Quando o Judiciário reescreve competências e inventa papéis
Antes de tudo, é importante fazer um esclarecimento. Não sou tributarista. Este texto não pretende discutir a técnica fiscal envolvida na edição dos decretos sobre o IOF. Meu exame se dá sob outro prisma: o da separação de Poderes e da arquitetura institucional da Constituição. O episódio é revelador porque, a pretexto de resolver um impasse entre Executivo e Legislativo, o Supremo Tribunal Federal redesenha — sem dizer expressamente — os limites constitucionais entre os Poderes. O que está em jogo não é apenas o conteúdo de um decreto ou a extensão de uma competência tributária, mas a própria lógica dos freios e contrapesos.
Refiro-me aqui à decisão proferida na ADC 96, na ADI 7827 e na ADI 7839, relatadas pelo Ministro Alexandre de Moraes, que concedeu medida cautelar para suspender os efeitos dos decretos presidenciais n. 12.466/2025, 12.467/2025 e 12.499/2025, assim como do Decreto Legislativo n. 176/2025 — e, mais notavelmente, determinou a realização de uma audiência de conciliação entre os Poderes da República, com data, local e rito definidos pelo Supremo Tribunal Federal.
Há algo profundamente sintomático na forma como o Supremo Tribunal Federal, pela pena do Ministro Alexandre de Moraes, tratou o artigo 49, V da Constituição Federal. Ali onde o texto é claro — “compete exclusivamente ao Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar” —, a decisão enxergou ambiguidade. Não na norma, mas em sua aplicação. E, ao fazê-lo, reformulou o alcance da cláusula constitucional com base em uma distinção não escrita: só se pode sustar aquilo que é subordinado à lei, não o que decorre diretamente da Constituição.
Esse raciocínio, que parece elegante, é perigosamente insinuante. Porque transforma o critério de controle — a exorbitância — em uma exceção hermenêutica. O que era um poder exclusivo do Congresso vira uma faculdade sujeita ao crivo judicial. O Legislativo, que deveria ser um dos guardiões da estrutura normativa, passa a operar sob a tutela do intérprete supremo, como se sua competência dependesse de chancela exógena. Assim, a cláusula do art. 49, V não é violada frontalmente, mas esvaziada por dentro. E nisso consiste a técnica contemporânea da erosão institucional: não rasgar a Constituição, mas redescrevê-la.
A decisão que restringe o alcance do art. 49, V da Constituição Federal — ao excluir da esfera de controle do Congresso os chamados decretos “autônomos” — ignora a função estrutural desse dispositivo como instrumento de contenção normativa do Executivo. A origem e a razão de ser da norma não estão na natureza jurídica do ato, mas na necessidade de impedir que o Executivo, legitimado por competências constitucionais diretas, atue sem freios institucionais.
A leitura originalista exige retorno à lógica fundante da Constituição de 1988: concentrar poder normativo é o primeiro passo para a erosão democrática. O artigo 49, V existe precisamente para que o Legislativo possa reagir quando o Executivo, sob qualquer roupagem formal, adotar medidas que transbordem sua função, convertendo competência em domínio.
Esse entendimento se alinha ao conceito central de supremacia e autogarantia constitucional, como bem afirmam Sarlet, Marinoni e Mitidiero:
“A primeira e principal característica do direito constitucional reside na sua supremacia hierárquica, no sentido de que as normas constitucionais prevalecem em relação a toda e qualquer forma normativa (incluídas as leis elaboradas pelo Poder Legislativo) e todo e qualquer ato jurídico na esfera interna da ordem estatal.”
[…]
“Uma segunda característica reside no caráter autogarantista do direito constitucional, ou seja, no fato de que o direito constitucional, diversamente do que ocorre com os demais ramos do direito (infraconstitucional), não possui uma instância que lhe seja superior e externa […] pois é a própria constituição, mediante o direito constitucional (suas regras e princípios), que deve assegurar-se, estando, portanto, limitada às suas próprias forças e garantias.”
