessoa, o qual, de antemão, invariavelmente, trata-se de um inadimplente.

Por trás desse tipo de decisão está, na realidade, uma vontade de legislar, evidentemente contrária a democracia. Ora, a base de todo o sistema democrático é a separação dos poderes que, aliás, de acordo com a nossa constituição, devem ser “independentes e harmônicos entre si”. A usurpação, caracterizada pela interferência de um poder na competência dos demais, é o mais breve caminho para a crise e eclosão de todo o sistema. Como disse, com muita propriedade o Juiz Inglês Lord Devlin: “é grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desvio só aparentemente provisório; em realidade, seria ele a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário”[4].

Não fosse tudo isso, diferentemente de outros sistemas jurídicos, no Brasil os juízes não são eleitos. Todos eles são concursados. São pessoas que demonstraram notável conhecimento técnico, destacando-se como exímios operadores do direito. Nesta situação, s.m.j., parece não ser inerente à carreira de magistrado julgar com base em posicionamentos ideológicos ou sentimentais. É importante não ser omisso à realidade e aos problemas que as populações enfrentam, mas, antes de tudo, o juiz deve ser o guardião da Lei, zelando pela sua efetiva aplicação.

Aos que, entorpecidos pelos princípios fluidos e abertos, insistem em desconsiderar a lei federal é bom lembrar que “compete ao Superior Tribunal de Justiça: (…) julgar, em recurso especial, as causas decididas em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: (…) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência (…)” (art. 105, III, “a” da CF).

Além disso, desculpe-se o truísmo, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II da CF).

Portanto, é da própria Constituição que vem o comando para que a lei ordinária seja aplicada. Justificar o seu não cumprimento a partir de uma norma da Carta Magna, data maxima venia, é girar em círculos. Ou, pior, é corromper o direito pelo próprio direito, garantindo ao interprete a opção de aplicar ou não o dispositivo legal a partir de seus critérios pessoais. Ao nosso ver, com todo o respeito, isso não passa de uma volta à tirania salomônica.

Como disse Sir Winston Churchill: “it has been said that democracy is the worst form of government except all those other forms that have been tried from time to time”. Nosso sistema não é o ideal, mas, se prezamos as nossas liberdades, e queremos construir instituições democráticas sólidas, temos de fazer a lei ser cumprida. Se a lei é ruim, temos que ir ao Poder Legislativo – conciliar interesses – e alterá-la de forma legítima. Nunca construiremos uma nação séria e respeitada na aldeia global se deixarmos de seguir o caminho correto para a solução dos nossos conflitos, buscando atalhos e deixando de enfrentar o problema de frente. O retorno à tirania – qualquer que seja ela – não pode ser considerado solução para os defeitos da democracia, assim como decidir não aplicar a lei não é a solução para a evolução legislativa. Cumpra-se a lei!

* ADVOGADO

[1] Dantas, San Tiago, “Programa de Direito Civil”, Ed. Rio, 1979, pág. 35.

[2] Ob. Cit.,  pág 35.

[3] In, “Programa de Direito Civil – Parte Geral”, Ed. Rio, 4ª Tiragem, 1979, pág. 37.

[4] In, “Judges and Lamakers”, em Modern Law Ver., 39 (1976), pág. 16, Apud, Mauro Capelleti, “Juízes Legisladores?”, Ed. Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, pág. 93.

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