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O ENEM no banco dos réus?

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O problema da mentira é que, de tanto ouvirmos mentiras, perdemos a capacidade de reconhecer a verdade.” – Fala da série Chernobyl (HBO Max)

O país cujas autoridades tanto alardeiam sua “luta contra a desinformação” é o mesmo que luta para impedir o acesso de crianças e jovens a informações verdadeiras e qualificadas. O aparente paradoxo apenas encobre uma relação direta de causalidade entre as premissas acima: de fato, para que os indivíduos de uma certa sociedade aceitem com servilismo, e até admiração, a imposição da mordaça estatal, é indispensável “adestrá-los”, desde tenra idade, a acreditarem nas baboseiras mais deslavadas inventadas por seus próprios censores. A sobrevivência de um establishment tão autoritário depende de uma fé cega nos mitos de que a História se desenrolaria apenas pela luta de classes (e não pelas relações entre indivíduos) e de que lideranças “revolucionárias” estariam autorizadas ao uso de quaisquer métodos, desde que destinados à formação de comunidades ditas justas e igualitárias.

Nos últimos dias, as questões objetivas do Enem sobre linguagens e ciências humanas vêm despertando estarrecimento e indignação nas redes, na mídia e em alguns setores produtivos. E não é para menos! O desfile de quesitos desprovidos de sentido, mas forrados de ideologização, bem ilustra o total descolamento entre o universo utópico – ou distópico? – imaginado pela intelligentsia nacional e a difícil rotina daqueles que trabalham com dignidade para o sustento próprio e o de suas famílias. Em meio ao extenso rol de perguntas formuladas por nossa “intelectualidade”, escolhi, a dedo, algumas que me pareceram ter refletido, em cores mais nítidas, a sujeição de jovens ao binômio inutilidade-mentira.

Já na Questão 11[1], deparamos com uma “antologia antirracista de poetas estrangeiros em Portugal”, onde os poetas antologiados “queixam-se do desdém com que um grande número de portugueses acolhe o português brasileiro”. No enunciado da pergunta, uma poetisa paulista, citada com reverência, chega a afirmar que a “linguagem lusitana” seria uma “das mais violentas”. Sem qualquer pretensão de adentrar discussões sobre os contornos adquiridos pelos idiomas em cada novo território – que os professores nem sonham em suscitar! -, identificamos aspectos bem próprios ao charlatanismo progressista: o reducionismo de fenômenos muito complexos (como o linguístico) à estética da disputa entre coletivos, sejam eles classes ou, nesse caso, matriz e colônia, e o constante apelo à pseudo-violência do agente dominador como justificativa para a tal violência “revolucionária” como meio para a quebra das “injustas” amarras da opressão.

Na Questão 13, o texto de referência afirma, em alusão aos vocabulários técnicos de juristas, médicos e outros profissionais, que “a linguagem serviu para manter privilégios de grupos de poder e deixar outros de fora”, e que, “se o princípio é o verbo, o fim pode ser o silenciamento.” Na estética marxista da dominação, até o tecnicismo dos jargões deixa de ser um mecanismo natural de criação de palavras designativas de conceitos estranhos ao conhecimento comum para ser transformado em instrumento de poder puro e simples.

A Questão 20, relativa à destruição do Museu Nacional, reflete a preocupação exclusiva dos formuladores de que o incêndio possa ter “calado, para sempre, palavras e cantos indígenas ancestrais, de línguas que não existem mais no mundo”. Nenhuma palavra sobre as inúmeras relíquias da família real que lá habitou, em visível intuito orwelliano de apagar da nossa História qualquer vestígio da presença do que a intelligentsia enxerga como “monarcas brancos e opressores das demais etnias.”

A Questão 36 enuncia as “façanhas” da primeira atleta olímpica transgênero e suas lamúrias devido à “pressão de tentar me encaixar em um mundo que talvez não tenha sido feito para pessoas como eu”. Por óbvio, os acadêmicos se recusam a abordar a temática sob sua perspectiva tangível, examinando a deslealdade física na competição entre mulheres e humanos que tenham concluído sua puberdade em uma torrente de hormônios masculinos e que, somente em seguida, tenham optado pela transição de gênero. Para a intelligentsia negacionista de dados biológicos, a questão tem de ser direcionada rumo à perspectiva da suposta “opressão”, com os queixumes sobre a inexistência de uma categoria para “pessoas trans”.