(Curso de Direito Constitucional, 14ª ed., 2025, p. 172-173, ed. Kindle)
A função do Congresso ao sustar atos normativos do Executivo é justamente uma dessas “forças e garantias” internas da Constituição. E essa cláusula — o art. 49, V — foi concebida como resposta a uma história institucional em que o Executivo legislava por decreto, sem contenção efetiva, durante o regime autoritário. A cláusula é, portanto, mais do que um mecanismo técnico: é uma memória constitucional de resistência ao arbítrio normativo do Executivo.
Durante o regime militar — especialmente sob o Ato Institucional n. 5 — o presidente podia, literalmente, fechar o Congresso, cassar mandatos e legislar por decreto, sem qualquer instância de controle. Como bem narra Elio Gaspari:
“Quando assumiu, havia uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia um ditador sem ditadura. […] O Ato Institucional nº 5, o instrumento parajurídico que vigorara por dez anos, por meio do qual o presidente podia fechar o Congresso, cassar mandatos parlamentares e governar por decretos uma sociedade que não tinha direito a habeas corpus em casos de crimes contra a segurança nacional.” (Box Coleção Ditadura, Intrínseca, ed. Kindle, p. 42)
Foi contra esse modelo de centralização normativa que o art. 49, V se ergueu — como cláusula de vigilância. Não por acaso, Sarlet, ecoando Hesse, adverte: a supremacia da Constituição exige que “todos os órgãos e agentes estatais reconheçam e efetivamente assumam a responsabilidade de fazer valer a constituição.” O Congresso, ao utilizar o art. 49, V, não invade a esfera de competência de outro Poder — apenas exerce a sua responsabilidade institucional de guardião do equilíbrio normativo. Ele é parte do sistema de autodefesa da Constituição. E quando esse poder de contenção passa a depender de chancela judicial, o que se perde não é apenas uma cláusula: é a memória do porquê ela foi inscrita.
Tratar esse dispositivo como uma faculdade excepcional — subordinada à chancela do Judiciário ou à natureza do decreto — é desfigurá-lo. É ignorar que sua existência se destina exatamente a impedir que o texto constitucional seja superado por expedientes do próprio Estado. A Constituição não se protege por deferência, mas por estrutura.
O esvaziamento do art. 49, V, promovido por uma leitura que inventa distinções não escritas, não é apenas institucionalmente arriscado — é metodologicamente viciado. A interpretação constitucional exige contenção, sob pena de converter o texto em plataforma para a reinvenção das competências republicanas. Cânones como os propostos por Scalia e Garner — a favor da clareza textual e contra a construção judicial não autorizada —, aliados à hermenêutica clássica de Carlos Maximiliano, oferecem precisamente o que faltou à decisão: freios interpretativos.
Ao distinguir entre decretos subordinados à lei e decretos “autônomos”, a decisão reconfigura uma cláusula de contenção em cláusula de exceção. E faz isso sob o disfarce de fidelidade constitucional, quando o que se tem é um rearranjo institucional que dribla o texto para legitimar o protagonismo judicial. É o típico estratagema identificado por Schopenhauer: a premissa disfarçada de conclusão, a exceção travestida de regra.
Interpretar, sobretudo em matéria constitucional, não é reconstruir a norma segundo as urgências da conjuntura, mas contê-la segundo os limites do seu desenho institucional. Isso exige disciplina técnica — e, mais ainda, domínio das armadilhas cognitivas que inclinam o julgador a tomar sua própria centralidade como medida da ordem jurídica. Quando o juiz cede a esse impulso, já não exerce jurisdição: exerce representação simbólica. E nessa inversão silenciosa, é a república que se desconstitui.
Ao dizer que decretos com base direta na Constituição não podem ser sustados pelo Legislativo, a decisão de Moraes faz justamente o que o texto condena: transforma uma cláusula de contenção em um dispositivo ornamental, a ser interpretado segundo a conveniência da Corte. E com isso, paradoxalmente, limita a força normativa da Constituição no exato momento em que diz protegê-la.
Mais grave ainda é o movimento seguinte: a convocação de uma audiência de conciliação entre os Poderes. A decisão judicial assume, sem previsão constitucional ou legal, o papel de mediador institucional — uma espécie de “moderador jurisdicional” entre Executivo e Legislativo. O art. 2º da Constituição, que fala em “harmonia”, é convertido em dispositivo operativo. Mas a harmonia, na estrutura republicana, não é um fim a ser imposto; é um ideal a ser perseguido pela autonomia recíproca. Quando o Judiciário decide que os outros dois Poderes precisam “sentar para conversar”, e determina a hora, o local e o rito, não temos mais uma Corte — temos uma chefia simbólica da República.
