Supremo Tribunal Soberano?

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Recentemente, o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou, em decisão liminar, a suspensão da vigência de três decretos do Poder Executivo que aumentavam as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), bem como do Decreto Legislativo do Congresso Nacional que havia sustado esses atos do Executivo. Em seguida, o Ministro convocou uma insólita “audiência de conciliação” entre os Poderes, como se essa etapa do processo decisório já não tivesse ocorrido no âmbito próprio do Congresso Nacional.

A decisão do STF apresentou diversos e evidentes problemas de natureza lógica, jurídica e política, mas a ascensão de um modelo judicial que concentra decisões sensíveis fora do alcance do contraditório político pode revelar mais do que uma falha institucional: pode estar em curso uma mutação silenciosa no regime democrático. Abordaremos aqui a questão sob a perspectiva da ciência política, especialmente no que se refere ao conceito de “soberania”, eis que a atuação do STF, exemplificada por esse caso, contrasta com o fenômeno contemporâneo que o cientista político italiano Nicola Matteucci denomina “eclipse da soberania”[1]: a perda de força do conceito original de soberania no contexto do constitucionalismo moderno, o qual privilegia a fragmentação do poder e o equilíbrio institucional como solução para crises.

Em sua definição clássica, soberania, no sentido político-jurídico, designa “o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra este poder supremo, exclusivo e não derivado”[2]. Com o surgimento do estado moderno, esse poder foi concebido como absoluto e indivisível, concentrado na figura do monarca, com o objetivo de pacificar territórios fragmentados e consolidar a ordem política. Segundo Jean Bodin, o primeiro grande teórico acerca do tema no século XVI, soberania é o “poder absoluto e perpétuo de uma república”, sendo que “é soberano quem não deve nada, depois de Deus, senão à sua espada” e “em matérias de estado, quem domina a força, domina os homens, a lei e toda a República”[3]. Ou seja, o modelo monárquico “soberano”, ao eliminar o pluralismo, também anulava o espaço da política para além do poder central.

O mundo hoje é plural e complexo e o atual modelo constitucional americano, adotado em grande medida pela Constituição brasileira, foi concebido justamente para canalizar as tensões políticas, limitando o poder e promovendo equilíbrio institucional. Nesse sentido, vê-se o “eclipse da soberania”, segundo Matteucci. “O constitucionalismo (Estado misto, separação dos poderes, supremacia da lei), o federalismo e o pluralismo podem não apenas enfraquecer, mas até destruir a força de coesão e a unidade do corpo político que oferece sem dúvida a Soberania, ultrapassando, desta forma, os objetivos que haviam sido propostos. Porém, onde não existe o monopólio da força numa única instância, onde não há ‘mando’ que mantenha unido o corpo social, ou existe o consenso acerca dos valores últimos e das regras do jogo que criam a fidelidade e estabelecem a obrigação política, ou se retorna ao Estado natural, que é o Estado da força, e explode assim a luta pela soberania”[4].

Tal advertência ilumina o dilema da modernidade política: a fragmentação do poder evita abusos, mas exige um pacto normativo profundo, um mínimo de unidade moral e institucional. Quando esse consenso se desfaz, abre-se espaço para que forças autoritárias se apresentem como restauradoras da ordem, pretendendo reencenar o modelo da soberania clássica sob novas roupagens.

A atuação do Ministro Alexandre de Moraes e de sua Corte parece invocar um paradigma ultrapassado: um poder concentrado, sem contrapesos, legitimado por uma suposta missão de proteger (ou criar?) determinada ordem. No momento em que a ideia original de soberania se mostra superada, pode ela estar sendo ressuscitada como instrumento de exceção por elites que desejam contornar o processo democrático. Tal fenômeno revelaria não o fortalecimento da soberania nacional como capacidade popular de autogoverno, mas sua apropriação por agentes estatais que concentram poder em nome de uma nova ordem.

Ao intervir na dinâmica dos poderes, como fez no recente episódio acerca do IOF, o Supremo Tribunal Federal parece reivindicar uma forma de soberania interna incompatível com o constitucionalismo moderno. Desde sua origem, esse modelo constitucional rejeitou a figura do soberano absoluto, fosse ele monarca ou tribunal, substituindo o mando unificado por um pacto de separação, equilíbrio e limites mútuos entre os Poderes. A soberania, antes indivisível e hierárquica, tornou-se difusa, funcional e vinculada à legalidade e ao princípio democrático. Ressuscitar, sob pretextos moralizantes ou emergenciais, a lógica do poder uno e inconteste, representa não apenas uma distorção institucional, mas também um retrocesso inadmissível. Onde o Judiciário se converte em poder soberano, extingue-se a política e instala-se o arbítrio, justamente aquilo que o constitucionalismo nasceu para impedir.

*Fernando Borges de Moraes – Advogado, especialista em Direito do Trabalho pela UNISC/ENA, sócio de Moraes & Horsth Advogados Associados, membro da Lexum.


[1] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 12ª ed., 1999, v. 2, p. 1187.

[2] Idem, p. 1779.

[3] Apud VOEGELIN, Eric. Religião e a Ascensão da Modernidade. São Paulo: É Realizações, 2016, p. 307-308.

[4] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 12ª ed., 1999, v. 2, p. 1186-1187.

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