A Questão 74 enuncia a fala de uma liderança indígena segundo a qual “o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo”, em virtude de suposta “exploração predatória”. Mais mentira, que contraria gráficos e dados científicos[2]!

Na Questão 82, o stalinista assumido Paulo Freire é apresentado como construtor de uma “pedagogia da esperança”, onde “as estruturas de opressão e desigualdades, apesar de serem naturalizadas, são socio e historicamente construídas. Daí a importância de os educandos tomarem consciência de sua realidade, para, assim, transformá-la.” Vemos, assim, o credo freiriano imposto, sem pudor, a jovens que não podem simplesmente escolher o caminho do estudo e da aquisição de conhecimento, sendo, antes, compelidos à via da militância. Ora, de onde mesmo parte a violência?

Por fim, não poderia faltar menção “honrosa” à questão 89, onde se enuncia que “o conhecimento local está sendo cada vez mais subordinado à lógica do agronegócio”, e que, para além do “modelo capitalista”, haveria outras consequências ditas “nocivas”, tais como “a mecanização pesada, a “pragatização” dos seres humanos e não humanos, a violência simbólica, a superexploração, as chuvas de veneno e a violência contra a pessoa.” Como temos visto ao longo do terceiro império lulista, é mandatório denegrir o agronegócio – logo o setor que nos carrega nas costas -, atribuindo-lhe protagonismo no que seria o “polo da opressão” contra a agricultura familiar e as populações inteiras “envenenadas”.

Isso sem falar nas diversas questões que enunciam, como premissa indiscutível, o tal “racismo estrutural”, não comprovado sequer por seus apologistas, mas que serve de bandeira perfeita para a criação de ministérios, distribuição de fartos recursos, e toda a espécie de desperdício de verbas públicas em benefício do círculo palaciano. Para evitar delongas e tédio para você, caro leitor, também pouparei comentários sobre o tema de redação intitulado “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, sob cujo mote espera-se que o estudante achincalhe o modo capitalista de produção e se posicione em prol da vitimização apriorística de todas nós, mulheres. Afinal, se o jovem não trocar sua roupagem de cidadão livre pelas vestes de militante de siglas de extrema-esquerda, seu acesso ao sistema universitário poderá se tornar um sonho distante.

Todas as farsas ora comentadas produzem consequências graves e até devastadoras na esfera do direito. Apesar do silêncio sepulcral do Ministério Público (fiscal da lei) e dos histriônicos togados de cúpula, os quesitos discutidos acima, assim como vários outros empurrados pela goela dos candidatos, geraram, sim, responsabilidades diversas para seus autores.

A imposição de enunciados mentirosos como verdadeiros violou o direito constitucional dos alunos à educação livre e baseada na pluralidade de ideias[3], tendo sido passível de provocar danos diretos aos jovens submetidos a uma quase “tortura” psicopedagógica. Por dedução simples, tal prática apresentou os feitios de um ilícito civil[4]. Ora, o prejuízo mais imediato residiu na transmissão de dados acadêmicos falsos a pessoas em formação, privando-as de acesso ao conhecimento documentado e autêntico, e da possibilidade de desenvolvimento das capacidades de intelecção e raciocínio. Dito de forma menos polida, graças à mistificação promovida pelos “intelectuais” do Enem, os alunos foram imbecilizados e, portanto, mais distanciados de uma profissionalização sólida que lhes permitisse angariar o próprio sustento e até ascender socialmente. Ou, visto sob outra ótica, foram tornados mais potencialmente dependentes de políticas públicas assistencialistas, por não disporem de capacitação suficiente que venha a lhes permitir concorrerem a boas colocações no mercado.

Outrossim, parece evidente que setores enxergados pela intelligentsia como legítimos representantes da “burguesia capitalista”, e cuja boa reputação tenha sido denegrida pelos enunciados mentirosos, se acham legitimados a buscarem compensações pecuniárias por danos morais. Bom exemplo consiste nos empreendimentos do agronegócio, enxovalhados nominalmente como supostos causadores de “superexploração, chuvas de veneno e violência”, e que, por isso mesmo, podem pleitear, em juízo, a indenização devida em decorrência de sua exposição pública ao vexame e à humilhação.