A república não é apenas uma forma de governo: é uma doutrina institucional fundada em três pilares — limitação do poder, responsabilidade do agente público e igualdade de legitimidade entre os Poderes. Dentro dessa arquitetura, a função jurisdicional não é a mais elevada: é apenas distinta. O Judiciário não governa, não legisla, não negocia. Seu papel é dizer o direito dentro dos limites estabelecidos pela Constituição — e é precisamente por isso que sua autoridade é vinculante: porque ela nasce do texto, não da oportunidade. Nas palavras do Chief Justice John Marshall em Marbury v. Madison: “É enfaticamente a atribuição e do dever do Poder Judiciário dizer o que a lei é.” E eu acrescento: não o que a lei deveria ser.
Quando o Supremo convoca Executivo e Legislativo para uma audiência de conciliação, ele ultrapassa a função de intérprete do direito e assume, na prática, um papel de coordenação política. É a transição silenciosa do juiz para o arquiteto institucional. Mas essa função não lhe foi atribuída — nem pela Constituição, nem pela legitimidade democrática. A harmonia entre os Poderes, prevista no art. 2º da CF, é um princípio de convivência institucional, não um instrumento de gestão de conflitos por via jurisdicional.
A lógica republicana exige que cada Poder solucione seus próprios impasses dentro de suas atribuições. A interferência jurisdicional só é legítima quando há violação objetiva do texto constitucional. Fora disso, o Judiciário deve conter-se — não por covardia, mas por respeito à arquitetura da separação de funções. A separação de Poderes não existe para promover cooperação, mas para garantir contenção recíproca — cada Poder vigiando os excessos do outro, dentro de sua função própria.
Além disso, ao se colocar como facilitador institucional, o STF assume uma função simbólica que a Constituição reserva ao pacto político — não ao juízo jurídico. Não há, no direito brasileiro, a figura de um “poder moderador”. A mediação entre Executivo e Legislativo deve ocorrer pelas vias ordinárias do processo democrático, não por designação monocrática do Judiciário. O que a decisão de Moraes faz, ao convocar tal audiência, é instituir uma instância extraconstitucional de negociação política: sem base normativa, sem rito previsto, mas com peso simbólico suficiente para deslocar o centro de gravidade institucional. E esse deslocamento desnatura o papel da jurisdição, pois mediação forçada é sentença — disfarçada de conciliação, mas emitida com a autoridade de quem já decidiu qual deve ser o tom da harmonia entre os Poderes.
E nesse gesto — ao invés de restaurar os checks and balances — o que se produz é o seu embaralhamento: os freios viram mediação; os contrapesos, consenso compulsório. Um novo equilíbrio que já nasce fora do eixo constitucional. O juiz que negocia, media e organiza reuniões entre Poderes deixa de ser imparcial por definição: ele passa a ter interesse no resultado, pois passa a ser o fiador da própria harmonia que pretende induzir.
Por isso, a crítica não é apenas técnico-jurídica — é estrutural: um Judiciário que se assume como moderador político não está preservando a república. Está transformando-a em uma república interpretada, na qual a separação de Poderes é mantida apenas como retórica, mas não como prática. Nesse modelo, o direito deixa de ser o limite da ação jurisdicional e se torna o pretexto para uma performance centralizadora. E quando isso ocorre, a Constituição já não nos protege: ela apenas assiste, silenciosa, à superação de seus próprios limites.
Aliás, algo assaz curioso, como comentei em artigo anterior sobre Marbury v. Madison, a Suprema Corte americana afirmou seu poder recusando-se a exercê-lo. No episódio recente, o nosso STF reafirma sua centralidade assumindo o que a Constituição não lhe deu: a tarefa de moderar politicamente os Poderes. Entre o juiz que recua para proteger a Constituição e o juiz que avança para interpretá-la à sua imagem, a diferença não é de estilo — é o próprio conceito de república.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.