O guardião do pacto: a função originalista do árbitro na arbitragem privada

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A arbitragem é, antes de tudo, um pacto. Um acordo voluntário entre partes capazes, que escolhem transferir a solução de seus conflitos para um juízo privado, fora do Poder Judiciário. Nela, não há coerção estatal originária. Há liberdade. Não há imposição hierárquica. Há escolha. A cláusula compromissória é, portanto, a epítome da autonomia privada: um instrumento de livre escolha, que não implica submissão ao arbítrio dos intérpretes, mas sim pressupõe uma atuação limitada e fiel por parte dos árbitros. O que se espera, portanto, não é a reprodução da lógica estatal sob outra roupagem, mas a preservação do pacto como foi firmado. A contenção do poder não está na cláusula em si, mas na hermenêutica e nos deveres que ela impõe.

É por isso que a arbitragem exige mais do que bons juristas. Exige intérpretes fiéis. Profissionais que compreendam que a legitimidade do processo arbitral não decorre da autoridade estatal, mas do contrato; não da autoridade institucional, mas do compromisso assumido entre as partes. O árbitro não é um filósofo do direito; é um executor do pacto. Sua função não é buscar a justiça material do caso concreto, mas respeitar os termos do ajuste. Sua régua não é a principiologia flutuante, mas o texto firmado. O árbitro originalista, nesse contexto, não é uma figura conservadora ou passadista — é, simplesmente, o único capaz de assegurar que o que foi acordado será respeitado nos termos em que foi pactuado.

Esse modelo de atuação encontra respaldo direto na concepção do constitucionalismo republicano, que venho defendendo como base teórica para a legitimação do poder no Estado de Direito. Ao contrário da visão majoritária que ancora a legitimidade em uma vontade coletiva abstrata — como se o povo fosse um ente soberano independente dos indivíduos —, o constitucionalismo republicano afirma que a única soberania legítima é a de cada pessoa natural. A autoridade é válida quando consentida, e o exercício do poder é legítimo quando limitado. Nesse sentido, a arbitragem privada oferece um ambiente institucional exemplar: o árbitro só possui autoridade porque as partes, como indivíduos soberanos, a conferiram por meio de um pacto voluntário. Assim como defendo que os juízes devem respeitar o significado original da Constituição — por ser ela “a lei que governa aqueles que nos governam” —, o árbitro deve respeitar o texto do contrato arbitral (a cláusula e o Termo de Arbitragem), que é a constituição do procedimento que lhe dá existência. O poder de decidir é, em ambos os casos, derivado, delegado, condicionado e revogável. Essa é a essência do republicanismo jurídico: conter o poder por meio do texto, proteger a liberdade pela previsibilidade e honrar o consentimento como critério fundamental de legitimidade.

A fidelidade do árbitro ao texto, nesse quadro, transcende a dimensão técnica. Trata-se de uma postura filosófica coerente com a ideia de que toda autoridade legítima deve derivar de um consentimento real, e não presumido. David Hume já advertia contra a falácia do contrato social como mito fundacional do poder político, criticando a noção de que o mero fato de viver sob uma ordem jurídica implicaria um consentimento válido. O mesmo raciocínio se aplica aqui, com mais razão: a cláusula compromissória é expressão concreta de vontade, e não ficção legitimadora de um regime qualquer. Quem aceita submeter-se à arbitragem não o faz em nome de uma ideia genérica de justiça, mas porque consente, voluntária e expressamente, em vincular-se àquela forma de resolução de controvérsias. O árbitro que extrapola esse limite trai não apenas a linguagem do contrato, mas o próprio princípio liberal do consentimento individual como fonte legítima de autoridade.

O mandato conferido ao árbitro, expresso no contrato arbitral, é a fonte de sua autoridade e o limite de sua atuação. Esse mandato, salvo estipulação expressa em contrário, obriga o árbitro a decidir com base no direito aplicável, e não em noções subjetivas de equidade. A escolha pela arbitragem de direito reflete a vontade soberana das partes de ancorar a resolução do conflito em normas objetivas e previsíveis, rejeitando a discricionariedade que poderia minar a legitimidade do processo.

