O Supremo legislou. E está na capa do jornal
O Globo gritou, com alegria incontida, em letras de lei: “STF amplia responsabilização das redes pelo que publicam”. A manchete, cristalina, desmonta a tentativa do ministro Luís Roberto Barroso de negar o óbvio. Ao proclamar o resultado, ele afirmou que o Tribunal “não está legislando”, mas apenas “decidindo dois casos concretos”. Todavia, a própria decisão cria deveres gerais, revoga a proteção original do artigo 19 do Marco Civil e impõe obrigações positivas às plataformas, tudo sem qualquer participação do Congresso. Se isso não é legislar, precisamos redefinir o verbo.
Barroso recorre a uma inversão clássica: invoca a separação de poderes para violá-la. Diz que ao Legislativo cabe legislar, ao Executivo aplicar e ao Judiciário “aplicar a lei contenciosamente”. Na mesma respiração, confessa que o Supremo “precisa estabelecer critérios” para todo o Poder Judiciário. Trata-se da falácia da usurpação necessária: transformar a suposta omissão legislativa em licença para preencher lacunas com preferências morais da Corte.
Agora aparece a passagem reveladora:
“Por evidente, para julgar esses recursos, o Tribunal precisa ter a fundamentação das suas decisões, precisa estabelecer quais são os critérios […] porque esses parâmetros […] servirão como orientação aos demais tribunais do País acerca de como se comportarem.”
A retórica é sedutora, mas esconde a Novilíngua: “fundamentar” virou sinônimo de criar normas vinculantes. O artigo 93, IX da Constituição manda o juiz fundamentar para legitimar a sentença — não para instituir regras abstratas. Quando Barroso diz que precisa “estabelecer critérios” a serem aplicados por todos, confessa que está legislando sob outro nome. É a falácia da autoridade circular: apela à Constituição para ultrapassar a própria Constituição, como quem ergue a bula papal para provar a infalibilidade do papa.
O ministro abusa da falácia do espantalho ao alegar que “o Tribunal não tem a opção de não julgar” porque o tema é complexo e divisivo. Ninguém pediu omissão absoluta; pediu-se autocontenção. Complexidade não autoriza reescrever leis, apenas aplicá-las. Ao caricaturar a crítica, Barroso vence um debate que ele mesmo inventou.
A Corte poderia, se quisesse ir além do texto e até reconhecer uma inconstitucionalidade do artigo 19, quod non. Seria um erro, mas ainda dentro dos marcos constitucionais: declarar a inconstitucionalidade da norma, aplicar seus efeitos ao caso concreto, condenar a plataforma ao pagamento de indenização e remeter ao Congresso a tarefa de construir um novo regime legal. Esse seria o caminho republicano, com limites, prazos e freios. Mas não foi o escolhido. Preferiram legislar por atalhos e disfarçar a criação normativa com a maquiagem linguística de fundamentação. Não é interpretação com efeitos expansivos — é formulação normativa sem legitimidade democrática.
Afinal, a repercussão geral — mecanismo criado para racionalizar o fluxo recursal e uniformizar a jurisprudência — não transforma o Supremo em legislador positivo. O efeito vinculante da tese firmada deve respeitar os limites da função jurisdicional: interpretar e aplicar o direito vigente, não substituí-lo por um novo arranjo normativo. Quando a Corte aproveita o julgamento de dois recursos para erigir um regime jurídico novo, aplicável a todos os casos futuros, ela abandona o papel de intérprete e assume o de autor da norma. Repercussão geral não é licença para legislar da toga — e quando usada como tal, rompe-se a lógica da separação de poderes, erodindo o fundamento republicano do próprio sistema. Quando a toga se converte em caneta legislativa, o povo perde o direito de ser representado — e o juiz, o dever de julgar conforme a lei.
A gravidade se acentua quando se observa que o artigo 19 do Marco Civil da Internet trata de responsabilidade civil — matéria inserida no âmbito do direito civil, cuja competência legislativa, segundo o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, é privativa da União. Isso significa que somente o Congresso Nacional pode alterar o regime jurídico aplicável às plataformas e provedores. Quando o STF cria novos deveres, estabelece presunções de culpa e impõe condutas que não estão previstas em lei, não está interpretando: está legislando por outro nome. E mais grave: está usurpando a prerrogativa legislativa de um poder eleito, escancarando uma ruptura institucional que a Constituição jamais autorizou, nem por silêncio nem por omissão.
Enquanto o STF legisla da toga, plataformas terão de remover conteúdo de forma preventiva, manter representantes no Brasil, publicar relatórios de transparência e adotar sistemas de moderação robustos. Obrigações gerais, abstratas e imediatas — a própria definição de ato legislativo.
Essas obrigações foram consolidadas em uma espécie de “quadro normativo judicial” que o Supremo passou a impor à sociedade. Determinou-se, por exemplo, que plataformas são civilmente responsáveis pela não remoção imediata de conteúdos associados a crimes graves como terrorismo, incitação ao suicídio, discurso de ódio, pornografia infantil e atos “antidemocráticos”, termo esse sem definição legal específica, mas recheado de conotação política.
Estabeleceu-se ainda que conteúdos impulsionados por pagamento ou disseminados por redes artificiais de robôs presumem ilicitude, invertendo o ônus e impondo às empresas o dever de provar sua diligência. O STF também criou o conceito de falha sistêmica, pelo qual plataformas podem ser punidas mesmo sem vínculo direto com o conteúdo, bastando a não adoção de “medidas adequadas de prevenção”, conforme o “estado da técnica”. A expressão é ampla o suficiente para abranger qualquer coisa e vaga o bastante para significar tudo.
Além disso, as empresas deverão criar sistemas internos de notificação, instaurar canais permanentes de atendimento, publicar relatórios de transparência, revisar regras periodicamente e manter representantes no Brasil com plenos poderes para responder administrativa e judicialmente. Trata-se de um complexo regulatório detalhado, com múltiplas camadas de exigências, que não nasce da lei, mas de uma decisão judicial com efeitos vinculantes.
O resultado inevitável é a perplexidade dos juízes de primeira instância e tribunais locais, que agora precisarão aplicar uma tese com linguagem ambígua, exigências regulatórias típicas de agências especializadas e padrões de conduta genéricos que desafiam qualquer noção de tipicidade legal. Para aqueles ciosos do respeito ao texto, o precedente não oferece segurança, mas confusão. E quando o critério é indeterminado, o risco não é apenas de erro — é de arbitrariedade.
A capa de O Globo funciona como espelho incômodo: ao anunciar que o Supremo “ampliou regras” e “definiu critérios”, reconhece o caráter normativo da decisão. Entre a retórica de Barroso e o fato estampado no jornal há um abismo que só se fecha se aceitarmos, com resignação cívica, que legislar e julgar viraram verbos intercambiáveis quando conjugados pelo Supremo. Não aceito. A democracia republicana exige que cada poder permaneça no seu quadrado — não como convenção estética, mas como salvaguarda contra a tirania de ocasião.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.