O velho hábito de decidir por nós
Nos últimos dias, muito se falou sobre o PL 4/2025, que pretende reconhecer juridicamente as chamadas “famílias multiparentais e poliafetivas”. O projeto altera o Código Civil para permitir a constituição de núcleos familiares compostos por mais de duas figuras parentais, desde que fundados na “afetividade pública e estável”.
Fui perguntado, no programa Oeste com Elas, o que penso sobre isso — e respondo agora, mais claramente: essa não é uma pergunta para advogados. É uma questão que pertence à deliberação democrática, não à hermenêutica constitucional.
Digo isso como advogado e adepto do constitucionalismo republicano: eu acredito em direitos naturais. Acredito que existem princípios morais objetivos, anteriores ao Estado e que legitimam a própria Constituição. Mas acreditar neles não significa conceder a juízes — ou juristas — o poder de defini-los conforme suas próprias preferências. O Direito, como ciência, tem por ofício resguardar os direitos, não remodelá-los.
O jurista não é o profeta da moral coletiva. Não lhe cabe ditar o rumo da vida em sociedade, como se o seu título fosse um oráculo ético. O advogado, o juiz, o constitucionalista — todos eles entram em cena apenas quando a democracia se converte em ameaça; quando a maioria, no sentido madisoniano, deixa de ser vontade popular e passa a ser facção: um grupo que tenta impedir o indivíduo de viver pacificamente sua liberdade.
A verdadeira função dos advogados é outra — e mais modesta. Cabe-lhes traduzir em normas as convenções que a própria sociedade estabelece, condensar o consenso social em linguagem jurídica e depois aplicar essas normas com estrita observância ao texto. A técnica do Direito existe para disciplinar o que foi politicamente decidido, não para substituir a deliberação pública por preferências particulares. Quando o advogado passa a responder o que o povo deve querer e não apenas como deve formalizar o que quer, deixa de ser intérprete e passa a ser tutor.
É aqui que se revela o verdadeiro sentido do Judicial Engagement: a atuação vigilante e responsável do Judiciário — não para criar direitos, mas para impedir que o Estado ou as maiorias os destruam. Cabe ao juiz dizer “não” quando o poder político, seja pela vontade do governo ou do número, invade o espaço da liberdade individual — e dizer “isso não me pertence” quando o tema pertence à moral que o povo deve deliberar.
A fronteira é simples, embora o tempo e o poder se empenhem em confundi-la: a liberdade só cessa diante da agressão, nunca diante da escolha ou da divergência. Fora desse limite — o dano injusto a outrem —, nenhuma autoridade, nem estatal nem moral, tem o direito de intervir.
Antonin Scalia resumiu isso de modo exemplar: “Por que deveríamos supor que juízes sejam especialistas nesses temas? O que aprendi na Faculdade de Direito de Harvard que me dá mais discernimento sobre se deve haver um direito ao suicídio assistido, ao aborto ou à sodomia homossexual do que o cidadão comum? Juízes não têm qualificação especial para isso. Eu acredito na lei natural, mas, em uma democracia, cabe ao povo decidir o que entende que a lei natural exige. Diga isso em uma campanha política e depois ponha em votação. Porque todos discordamos sobre o que é a lei natural — e não faz sentido algum entregar essas decisões a um punhado de juízes.”
Scalia acreditava na lei natural, mas também na soberania popular. Nisso, aproximamo-nos — mas não coincidimos. Para ele, o juiz deveria conter-se diante da vontade democrática; para mim, deve conter-se apenas diante do que não ameaça a liberdade individual. Há direitos que não nascem do voto, mas o precedem: a vida, a liberdade e a propriedade — reconhecidos, no caso brasileiro, pelo artigo 5º da Constituição e protegidos de qualquer supressão até mesmo por emenda, nos termos do artigo 60.
Por isso, divergir de Scalia é reconhecer um limite anterior ao próprio Estado: o juiz não é o porta-voz da moral coletiva, mas o guardião da esfera onde o poder — mesmo quando majoritário — não pode entrar. O juiz republicano não é o que se omite, é o que se contém: não legisla, mas também não cruza os braços quando o poder invade o espaço da ação individual pacífica.
Como defendo em A República e o Intérprete, a Constituição republicana não é um manual de virtudes — é um sistema de contenção. O Judicial Engagement é parte essencial desse sistema: o dever de agir com firmeza quando o poder oprime e com silêncio quando o povo delibera. A atribuição e dever do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser — mas também garantir que ela nunca seja usada para negar a liberdade que a antecede.
O problema do PL 4/2025 não está apenas em seu conteúdo, mas no método. Não há debate social. O tema — que toca a estrutura simbólica e moral da família — não nasceu de uma discussão pública, mas de uma comissão de juristas que passou a fazer as vezes do povo. E é exatamente aqui que se revela a falha republicana: o poder de discutir o que a sociedade deve considerar legítimo foi terceirizado à técnica, como se a Constituição fosse propriedade corporativa da elite jurídica.
Colocamos o carro à frente dos bois. O Parlamento deveria decidir, e a comissão de juristas, redigir — mas o processo se inverteu. Hoje, os juristas deliberam e o Parlamento apenas chancela, muitas vezes sem ler o que aprova, guiado por facções e conveniências. É o simulacro da democracia: formalmente legítima, mas materialmente esvaziada.
O problema do PL 4/2025 não está apenas no tema, mas no método — e, sobretudo, na linguagem. As cláusulas abertas e os conceitos indeterminados que o projeto introduz transferem para o intérprete o poder de decidir o que a sociedade ainda não deliberou. Em vez de normas que expressem um consenso político, temos fórmulas elásticas que entregam ao juiz o papel de legislador moral.
O resultado é uma democracia sem deliberação: o povo já encontra suas decisões tomadas e o Parlamento reduzido a cartório. Confunde-se técnica com legitimidade, expertise com soberania. Quando a política é terceirizada aos especialistas e o Direito se converte em laboratório de moral, a democracia morre em silêncio — com pareceres e boas intenções. O problema, afinal, não está em novos conceitos de família, mas no velho hábito de decidir por nós.
*Leonardo Corrêa — sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, com LL.M pela University of Pennsylvania, Co-Fundador e Presidente da Lexum e autor do livro A República e o Intérprete — Notas para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores.



