Limites da Teoria Neoclássica do Monopólio Natural [I]: Revisão da Teoria-Álibi
Esta série de 6 artigos tem por interesse expor a fragilidade dos preceitos e conceitos estabelecidos pelo que denomino ‘retórica do
Esta série de artigos tem por interesse expor a fragilidade dos preceitos e conceitos estabelecidos pelo que denomino ‘retórica do monopólio natural’. Não pretendo, nesta série de artigos, me fundamentar no arcabouço teórico dos autores da dita escola austríaca de economia – ou matar uma formiga com uma bazuca, pois farei isto em outro artigo tendo o mesmo tema e propósito. Na presente série, apresentarei apenas os questionamentos tirados das colaborações decorrendo, ‘grosso modo’, da própria análise e teoria tradicional.
Neste primeiro texto introdutório, procuro apenas reescrever precisamente o que chamo de ‘retórica do monopólio natural’, apresentando e revisando os principais fundamentos da teoria tradicional do monopólio e facilitando a apreensão das idéias subjacentes para que, nos próximos artigos da série, se possa expor mais claramente os limites da abordagem neoclássica: uma teoria álibi justificando a renda política e econômica obtida por governos e corporações. Ao leitor que já conhece perfeitamente a teoria tradicional do monopólio, sugiro uma leitura desinteressada do presente texto, com intuito de fazer marcar as principais linhas argumentativas disto que descrevi como ‘retórica do monopólio natural’.
Limites da Teoria Neoclássica do Monopólio Natural [I]: Revisão da Teoria-Álibi
março 15, 2014 por mateusbernardino
Esta série de artigos tem por interesse expor a fragilidade dos preceitos e conceitos estabelecidos pelo que denomino ‘retórica do monopólio natural’. Não pretendo, nesta série de artigos, me fundamentar no arcabouço teórico dos autores da dita escola austríaca de economia – ou matar uma formiga com uma bazuca, pois farei isto em outro artigo tendo o mesmo tema e propósito. Na presente série, apresentarei apenas os questionamentos tirados das colaborações decorrendo, ‘grosso modo’, da própria análise e teoria tradicional.
Neste primeiro texto introdutório, procuro apenas reescrever precisamente o que chamo de ‘retórica do monopólio natural’, apresentando e revisando os principais fundamentos da teoria tradicional do monopólio e facilitando a apreensão das idéias subjacentes para que, nos próximos artigos da série, se possa expor mais claramente os limites da abordagem neoclássica: uma teoria álibi justificando a renda política e econômica obtida por governos e corporações. Ao leitor que já conhece perfeitamente a teoria tradicional do monopólio, sugiro uma leitura desinteressada do presente texto, com intuito de fazer marcar as principais linhas argumentativas disto que descrevi como ‘retórica do monopólio natural’.
Introdução Geral: A Teoria-Álibi
{1} Frequentemente, tanto no meio acadêmico quanto entre os comentadores da mídia, a suposta existência do que se qualifica como ‘monopólio natural’ é a última justificativa para a edificação de tantas normas e regulamentações em determinados setores de produção. Trata-se, ainda, do melhor argumento para a atribuição do status de serviço público a determinados bens e serviços produzidos em monopólio de direito ou monopólio legal.
{2} Após ter introduzido e definido em outro trabalho o que é tecnicamente o ‘monopólio natural’ procurarei, através deste artigo, apresentar o que denomino retórica do monopólio natural: algo que descreveria o conjunto de argumentos, disposições e considerações associadas à existência conceitual deste fenômeno que poderia ter aplicações práticas. A idéia geral é realçar um fato que, me parece, é de conhecimento da grande maioria dos estudiosos que se dedicaram com relativo interesse às questões envolvendo a teoria do monopólio, a saber, que a teoria tradicional do monopólio repousa sobre uma descrição de mundo que é invariavelmente o inverso do que encontramos na realidade. E ela foi feita com este intuito.
{3} A conclusão que emerge naturalmente da análise que aqui vai seguir é que os monopólios públicos, frequentemente justificados pelo álibi da teoria do monopólio natural, ao invés de representar um meio eficiente e definitivo de lidar com os problemas decorrendo da escassez de recursos, e apresentar-se como uma forma de evitar ao máximo o desperdício material – eventualmente buscando a melhor maneira de incrementar os níveis de ‘bem-estar’ em determinadas sociedades –; compõem ou são, na realidade, apenas um mecanismo justificando e legitimando junto à opinião pública o surgimento e a permanência de rendas políticas e econômicas beneficiando governos e corporações.