Saliente-se, por oportuno, que a defesa de uma postura originalista na arbitragem também encontra ressonância em uma crítica mais ampla às estruturas informais de poder que, por vezes, se insinuam na prática arbitral brasileira. A previsibilidade interpretativa não é apenas uma virtude técnica, mas um recurso institucional contra o risco de personalização do processo. Não se trata de imputar desvios ou questionar a integridade de profissionais, mas de reconhecer que, em um sistema construído sobre confiança, a neutralidade exige fundamentos visíveis e replicáveis. O diálogo com a obra de Raymundo Faoro, especialmente sua análise do estamento burocrático em Os Donos do Poder, ajuda a iluminar esse ponto: toda forma de autoridade que se distancia do consentimento contratual e se ancora em vínculos tácitos corre o risco de resvalar para uma lógica patrimonialista. O árbitro originalista, ao manter-se fiel ao pacto, aos termos do contrato e ao significado original dos dispositivos legais aplicáveis, contribui para afastar essa sombra e consolidar uma cultura de legitimidade fundada na linguagem e no limite.

A arbitragem é filha da presunção de liberdade. E onde há liberdade, o texto importa. Cada cláusula, cada remissão a regulamentos, cada escolha de foro ou de direito aplicável carrega uma vontade presumida legítima, que deve ser respeitada em sua inteireza. Esse é o núcleo da hermenêutica originalista aplicada à arbitragem: o sentido objetivo das palavras no momento do pacto — não no sentido público das normas constitucionais, mas no sentido acordado, estável e verificável que orientou a contratação — deve prevalecer sobre qualquer tentativa de reinterpretação posterior à luz de valores subjetivos ou conveniências momentâneas. A previsibilidade é o oxigênio da arbitragem — e a contenção interpretativa, seu sistema respiratório.

Quando o árbitro abandona o texto e recorre a princípios vagos, valores morais ou à sua própria noção de justiça, rompe unilateralmente o pacto que deveria proteger. Arbitragem não é espaço para experimentação doutrinária, desenvolvimento de teses jurídicas ou exercício criativo do poder de julgar. E tampouco admite que se invoque equidade onde a escolha foi clara: arbitragem de direito. O uso disfarçado de critérios subjetivos como se fossem comandos normativos compromete a legitimidade do procedimento e trai a confiança das partes. O árbitro que decide moldando normas à luz de sua própria visão de mundo — como infelizmente também fazem certos juízes — extrapola os limites do mandato que lhe foi conferido. Não interpreta: legisla. Não executa o pacto: o reescreve. E ao fazer isso, rompe a base de confiança que sustenta todo o edifício arbitral.

Os textos legais aplicáveis às disputas arbitrais também merecem uma interpretação original. Assim como o contrato arbitral — a constituição do procedimento — deve ser respeitado em seu sentido objetivo, as normas legais escolhidas pelas partes ou impostas pelo ordenamento jurídico, como a Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996) ou o direito material aplicável, exigem do árbitro uma leitura fiel ao seu significado no momento de sua adoção. A abordagem originalista, inspirada nos cânones interpretativos e no sentido público dos termos legais assegura que o árbitro não substitua o texto por interpretações criativas ou princípios extralegais, que arriscam introduzir incerteza e subjetividade.

O jurisdicionado da arbitragem não quer criadores de normas. Quer guardiões do que foi acordado. A segurança jurídica nasce da contenção, não da criatividade. E a contenção começa na linguagem. Respeitar o texto — da lei e dos contratos — é respeitar as partes. Compreender o alcance do mandato recebido e manter-se fiel a ele, sem extrapolações, é sinal de compromisso com a liberdade e com a legitimidade. Ancorar-se no originalismo, nesse cenário, é afirmar a autonomia privada e reconhecer a responsabilidade individual como pilares de autoridade legítima.

