Sobre o Código Civil: não é reforma, é revolução
Chamam de reforma, mas é ruptura. Dizem modernizar, mas rasgam os fundamentos. Sob o pretexto de adaptar o Direito aos “novos tempos”, o Projeto de Lei nº 4, de 2025, reescreve o Código Civil não como quem ajusta os pilares de uma casa antiga, mas como quem ergue um novo templo ideológico sobre os escombros da tradição. O que se apresenta como revisão técnica é, em verdade, uma operação política de alcance estrutural. Não é uma reforma: é uma revolução. E mais do que isso — é uma revolução com espírito jacobino.
Como nas fases mais radicais da Revolução Francesa, a proposta legislativa parte da premissa de que tudo o que veio antes é insuficiente, injusto ou superado. Princípios como previsibilidade, autonomia, liberdade contratual e segurança jurídica — ainda vigentes e funcionais — são tratados como resquícios burgueses a serem substituídos por uma nova moral de Estado. Nesse cenário, o juiz deixa de ser guardião da legalidade para assumir um papel revolucionário. Transforma-se em um Robespierre civil: intérprete soberano, legislador da moral, condutor de valores fluidos que ocupam o centro da normatividade. Já não aplica a norma, mas a completa segundo sua própria visão de mundo. O que antes era exceção torna-se regra. O Direito cede lugar ao voluntarismo hermenêutico. E a segurança, à adivinhação.
Uma reforma respeita o passado. Corrige excessos. Aperfeiçoa lacunas. O que este projeto propõe é diferente. Ele pretende refazer o Código Civil a partir de uma ideologia — uma ideologia que nega os limites do legislador, relativiza os direitos individuais e transfere para o Judiciário a função de disciplinar o comportamento social conforme a moral do caso concreto. A legalidade é relativizada em nome da justiça substantiva. A liberdade de contratar é subjugada à noção de “vulnerabilidade presumida”. E a ilicitude — fundamento tradicional da responsabilidade civil — é dispensada por uma concepção punitiva que transforma o juiz em agente moralizante.
Essa inversão de princípios não é apenas perigosa. Ela é inconstitucional. A Constituição brasileira é republicana, não jacobina. Ela protege os direitos fundamentais negativos — como a liberdade, a propriedade e o direito de contratar — como cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV), blindadas contra maiorias legislativas ou modismos interpretativos. Substituir esses direitos por cláusulas morais indeterminadas é subverter o pacto republicano e abrir espaço para o arbítrio institucional.
Não se trata de exagero. O projeto admite expressamente a possibilidade de responsabilização por condutas lícitas. Introduz o “nexo causal probabilístico”, a “função punitiva” e a “função preventiva” como vetores da responsabilidade civil, mesmo na ausência de culpa ou ilicitude. É a transformação da responsabilidade em pedagogia judicial. O juiz passa a ensinar condutas, impor valores, punir comportamentos — tudo com base em conceitos vagos e fundamentos mutáveis. Não se trata mais de reparar danos. Trata-se de controlar o tecido social por meio da decisão judicial. O juiz vira engenheiro moral da sociedade. E o Direito, uma engrenagem da revolução silenciosa.
Alegam que o projeto apenas consolida jurisprudência. Falso. Ele transforma exceções em regra, estatiza a moral privada e institucionaliza a insegurança. No Direito das Empresas, impõe “funções éticas” e “finalidades sociais” indefinidas. Nos contratos, legitima revisões com base em categorias subjetivas. Na responsabilidade civil, permite punições sem ilícito. Não é um projeto técnico — é político. E sua política é de ruptura: funda uma nova ordem jurídica sem admitir a revolução que a move. Mas nenhuma engenharia normativa disfarçada de técnica deixa de ser um ato ilegítimo de poder. A democracia exige honestidade. A República, contenção. E o Direito, limites.
Esse projeto não é técnico — é político. E sua política é de ruptura: pretende instaurar uma nova ordem jurídica sem declarar a revolução que a sustenta. Dizer não a esse projeto não é resistir ao progresso — é defender a legalidade, a Constituição e a liberdade. O que está em jogo não é apenas a forma do Código Civil, mas o próprio modelo de sociedade. Se tudo pode ser interpretado por valores subjetivos, se as palavras da lei se curvam à moral do julgador e se a norma vira instrumento de punição e doutrinação, já não temos um sistema de Direito — temos um tribunal de virtudes.
Por isso, insistir na sua rejeição não é obstrução — é responsabilidade. Este projeto precisa ser arquivado. Não por birra, mas por princípio. Porque entre o império da lei e o império do intérprete, ficamos com o primeiro. Porque a liberdade não floresce sob juízos de virtude, mas sob o texto que limita, protege e resguarda. Porque não se reforma um edifício demolido. E não se reconstrói o Direito com as ferramentas da exceção.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.