O Estado, o número e a propaganda

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Acabei de ler uma notícia do Estadão e fui obrigado a comentar. A matéria informa que o governo federal decidiu utilizar a base de dados do Cadastro Único — o CadÚnico — para enviar mensagens via WhatsApp aos beneficiários de programas sociais. A justificativa oficial: comunicar ações governamentais. A prática real: transformar uma política pública em canal de propaganda institucional direta, usando dados pessoais de brasileiros vulneráveis como ponte para influência política. A gravidade desse gesto exige mais do que perplexidade. Exige denúncia jurídica.

O CadÚnico é uma base de dados sensível, construída ao longo dos anos para identificar e atender pessoas em situação de vulnerabilidade social. Seu uso está vinculado a políticas públicas de assistência, transferência de renda e inclusão social. As informações ali contidas — telefone, CPF, composição familiar, endereço — foram fornecidas pelos cidadãos em contexto de necessidade, confiança e finalidade específica. Esse é o núcleo do problema: a finalidade.

A Constituição Federal, em seu artigo 37, estabelece os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência como fundamentos da Administração Pública. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), por sua vez, impõe limites rigorosos ao tratamento de dados pessoais, exigindo base legal clara, finalidade legítima, necessidade e transparência. Ao utilizar a base do CadÚnico para envio de mensagens institucionais genéricas — muitas vezes exaltando ministros ou programas do governo — o Executivo ultrapassa essas fronteiras. Faz propaganda com o que foi confiado para política pública.

Pelo que consta, não havia previsão — nem comunicação clara — de que os dados seriam usados para integrar uma estratégia de comunicação direta com viés promocional. E mesmo que houvesse, essa finalidade já nasceria viciada. A Administração Pública não pode, sob pretexto de transparência ou utilidade institucional, transformar dados obtidos para execução de políticas sociais em instrumentos de reforço narrativo, fidelização simbólica ou engajamento político. A mera existência de consentimento ou aviso prévio não convalida uma finalidade inconstitucional, pois o poder público está vinculado aos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade. É a própria escolha da finalidade que, neste caso, viola a Constituição.

Mais grave ainda é a violação ao princípio da impessoalidade. O artigo 37, § 1º da Constituição veda expressamente qualquer forma de publicidade institucional que contenha nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos. Ora, se a mensagem enviada contém o nome do ministério, a imagem de ministros ou referências elogiosas à ação de um governo específico, já se ingressa no campo da propaganda irregular, com possível repercussão eleitoral.

Essa conduta também afronta o princípio da autodeterminação informativa, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como corolário da dignidade da pessoa humana. O cidadão tem o direito de saber quem trata seus dados, para quê, com qual base legal e com quais meios de controle. O uso unilateral da base de dados, sem consentimento, sem canal claro de descadastramento e sem transparência plena quanto ao conteúdo enviado, viola esse direito fundamental. Quando o Estado deixa de ser servidor e passa a ser transmissor, ele compromete a confiança.

Ademais, a prática pode configurar abuso de poder político, especialmente em anos eleitorais ou pré-eleitorais. Ainda que a comunicação não faça menção direta a partidos ou candidatos, a doutrina e a jurisprudência já reconheceram que o uso da máquina estatal para reforçar a imagem de um grupo político junto à população — sobretudo a mais vulnerável — distorce o equilíbrio democrático. É a lógica do favor, da retribuição simbólica, do vínculo criado artificialmente pela palavra governamental que chega ao celular com aparência de benevolência, mas raiz de captura.

O governo argumenta que consultou a Advocacia-Geral da União (AGU) e que não haveria impedimento legal para o envio das mensagens. No entanto, parecer jurídico não cria base legal. A LGPD exige norma expressa para o tratamento sem consentimento no âmbito de políticas públicas. Nenhum parecer pode revogar a Constituição ou dispensar o cumprimento dos princípios da administração. Se fosse assim, bastaria uma consulta interna para autorizar qualquer uso da máquina pública.

O que se observa é uma nova forma de instrumentalização do Estado: a transformação de uma política social em ativo político, de um banco de dados em ferramenta de propaganda, de um direito do cidadão em oportunidade de fidelização. Não é só a LGPD que está sendo violada. É o pacto republicano. É a confiança pública. É a separação entre governo e Estado, entre titularidade do poder e limite do poder. Ao usar o número para reforçar a narrativa, o Executivo transforma o dado pessoal em dado político. E o que era para ser política pública vira algoritmo de influência.

Não se trata de tecnofobia. Trata-se de decência institucional. A tecnologia pode e deve ser usada para melhorar a gestão, informar direitos, ampliar o acesso. Mas jamais para criar dependência, fabricar consenso ou disfarçar campanha com roupagem de utilidade pública. O dado confiado ao Estado não é canal de comunicação política. É um compromisso de respeito. E se o governo insiste em confundir as coisas, cabe à sociedade, ao Ministério Público, ao Judiciário e ao cidadão lembrar o óbvio: o WhatsApp pode ser da União, mas o telefone é do povo.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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