O paralelo com a análise econômica do direito é inevitável. Como mostrou Gary Becker, o comportamento racional responde a incentivos. Ora, se as partes percebem que o resultado do litígio dependerá do humor do intérprete, da escola filosófica que ele adota ou da moralidade que ele invoca, o custo de transação dispara. A confiança no sistema esfarela. O prêmio pela fidelidade textual é a previsibilidade. O custo do decisionismo é a incerteza. A arbitragem prospera quando o futuro é calculável — e isso só ocorre quando os intérpretes se reconhecem limitados pela moldura linguística do que foi pactuado.

A atuação do árbitro, portanto, deve ser marcada por um dever de contenção técnica. Ele não é escolhido para inovar, mas para ser fiel. Não para moldar o Direito, mas para aplicá-lo conforme o sentido que tinha quando escolhido pelas partes. O arsenal hermenêutico dos cânones interpretativos de Scalia e Garner — como a regra do significado ordinário, o whole-text canon ou o fixed meaning canon — fornece, inclusive no Brasil, uma metodologia robusta para proteger o texto contra abusos interpretativos. E essa contenção não é estranha à tradição nacional: está presente na racionalidade interpretativa de Carlos Maximiliano e na densidade teórica de Lourival Vilanova, que também advertiam contra a superação do texto pela vontade do intérprete. O árbitro que adota esse modelo não abandona sua independência; antes, a honra, com disciplina intelectual.

Obviamente, será necessário tratar dos princípios abertos de nossas leis, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva, que integram o ordenamento jurídico brasileiro e orientam a interpretação das relações contratuais. Esses preceitos, consagrados no Código Civil e na jurisprudência, têm o mérito de promover a equidade e a cooperação nas relações privadas, mas não podem ser manejados como uma carta branca para anular a essência das relações econômicas pactuadas.

O árbitro originalista, ao aplicar tais princípios, deve subordiná-los ao texto do contrato arbitral e ao direito escolhido pelas partes, respeitando o sentido objetivo que orientou o acordo. Permitir que noções amplas de “função social” ou “boa-fé” suplantem a vontade expressa das partes é abrir espaço para o decisionismo, que erode a liberdade contratual ao introduzir incerteza nas trocas econômicas.

A análise econômica do direito, como demonstrou Gary Becker, ensina que a previsibilidade é o alicerce da confiança nos mercados. Quando princípios abertos são manejados sem rigor, elevam os custos de transação, introduzem incerteza e desestimulam a escolha pela arbitragem. Esses princípios — função social, boa-fé objetiva, cooperação — devem ser aplicados com comedimento, como instrumentos auxiliares e não como atalhos para reescrever o pacto. Usá-los como justificativa para ignorar o mandato conferido pelas partes é corroer a lógica contratual que sustenta a arbitragem. Somente com contenção hermenêutica será possível manter a arbitragem fiel à sua vocação: proteger a autonomia privada e salvaguardar a soberania individual.

A arbitragem não precisa de vanguardistas. Precisa de guardiões. Precisa de homens e mulheres que entendam que o poder conferido pelo compromisso arbitral é limitado, condicionado e revogável. Que o que dá legitimidade à sua decisão não é o resultado, mas o caminho percorrido — e que esse caminho começa e termina no texto pactuado. Quando o árbitro decide como um originalista, ele protege a liberdade das partes, honra o contrato, cumpre a Constituição e reforça a integridade do sistema.

Mais do que um procedimento técnico, trata-se de uma escolha de civilização. A arbitragem representa, ou deveria representar, o último reduto da governança jurídica fundada na autonomia privada. O árbitro originalista, nesse cenário, é mais do que um intérprete. É uma peça de resistência. Um agente de contenção. Um profissional que compreende que, diante da expansão de poderes difusos e da erosão da confiança institucional, o respeito à palavra dada é, talvez, nossa forma mais sofisticada de civilização. Na era do decisionismo, o árbitro originalista é o último guardião da liberdade pactuada.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum, autor de “A República e o Intérprete – Notas Para um Constitucionalismo Republicano em Tempos de Juízes Legisladores

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