{4} Se a teoria tem sua utilidade no plano teórico-analítico, meu sentimento é que esta teoria não deveria servir, em hipótese alguma, de cartilha universal e imperativa aos governos ao redor do mundo para a produção e implementação das políticas em determinados setores de produção, quiçá ser utilizada para o auxílio do estudo das questões subjacentes ou na ajuda em determinados casos precisos, e correspondendo à situações particulares, colaborando talvez à compreensão e elaboração de esquemas contratuais.
{5} Os monopólios de direito em serviços públicos não têm, efetivamente, nenhum caráter natural: fatores institucionais tais quais barreiras à criação e livre transferência de direitos de propriedade estão intimamente associados.
{6} Embora seja possível alegar que este não tenha sido inicialmente seu único e principal objetivo, a teoria tradicional do monopólio natural serve, frequentemente, apenas como um grande álibi para que não sejam mal vistas as monopolizações arbitrárias e as ações de grupos econômicos e políticos de pressão, que tiram benefício político e econômico direto da existência demonopólios em serviços públicos.
{7} Entretanto, para justificar ou aceitar que tenhamos coerentemente chegado à tais conclusões, é necessário expor o raciocínio envolvendo a teoria do monopólio natural e sua devida crítica, fundamentada em desenvolvimentos teóricos relativamente recentes e através de uma análise puramente econômica, que não negligencia, no entanto, fatores políticos e sociais envolvidos. É esta tarefa que iniciarei logo em seguida, começando por relembrar brevemente as principais linhas do que chamo retórica do monopólio natural.
Apresentação da Retórica do Monopólio Natural
{8} Caso o leitor não esteja relativamente familiarizado com alguns aspectos mais técnicos da teoria, talvez seja interessante se direcionar ao artigo onde exponho introdutoriamente o arcabouço teórico envolvendo a teoria do monopólio natural. No presente texto, farei apenas uma breve apresentação do que descrevo como retórica da teoria do monopólio natural, que não descreve apenas as questões técnicas, se estendendo ao conjunto de recomendações e considerações propostas pela teoria.
{9} Estaríamos em presença de um monopólio natural quando existem rendimentos decrescentes na produção e o tamanho do mercado não permite a existência de mais de uma firma. O monopólio natural surge, então, quando existe um tal nível de economias de escala (1) que, se deixadas livres as forças do mercado e da competição, qualquer que seja inicialmente o número existente de firmas; a consequência será que uma empresa terminará por eliminar todas as outras e acabará como único produtor de determinado bem ou serviço.
{10} Uma vez que a empresa elimina todas as outras, nada impede que ela aumente seus preços e abuse assim de sua situação de monopólio. E mesmo que ela aumente os preços, visando exclusivamente um incremento da renda de monopólio, nos diz a teoria, não decorrerá disto um incentivo verdadeiro à entrada de novos concorrentes. O motivo é simples: para que os concorrentes possam ter alguma chance de sucesso, seria necessário que eles adentrem neste mercado com um tamanho ao menos igual a este do produtor em monopólio, para que possa combater a concorrência de precificação em condição de paridade, o que é impensável na maioria dos casos, sobretudo quando temos em mente os níveis de investimentos inamovíveis envolvidos e as particularidades associadas as indústrias em rede, que caracterizam muitos destes bens.
{11} A existência de custos médios decrescentes constitui uma barreira tecnológica à entrada, ou mantimento de uma verdadeira ameaça à entrada, tornando a posição do monopólio confortável para que ele possa duravelmente ‘explorar’ os consumidores e auferir eventualmente um ‘custo social’ à coletividade, sobretudo quando os bens produzidos não são facilmente substituíveis. Mais a firma cresce, mais sua posição se torna confortável, como sublinhou Joe Bain (1954, p. 16):
“In general, the ‘condition of entry’ – measured by the extent to which established firms can raise price above a competitive level without inducing further entry – becomes ‘more difficult’ as the ratio of the output of the optimal firm to industry output increases.”
