Quando o Direito se torna Revolução: uma advertência necessária

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A recente declaração da presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Rita Cortez, ao afirmar que “o Direito é um instrumento de mudança da sociedade”[1], revela um equívoco conceitual que tem se disseminado fortemente nos meios jurídicos e acadêmicos: a ideia de que o Direito deve servir como motor de “transformação social”, deslocando-se de sua função original de preservação da ordem e da liberdade conforme nossa cultura jurídica. A visão que atribui ao Direito um papel de serviçal de algum tipo de “engenharia social” ignora sua essência como baliza de estabilidade e proteção contra o arbítrio.

A instrumentalização do Direito para fins de influência social em prol de uma agenda normalmente floreada por boas intenções infelizmente não é novidade e embute em si o cerne da chamada “mentalidade revolucionária”, ou seja, a pretensão de certos atores sociais de remodelar a ordem social em nome de uma moralidade supostamente superior, concentrando poder nas mãos daqueles que se veem como agentes da mudança[2].

A ação revolucionária é potencializada por um fenômeno descrito por Bertrand de Jouvenel em sua obra clássica Du Pouvoir – Histoire Naturelle de sa Croissance (1945). Jouvenel demonstra que o poder possui um impulso expansivo inerente, apropriando-se de finalidades supostamente altruístas — como justiça social, igualdade ou solidariedade — para legitimar sua infiltração em esferas cada vez mais íntimas da vida privada[3]. “Basta tomar por finalidade o conceito indefinido de Justiça Social”, escreve Jouvenel, “para que o Poder justifique qualquer crescimento de sua extensão”[4]. Assim, o Estado, longe de ser um administrador da res publica, torna-se um demiurgo moral, erigindo-se em árbitro de consciências e remodelador de costumes, enquanto a sociedade, desprovida de contrapesos, se vê cada vez mais subordinada a ele.

A História fornece vasta documentação do preço dessa ilusão. Movimentos revolucionários que se apresentaram como libertários rapidamente se converteram em regimes de regulamentação asfixiante, vigilância permanente e repressão da pluralidade. Jouvenel observa que, ao se instituir um aparelho estatal para servir à sociedade, cria-se “uma pequena sociedade que se distingue dela, com sentimentos, interesses e vontades particulares”[5]. Por si só a existência do estado é um risco, ainda que necessário. Quando o Direito, fruto da decisão de agentes estatais, se torna veículo de reengenharia social, o risco estatal é imensamente potencializado. Cada “falha” social, real ou imaginária na cabeça de “iluminados”, serve de pretexto para novas leis, sanções e, sobretudo, concentração de poder. Isso resulta em um ciclo vicioso, descrito por Jouvenel, onde o Poder, animado por um “egoísmo” intrínseco e disfarçado por promessas altruístas, cresce de forma exponencial e tirânica[6].

Na tradição liberal-conservadora, que moldou a teoria constitucional moderna, o Direito não é revolução, mas contenção. Sua função primordial é prover segurança jurídica, garantir direitos adquiridos e impedir que a força bruta, estatal ou privada, sufoque a liberdade. Russell Kirk, sobre John Adams, alerta que “a ordem social, como a sanidade humana, depende da preservação de um equilíbrio delicado”. Abandonar esse equilíbrio leva à tirania[7]. Ao impor mudanças através do direito, o legislador ou, pior, o magistrado, deixa de ser guardião da estabilidade para exercer experimentos ideológicos, muitas vezes sob a ilusão de uma missão redentora.

A retórica da mudança social transforma a própria lei em incerteza permanente. O Poder cresce onde as resistências são dissolvidas por promessas de redenção moral. A História confirma que regimes que prometem justiça social frequentemente resultam em “um poder mais extenso, mais detalhado, mais absoluto” que a monarquia absolutista, como observou Tocqueville sobre a Revolução Francesa[8].

É imperioso, portanto, reafirmar que o Direito não existe para construir uma sociedade ideal, mas para garantir que indivíduos, famílias e instituições intermediárias possam prosperar, ou “ser felizes”, como queriam os founding fathers, sem temer a voracidade de uma máquina estatal que se pretenda pedagoga da humanidade.

O Poder, ao proclamar-se “altruísta”, adquire uma aparência de transcendência clamando pelo direito de imolar os interesses privados à sua missão. O jurista, o advogado e o magistrado devem lembrar sempre que todo poder — inclusive o judicial — precisa de contenção e accountability, não de legitimidade messiânica.

Quando o Direito se coloca a serviço da revolução, instala-se o crescimento silencioso do poder estatal sobre as liberdades que ele deveria proteger. “Somos nossos próprios hunos”, escreve Jouvenel, alertando que a escalada do Poder, justificada por ideais elevados, pode nos levar a redescobrir “a arte perdida de matar de fome os não combatentes, de queimar as choupanas e levar os vencidos como escravos”[9]. A contenção do poder pelo Direito é, portanto, não apenas uma necessidade prática, mas uma barreira contra a barbárie disfarçada de progresso.

*Fernando Borges de Moraes – Advogado, especialista em direito do trabalho pela UNISC/ESA, sócio de Moraes & Horsth Advogados Associados, membro da Lexum.


[1] Cortez, Rita. “O Direito é um instrumento de mudança da sociedade.” Entrevista ao jornal O Dia. Disponível em: https://odia.ig.com.br/colunas/informe-do-dia/2025/06/7073866-o-direito-e-um-instrumento-de-mudanca-da-sociedade.html.

[2] Carvalho, Olavo de. A Mentalidade Revolucionária. Disponível em: https://olavodecarvalho.org/a-mentalidade-revolucionaria/.

[3] Jouvenel, Bertrand de. Du Pouvoir: Histoire Naturelle de sa Croissance. 2ª ed. Paris: Hachette, 1945. Versão em português: O Poder – História Natural de seu Crescimento. Trad. Célia Romagnolli. Brasília: UnB, 2015.

[4] Jouvenel, Bertrand de. O Poder – História Natural de seu Crescimento, p. 76.

[5] Jouvenel, Bertrand de. O Poder – História Natural de seu Crescimento, p. 151.

[6] Jouvenel, Bertrand de. O Poder – História Natural de seu Crescimento, p. 165-167.

[7] Kirk, Russell. A Mentalidade Conservadora, p. 191.

[8] Jouvenel, Bertrand de. O Poder – História Natural de seu Crescimento, p. 173.

[9] Jouvenel, Bertrand de. O Poder – História Natural de seu Crescimento, p. 181.

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