fbpx

Onze estados soberanos no Supremo Tribunal Federal

Print Friendly, PDF & Email
O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do sistema jurídico-político brasileiro. Composto por onze ministros que ocupam o cargo vitaliciamente, legitimam-se ao serem nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal.
O fato, contudo, renovado a cada nova nomeação, o faz comportar-se menos como um continente coeso do que como um “arquipélago de ilhas”, denominação outrora confidenciada por um de seus ministros, Sepúlveda Pertence. Trata-se, na verdade, de estados soberanos semanalmente reunidos para apreciar interesses, políticas e vieses diversos entre si, diametralmente opostos, por vezes gerando uma sorte numerosa de incongruências, suportadas diariamente pelos cidadãos.
Tendo uma gama surpreendente de competências atribuídas pela própria Constituição Federal (art. 102), compete-lhe a sua guarda, jugo sobre o qual avoca para si a (ir)responsabilidade de interpretar, em última instância, todo o ordenamento jurídico, submetendo-o, não rara vezes, ao temperamento de cada ministro, às suas singulares convicções sobre o Direito e às suas particulares definições acerca dos limites aos quais estão, eles próprios, constrangidos no exercício do dever de julgar.

Ao vivo, o país acompanha desagravos elegantemente trocados no íntimo dos mais importantes julgamentos, havendo poucos os que não se recordam das exações, a exemplo do “mau sentimento” e “pitadas de psicopatia”, evocadas de um partícipe ao outro, ocasionando, por ocasiões repetidas, o encerramento e a suspensão das sessões.

O cenário, contudo, tem razão de existir. Senão uma razão singular e objetiva, da qual possa-se afirmar contundentemente sua origem, uma outra, que a incrementa e corrobora. É preciso recortar alguns séculos na história para que se possa compreender adequadamente.

Em 1803, a Suprema Corte norte-americana, ao julgar o caso Marbury v. Madison, firmou um dos mais relevantes precedentes em matéria constitucional na tradição jurídica de common law. Com base no Artigo III da Constituição, John Marshall, então presidente da Corte, afirmou que os Estados Unidos da América obedeceriam a um “governo de leis” (Rule of Law, equivalente ao conceito de Estado de Direito), atribuindo ao Poder Judiciário a competência para eliminar, definitivamente, atos inconstitucionais do Congresso Nacional e do Poder Executivo.

A decisão, encarada por muitos como o estabelecimento da doutrina do judicial review, após um século adormecida, retomou o fortalecimento das premissas que deram origem ao ativismo judicial do presente. Implícita nas razões de decidir, figurou presunçosa confiança no Poder Judiciário como guardião da Constituição, mérito que os franceses revolucionários do século XVIII não deram à magistratura, historicamente formada pela nobreza e meticulosamente organizada para a preservação de seus privilégios.

Ao tempo daquela decisão, a Constituição norte-americana já contava com as ratificações relacionadas à Declaração de Direitos dos Cidadãos (amplamente conhecida como a United States Bill of Rights). Seus três primeiros artigos dividiram igualitariamente o governo federal em três grandes centros de competência: o Poder Legislativo, a partir de um Congresso bicameral; o Poder Executivo, composto pelo Presidente e pelo Vice-Presidente; e o Poder Judiciário, tendo como órgão de cúpula vertical a Suprema Corte. O reequilíbrio entre os três, costumou-se afirmar, estaria assegurado pela prática do check and balance.

A centralidade da Constituição norte-americana no tecido político do país permanece, guardadas as proporções, como originada: o texto constitucional foi encarado como uma vitória dos “fundadores” sobre a colonização britânica, sendo objeto de extrema reverência por parte dos cidadãos. Não se pode afirmar o mesmo em terras tupiniquins. Talvez, inclusive, tal circunstância explique as ganas de submeter o mais evidente texto constitucional às minúcias do Supremo Tribunal Federal, ainda quando desnecessário fazê-lo, por contenção judicial.

De toda forma, com o tempo, confortáveis por entender-se munidos de tão valiosos e “supremos” poderes, noções importantes sobre a doutrina constitucional foram sendo confundidas. A supremacia originalmente do texto constitucional migrou para os tribunais, outrora destinados à sua proteção. Não surpreende que, a conta gotas, conceitos como o de supremacia constitucional cedesse lugar ao de supremacia judicial, até que aquele desaparecesse quase por completo.

Supremacia judicial, no entanto, não satisfaria tamanhos anseios, afinal, pressupõe a formação de uma colegialidade coesa, constituída de auspícios sem protagonismos individuais em uma corte ou tribunal. Não sendo esse o papel desempenhado por seus componentes, as relações entre coxia e palco desidratam, uma vez mais, o objeto da supremacia.

Deixa de pertencer ao texto constitucional e às instituições destinadas à sua preservação e percorre um influxo vil até a figura singular dos julgadores. Estados soberanos são formados, dessa forma, vitaliciamente em Brasília, destinados a ocupar as cadeiras cujas últimas palavras darão a respeito da legalidade, constitucionalidade e da própria moralidade da nação.

É irônico observar (e, por vezes, um tanto quanto difícil admitir) que parte das imoderações judiciais desempenhadas por força do ativismo, em especial na política, no ambiente privado e nas liberdades individuais, tenham nascido (ou, ao menos, se fortalecido) nas premissas estabelecidas na decisão de 1803, pensadas, opostamente, sob o prisma do controle do Estado.

A lição parece simples, mas complicada de ser assimilada ou engendrada por aqueles que ainda depositam demasiada confiança (e tolerância) na magistratura. O Estado permanece como é, sedutor e visceral aos que ocupam seus gabinetes, tal como o alento de saber-se, não poucas vezes, acima da lei. Não se deve esquecer, dito isso, que existe apenas um Estado, manifestado sob as suas mais distintas vestes de Executivo, Legislativo ou Judiciário.

Quanto maior a confiança depositada no Estado como único e derradeiro guardião dos valores inscritos na Constituição, maiores as chances de esses valores não serem preservados.

*Brigida Passamani é colaboradora no Instituto Líderes do Amanhã.

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Instituto Liberal

Instituto Liberal

O Instituto Liberal trabalha para promover a pesquisa, a produção e a divulgação de ideias, teorias e conceitos sobre as vantagens de uma sociedade baseada: no Estado de direito, no plano jurídico; na democracia representativa, no plano político; na economia de mercado, no plano econômico; na descentralização do poder, no plano administrativo.

Pular para o conteúdo