Ode à liberdade!

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Desde o início do ano, temos sido cada dia mais solapados por notícias aflitivas para todos nós que nutrimos o mínimo apreço por nossas liberdades de pensar, falar e até de ir e vir. O período do recesso do judiciário, que, em nossos dias de disfuncionalidade na cúpula togada, poderia representar um sursis no convívio penoso com poderosos autoritários, antes se mostrou uma fase repleta de “ataques-relâmpago” por parte de magistrados que pareciam se revezar nessa função – ataques desferidos contra indivíduos de relevância no cenário político, contra o próprio erário e até contra organismo internacional, mas igualmente ameaçadores para cada um de nós.

Presenciamos uma sequência de medidas de busca e apreensão ordenadas por nosso censor magno contra três parlamentares de oposição, no âmbito de operações desencadeadas por supostos “atos antidemocráticos” – a entidade mais enigmática da nossa republiqueta, embora a mais citada em julgados de figurões – e, ainda, pela suspeita de formação, no governo anterior, de um aparato investigativo paralelo. Em todos os casos, o togado signatário dos mandados figurava como pretensa vítima e juiz a um só tempo, o que só se concebe mesmo em terras onde o Estado de Direito já tenha se tornado ficcional.

O primeiro congressista foi investigado em medida destinada a identificar “pessoas que planejaram, financiaram e incitaram atos antidemocráticos ocorridos entre outubro de 2022 e o início do ano passado[1]”, em clara violação à imunidade parlamentar. O segundo foi alvo de “visita” da PF por fatos pretéritos que poderiam até estar inseridos no âmbito das funções por ele desempenhadas à frente da agência de inteligência do governo brasileiro[2]. Já o terceiro, que sequer dispõe de foro privilegiado (sendo, em tese, excluído da jurisdição do supremo magistrado), foi “visitado” em decorrência de uma pretensa troca de mensagens com o segundo, em data na qual este nem mais figurava nos quadros da nossa inteligência[3]. Ora, se membros da elite política nacional são alvejados por arbítrios tão escancarados, o que poderá ocorrer com cada cidadão comum que se aventurar em postagens ou até mensagens privadas consideradas “antidemocráticas” pela fina flor da nossa magistratura?

Em atitude tão ou mais intimidatória quanto as recordadas acima, o mesmo censor magno ainda declarou, em solenidade recente, seus planos para, em conjunto com o ministério da justiça, “mapear pessoas antidemocráticas”, em atividade visivelmente “paralela” às suas atribuições constitucionais. Se tivermos em mente que o atual titular da pasta, um ex-supremo, foi a autoridade que, anos atrás, havia detido um advogado no aeroporto de Brasília por mera fala do causídico tida como “ofensiva[4], teremos uma boa noção dos riscos crescentes para os espíritos livres que ainda pairarem por aqui.

No tópico ligado à promiscuidade e ao descaso com verbas públicas, outro supremo assumiu inegável protagonismo, ao anular acordos de leniência firmados por empreiteiras flagradas em corrupção na Operação Lava-Jato, dispensando-as do pagamento de multas bilionárias[5]. Como fundamento a essa renúncia indevida a verbas estratosféricas às quais fazemos jus, o togado tornou a invocar mensagens hackeadas (obtidas por meios ilícitos, editadas e jamais periciadas), que insistiu em apontar como “provas” de parcialidade do magistrado e dos procuradores da era lavajatista.

E foi além o magistrado em sua vendeta contra a operação anticorrupção. Nos últimos dias, suscitou uma suspeita de malfeitos de autoria de organização internacional, poucos dias após uma denúncia, por parte do órgão, sobre a elevação no nível de percepção da corrupção entre nós[6]. Acionou um aparato investigativo contra o organismo a partir de notícias falsas, desmentidas por relatório conclusivo do próprio Ministério Público Federal, segundo o qual “qualquer informação que trate de supostos pagamentos à TI nesse contexto é inverídica. Não há previsão alguma no sentido de que a Transparência Internacional e/ou o MPF seriam responsáveis por gerir os R$ 2,3 bilhões estabelecidos no acordo de leniência, ou em seus aditamentos, a título de reparação de dano social pela J&F, tampouco seriam destinatários ou gestores de qualquer outro valor do mencionado acordo[7].”

Diante de tamanha generalização de abusos, é possível nutrir alegria por viver no Brasil de 2024?

Poucos dias após a queda do Muro de Berlin, na noite de Natal do memorável ano de 1989, o maestro norte-americano Leonard Bernstein executou a 9ª Sinfonia de Beethoven na então reunificada capital alemã. Escrita em período de surdez já avançada do compositor, a peça, em seu último movimento, traz o poema idílico “Ode à alegria” de F. Schiller, interpretado por quatro cantores e coro, cujo refrão celebra a “alegria, mais belo fulgor divino/filha de Elísio.”

Porém, em sua sensibilidade própria aos grandes artistas, Bernstein bem podia intuir que os alemães do leste não tivessem, naquele momento, qualquer capacidade de conceber a “alegria” em sua plenitude. Afinal, uma população recém-egressa do comunismo, regime responsável pelo maior extermínio de toda a história humana, e ainda assombrada pelos fantasmas da polícia política, das prisões ilegais e dos expurgos, carregava, na alma, no corpo ou em ambos, as chagas de décadas de autoritarismo.

Por sorte, o idioma alemão contempla, ao lado da palavra Freude (designativa de “alegria”) uma outra também iniciada por “f” e formada por duas sílabas: a mágica Freiheit (“liberdade”). Assim, graças a essa alegre coincidência linguística, o maestro ousou uma licença poética, trocou todas as aparições de Freude por Freiheit, e legou a toda a humanidade a mensagem de que, antes de poder sentir-se alegre, e como condição indispensável para tanto, é imperioso que o indivíduo enxergue a si mesmo como um ser livre.

Que a genialidade de figuras imortais como Schiller, Beethoven e Bernstein possa elevar nossas mentes bem acima da mediocridade do lamaçal no qual o país afunda a passos largos e nos inspire a prezar e a lutar incansavelmente pelas nossas liberdades!

[1] https://informejuridico.net/index.php/2024/01/18/deputado-carlos-jordy-vira-alvo-da-operacao-lesa-patria-capitaneada-por-moraes/

[2] https://informejuridico.net/index.php/2024/01/25/ramagem-e-alvo-de-nova-operacao-autorizada-por-moraes/

[3] https://www.poder360.com.br/justica/zap-entre-ramagem-e-assessora-de-carlos-e-de-outubro-de-2022/

[4] https://correiodoestado.com.br/cidades/advogado-e-detido-em-voo-apos-dizer-a-lewandowski-que-stf-e-uma-vergonha/342400/

[5] https://informejuridico.net/index.php/2024/02/01/toffoli-suspende-pagamentos-bilionarios-do-acordo-de-leniencia-da-odebrecht/

[6] https://informejuridico.net/index.php/2024/02/06/transparencia-internacional-denuncia-retaliacoes-injustas-por-parte-de-toffoli/

[7] https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/deltan-dallagnol/toffoli-contra-a-transparencia-internacional-a-falsidade-da-noticia-e-da-decisao/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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