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Liberdade, desenvolvimento e o risco de retrocesso

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A autonomia é definida como a capacidade de autogoverno, amparada em princípios pessoais privativos. Não se subordina, portanto, ao juízo externo, embora possa ser influenciada por ele. Para o filósofo alemão Immanuel Kant, o indivíduo autônomo é livre para tomar suas próprias decisões com base na razão, que lhe permite discernir o bem do mal, conforme sua moral. Dessa forma, por vontade própria, todos os dias, em todos os cantos da Terra, bilhões de indivíduos tomam suas decisões, sempre com a intenção de alcançar maior comodidade momentânea. Esse é o fundamento da ação humana, conforme evidenciado por Ludwig von Mises. Na perspectiva desse pensador, a ação humana é nitidamente um comportamento propositado. Assim, ao perceber a possibilidade de maior plenitude pessoal, o agente da ação avalia subjetivamente o curso dessa ação e as alternativas disponíveis para então proceder em direção ao seu objetivo. Claro que nem sempre ele é bem-sucedido, mas é a somatória dos erros e acertos ao longo da trajetória que aprimora sua capacidade de fazer boas escolhas. Além do mais, as experiências particulares e a análise racional das causas e efeitos das decisões contribuem para a formação do caráter e para o desenvolvimento do senso de responsabilidade, fundamental para a consciência do valor próprio.

Apesar dessa individualidade intrínseca inescapável – o nascimento e morte são sempre solitários -, a vida em comunidade é determinante para a sobrevivência humana. Desde o princípio, o homem compreendeu e desafiou as adversidades e a fugacidade da vida em face de suas limitações. Assim, de imediato, pôde observar que a conjunção de objetivos mútuos e a vivência colaborativa são inevitavelmente mais vantajosos que um roteiro misantropo. Entretanto, por mais paradoxal que possa parecer, são os interesses próprios, muitas vezes confundidos com o puro egoísmo, que estimulam a cooperação e as trocas voluntárias entre indivíduos. Se a limitação temporal torna praticamente impossível alcançar o bem-estar desejado, per se, por que não dividir as tarefas? Incrível! Ao longo do tempo, o fracionamento das atividades cotidianas e a combinação de múltiplas habilidades, talentos e motivações revelaram-se implacáveis. Afinal, resultados notadamente superiores passaram a ser alcançados, a partir de recursos limitados. Portanto, não restavam mais dúvidas de que as trocas comerciais, decorrentes da especialização no trabalho, são o fundamento da alocação mais inteligente do tempo de cada indivíduo, ao liberar energia e ampliar as oportunidades para mais inventividade e para o desenvolvimento de novos meios de produção. Outrossim, o livre comércio tem um notável poder civilizatório ao conferir relações pacíficas e benéficas a uma diversidade muito grande de povos, com tradições, modos de vida e necessidades tão diferentes; mas em que momento a prosperidade ganhou tração?

Durante a maior parte da história da humanidade, a pobreza, a doença e a falta de perspectiva de futuro predominaram. Por milênios a população mundial se manteve abaixo de 500 milhões de habitantes, com renda per capita inferior a US$ 500. A fome, a subnutrição e a falta de conhecimento científico para combater doenças mantiveram a expectativa de vida em torno de 25 anos por séculos. Porém, o advento da Carta Magna, na Inglaterra de 1215, muda completamente o curso da história. Exauridos por um rei belicoso, incompetente e corrupto, que tributava pesadamente seus súditos, os britânicos redigem esse importante documento que lança as bases do estado de direito. Pela primeira vez na história, o poder de um rei era limitado e submetido a uma legislação. Representatividade e liberdade política, além do direito à propriedade privada, foram inovações estabelecidas na Carta, que pavimentava o ambiente favorável ao impulso econômico. Se o fruto do trabalho duro e do esforço próprio é reconhecido e protegido em lei, há incentivos para a acumulação de capital, essencial para os novos investimentos, para a inovação e o aumento da produção, que transformam o modus vivendi.

O economista Robert Higgs mostra que a fragmentação política da Europa foi fundamental para esse progresso continuado. A concorrência entre as cidades europeias para ter um ambiente de negócios amigável motivou o desenvolvimento de um sistema jurídico privado, que resolvia rapidamente as contendas comerciais. Mais tarde, a concepção de um arcabouço institucional pouco interveniente e de reduzida tributação foi fundamental para garantir a liberdade empreendedorial. A ascensão de uma classe média ávida pelo consumo de inovações e a autonomia do setor produtivo para experimentar o novo, sem as amarras da burocracia estatal, resultaram na explosão do progresso tecnológico. A competição, a cooperação voluntária e o laissez-faire, a partir da segunda metade do século XIX, beneficiaram enormes contingentes populacionais, de forma que até pessoas comuns puderam ter acesso a bens e a um nível de conforto nunca antes experimentado. Desde então, a roda da prosperidade nunca retrocedeu. Neste início do século XXI, o tamanho da população, a renda, a expectativa de vida e as condições de higiene, saúde e nutrição nem de longe lembram aquele mundo medieval de concentração de poder e de liberdade restrita, embora sempre tenham existido tentativas de retrocesso. O economista e professor Huerta de Soto explica que esse espírito empresarial, que transforma o mundo desde os tempos remotos, é da natureza humana. Ele consiste em pesquisar e descobrir novas formas de combinar e transformar recursos mal aproveitados em bens que satisfaçam demandas ainda não atendidas. Porém, o livre exercício da função empresarial, que trouxe o mundo ao estágio de desenvolvimento atual, está sob ataque pelo menos desde meados do século XIX.

Infelizmente, enquanto boa parte do mundo ocidental desfruta os benefícios do capitalismo, indiferente às maquinações da burocracia estatal por mais poder e controle sobre praticamente todos os aspectos da vida, os alicerces dessa conquista secular são progressivamente enfraquecidos pela cultura coletivista. Individualidade, autonomia, liberdade, responsabilidade, diferenças naturais, hierarquia, família, cristianismo, moral, progresso material, nada escapa do ímpeto reformador do marxismo cultural. Para atingir seus objetivos, vale tudo: recrutar jornalistas e professores, cooptar empresários e banqueiros, praticar o assistencialismo eleitoreiro e aparelhar a estrutura estatal. Talvez nunca a liberdade tenha estado tão ameaçada quanto nos dias atuais. A pandemia do coronavírus exibe um verdadeiro festival de autoritarismo estatal, especialmente no Brasil. No tempo em que o setor produtivo se encarrega de abastecer todas as necessidades correntes da coletividade, o socialismo se utiliza dos meios coercitivos do Estado contra o livre exercício da função empresarial. Por isso, Hayek alertou sobre o risco de a sociedade trilhar o caminho da servidão.

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Vinícius Montgomery de Miranda

Vinícius Montgomery de Miranda

Graduado e Mestre pela Universidade Federal de Itajubá, MBA em Gestão Financeira pela UNITAU. Consultor de Empresas e Professor de Economia e Finanças.

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