{12} Tais circunstâncias se apresentariam difundidas entre os serviços de saneamento, de gás, eletricidade, transportes ferroviários, transportes aéreos, telecomunicações, ou mesmo, na produção de autoestradas ou algumas infraestruturas, embora algumas dentre elas sequer apresente, efetivamente, as características técnicas apontadas pela teoria do monopólio natural. São atividades que, em sua grande maioria, estão funcionando sob importantes regulamentações públicas. Visto que esta visão é, de certa forma, fatalista e determinista, seria talvez até mais interessante e eficiente, do ponto de vista técnico, que uma só firma se encarregue da oferta desde o início. Como descreveu Bernard Salanié et al. (1997, p. 10), invariavelmente, são setores naturalmente monopolistas pois o ótimo produtivo é caracterizado por tal arranjo:
“On appelle monopole naturel un secteur économique dont les caractéristiques technologiques sont telles que l’optimum de production consiste à laisser une entreprise unique produire en position de monopole sur le secteur.”
{13} As regulamentações se justificariam, então, principalmente por dois motivos. Primeiramente seria ‘natural’ que, lá onde tecnologicamente a estrutura produtiva que conduz à minimização dos custos envolvidos seja o monopólio, os poderes públicos se preocupem de controlar os preços praticados. O objetivo é minimizar os ‘custos sociais’ envolvidos. Este objetivo pode ser atingido principalmente através de dois métodos (2): delegando as atividades e a propriedade das empresas responsáveis ao governo (nacionalização); confiando contratualmente a gestão e administração dos investimentos à empresas privadas em regime de concessão, e/ou em contratos que podem eventualmente prever mecanismos de teto tarifário ou contrôle das taxas de retorno.
{14} Em segundo lugar, a regulamentação se justificaria pela necessidade de controlar a entrada contra eventuais concorrentes, para que a população possa gozar plenamente das condições técnicas consideradas ótimas e da produção ao custo mínimo. A regulamentação se justifica, neste caso, pela necessidade do estabelecimento e da edificação do monopólio de direito, além da fixação ou concessão da formação de um monopólio que é, de toda forma, tecnicamente ‘natural’.
{15} Quando um mercado ou setor produtivo conduz naturalmente a uma situação de monopólio, apresentando as características tecnológicas e estruturais que lhe são singulares, nos diz a teoria, é necessário se assegurar que a empresa possa controlar efetivamente os preços sem que distúrbios eventuais sejam provocados pela entrada de ‘concorrentes suicidas’: o governo deve então impedir que qualquer um destes inoportunos ‘piratas’ venha prejudicar a harmonia da tarificação do monopólio.
{16} Ao final das contas, é amplamente justificável transformar um monopólio de facto em monopólio legal desde que isto permita que seja possível produzir bens e serviços ao menor preço, o que beneficiará toda a coletividade dada a circunstância imposta pela tecnologia de produção. Esta proteção legal parece ser ainda mais necessária quando imaginamos, e sabemos, que a firma instalada deve ser protegida de comportamentos oportunistas de algum concorrente potencial. E isto, principalmente quando as características tecnológicas e as economias de escala atuam sobre toda uma gama de serviços relativamente complementares, ao invés de compreender apenas um produto ou serviço em especial (3).
{17} Para impedir que desapareçam as vantagens de longo prazo associadas à produção ao nível do custo mínimo e em monopólio legal de serviços públicos, deve ser imposta, a regulamentação limitando ou proibindo a entrada viadecreto normativo do monopólio de direito. Ela asseguraria ainda, caso o monopólio se inscreva em uma organização semiprivada, um nível de lucros considerado ‘justo’.
{18} Aliás, estatuar o monopólio legal e o constrangimento normativo decretando regime de serviço público pode implicar, diretamente, que as autoridades regulamentárias e as autoridades de tutela possam impor sobre as tarifas praticadas obrigações que vão além dos ‘simples’ objetivos de eficiência econômica. Estas obrigações consistem, por exemplo, em discriminar os preços segundo critérios de status jurídico e/ou econômico, ou segundo interesses políticos aleatoriamente estabelecidos. Descrevendo arbitrariamente, por exemplo, quais categorias de clientes terão acesso à tarifas de um determinado nível.