Na esfera penal, pelas mesmas razões trazidas acima, é bem possível sustentar que agricultores e pecuaristas também disponham de legitimidade para discutir, perante os tribunais, as possíveis práticas, por parte dos formuladores (pessoas físicas) das questões, de calúnia, injúria ou difamação[5], ou seja, de crimes contra a honra dos profissionais atuantes no setor agropecuário.

Muito mais polêmica – embora nada inverossímil – seria uma eventual equiparação da conduta dos intelectuais do Enem à prática de ameaça, crime contra a liberdade individual onde o agente faz pesar sobre o “pescoço” da vítima a iminência de um malefício injustificado e grave. Ora, considerando que, se os candidatos não assinalarem as opções mentirosas, serão reprovados, impedidos de frequentarem cursos universitários e, portanto, privados dos diplomas do ensino superior (entre nós, ainda uma exigência para a chegada aos melhores postos de trabalho), indago: chantagear um estudante a endossar mentiras explícitas, sob pena de barrar-lhe o acesso às universidades, não seria uma forma de lançar mão de seu poder para incutir em mentes jovens o temor de um “mal injusto”?

Não obstante a verificação de tantos danos concretos sofridos por estudantes e até por setores relevantes da nossa economia, confesso meu ceticismo quanto a uma efetiva responsabilização dos envolvidos. Não se trata de pessimismo, mas de uma abordagem realista do panorama judiciário que, pelo menos a partir da asfixia das operações anticorrupção e da retomada do poder por seus atuais ocupantes, vem sendo aparelhado em benefício de corruptos notórios e em detrimento das liberdades fundamentais.

Assim, ainda que os interessados movam as ações cabíveis, perante as instâncias competentes, para suscitarem todas as responsabilidades ensejadas pelas questões farsescas do Enem, em algum momento os casos cairão nas mãos dos togados de cúpula, todos adeptos declarados do culto progressista – e, então, os mesmos magistrados que não hesitam em usurpar atribuições dos demais poderes terão, na ponta da língua, o discurso pronto sobre uma “impossibilidade de avaliar o teor das questões”, por tratar-se de assunto da administração pública, de competência exclusiva dos gestores do ministério da educação.

Tornamo-nos mesmo o país das mentiras. Rimos diante de “mentirinhas inocentes”, como, por exemplo, os elogios ao desempenho de Ludmila na execução do hino nacional durante o GP de Interlagos[6], embora a funkeira tenha esquecido mais de metade da letra. Assim como toleramos as mentiras grossas, fingindo crer que um condenado em todas as instâncias possa ter assento na cadeira presidencial, que magistrados despreparados, autoritários e escancaradamente parciais possam alcançar, e ser mantidos na cúpula judiciária, e por aí vai. Precisamos nos reabilitar do vício da mentira e lançar luz sobre a verdade, ainda que incômoda e desafiadora. Espero que tenhamos coragem suficiente para a empreitada!

[1] chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://s3.glbimg.com/v1/AUTH_f17ad87e51fe4571a4f65b9f7089d7d2/Branca2023/Prova%20Branca%20Enem%201%C2%BA%20Dia%20-%20Oficial.pdf

[2] https://twitter.com/adrianogianturc/status/1721961071286563130?s=61&t=C8AQS0wkhMwusoiLarEc9w&fbclid=IwAR3WXn8vss8ZyqxM-BpVlh_bZ3urFH1UWjn_oLolsvoNmGRbihZCnlCquds_aem_AeZw_97QWtKuJM1mnkEpZ6BI_7A5bo0MZBoXp0t5r_z3-TqsDOVWDl7ExwrfzHCqY1U

[3] CF – “Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (…) II – liberdade de aprender (…); III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”

[4] Art. 186 do Código Civil. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

[5] Artigos 138 a 140 do Código Penal

[6] https://revistaoeste.com/brasil/ludmilla-hino-nacional-gp-formula-1/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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