{19} Este mecanismo significa, ou tem por consequência imediata, a realização e imposição do que os economistas chamam de subvenções cruzadas, o que quer dizer simplesmente que uns pagam pelo consumo de outros, além é claro, do evidente fato de que o próprio serviços público é em si um grande mecanismo de subvenção cruzada: normatizando que os utilizadores se beneficiam de um serviço financiado por toda a coletividade.
{20} A liberdade de entrada nestes mercados, dizem os teóricos, tornaria impossível o mantimento deste tipo de estrutura de tarifas fundamentadas emsubvenções cruzadas e seguindo, evidentemente, as aspirações políticas dos regulamentadores: fundamentais à ‘universalização do acesso’ a estes serviços. Eis aí outro ‘grande’ argumento justificando de maneira ‘incontestável’ a normatização do monopólio legal e a prevenção contra uma concorrência considerada indesejada.
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{21} Estas são as principais linhas do que descrevo, pessoalmente, comoretórica do monopólio natural. Esta retórica consiste basicamente em uma mobilização esquemática e mecânica de um conjunto de conceitos e argumentos buscando justificar inúmeras regulamentações e intervenções dos poderes públicos em setores apresentando características de monopólio ‘natural’.
{22} Terminando este primeiro artigo introdutório, gostaria de chamar atenção ao fato de que estas considerações da retórica do monopólio se inscrevem no âmbito e circuito conceitual descrevendo como ótima e referencial a situação deconcorrência pura e perfeita. Seu ‘desvio’ representa, desta sorte, ‘custos sociais’ à coletividade engendrados quase que exclusivamente pelas questões tecnológicas, e sobretudo, tomados relativamente à situação desejável ou referencial. Nos próximos artigos, detalharei com maior precisão porque esta teoria do monopólio, seus conceitos e seus argumentos não merecem tanta consideração, se é que merecem alguma, começando por fazer uma crítica a este conceito ‘chave’ da teoria ou à interpretação que a teoria oferece ao conceito e idéia de ‘custo social’.
Notas
(1) Por economias de escala compreende-se o fato de que maior é a produção de um bem, mais o custo médio de produção deste bem diminui. No caso do monopólio natural, a empresa que detenha o maior nível de produção terminaria por eliminar as outras. Segundo Carlton e Perloff (2004, p. 104):
“When total production costs would rise if two or more firms produced instead of one, the single firm in a market is called a natural monopoly.”
(2) Deixar que a propriedade permaneça em última instância à iniciativa privada, da mesma forma os investimentos e gestão, o governo atuando em monitoramento e intervindo quando disfunções importantes acontecem, notadamente via edição de normas técnicas, de saúde ou de qualidade que deverão ser respeitadas sob ameaça de sanções (sobre a renda e as tarifas).
(3) Em presença de tais subaditividades de custos, se deixarmos a entrada livre, nos diz a teoria, concorrentes potenciais poderiam procurar produzir apenas a gama de bens e serviços mais rentáveis do monopólio natural, e assim supostamente terminar por privar a coletividade de todas as economias de custos que ele poderia beneficiar se mantivesse toda a produção sob sua responsabilidade e produção monopolista. Este perigo e risco de desperdício seria ainda maior se o nível de investimentos iniciais necessários impusessem fortes volumes de investimentos para a produção e instalação de grandes estruturas produtivas. Tal perigo faz pairar sobre a firma monopolista um risco de perdas diretamente associado à entrada de concorrentes que se interessam apenas na realização de lucros de curto prazo, algo caricaturalmente semelhante à estratégia de hit and run.
Referências
Bain, J. S., Economies of Scale, Concentration and the Condition of Entry in Twenty Manufacturing Industries, The American Economic Review, American Economic Association, Vol. 44 (1), p. 15-39, 1954.
Carlton, D., Perloff, J., Modern Industrial Organization, Fourth Edition, Addison Wesley, 2004.
Coase, R., The problem of social cost, Journal of Law and Economics, Vol. 3, p. 1-44, 1960.
Lepage, H. La nouvelle économie industrielle, Puf 1989.
Salanié et al., La réglementation des monopoles naturels, Em Perrot, A. (Ed.),Réglementation et concurrence, 1997.