Marbury v. Madison e o poder da recusa

Print Friendly, PDF & Email

Em tempos de protagonismo judicial desmedido, revisitar Marbury v. Madison (1803) é mais que exercício de história constitucional — é lição de autocontenção republicana. Mas atenção: ao contrário do mito reiterado em manuais apressados, o caso não “criou” o judicial review. O que John Marshall fez foi algo mais sofisticado, e, por isso mesmo, mais duradouro: afirmou o dever judicial de obedecer à Constituição, recusando-se a aplicar uma norma que lhe concedia poder — e que, segundo ele próprio, contrariava os limites textuais do artigo III[1].

O contexto é descrito com precisão por Randy Barnett e Josh Blackman em An Introduction to Constitutional Law[2]. A eleição presidencial de 1800 terminou empatada entre Thomas Jefferson e Aaron Burr. A Câmara, ainda dominada pelos federalistas, decidiu por Jefferson — na 36ª votação, a apenas duas semanas da posse. Adams, ainda presidente, manobrou para preservar sua influência: sancionou o Judiciary Act of 1801, criando 42 novos cargos de juízes federais. Nomeou aliados — os “midnight judges” — e teve as comissões assinadas e seladas às pressas, na véspera da transição.

Entre os nomeados estava William Marbury, designado juiz de paz para o Distrito de Columbia. A comissão foi assinada por Adams e selada por Marshall, então Secretário de Estado — mas não foi entregue a tempo. Quando Jefferson assumiu, ordenou a Madison, seu novo secretário, que não entregasse os documentos restantes. A nomeação de Marbury, embora válida, foi ignorada como gesto político. Jefferson queria marcar território, e o Judiciário era a última trincheira dos adversários.

Marbury, indignado, não buscou a instância inferior. Ingressou diretamente na Suprema Corte, pedindo um writ of mandamus para obrigar Madison a entregar-lhe a comissão. Baseou-se no artigo 13 do Judiciary Act of 1789, que autorizava a Corte a emitir mandados como esse em ações originárias.

A Corte se viu diante de um impasse. E não apenas jurídico. Como relatam Barnett e Blackman, Jefferson teria sinalizado que não cumpriria uma decisão que ordenasse a posse de Marbury. Marshall, agora Chief Justice, conhecia o risco: um pronunciamento sem eficácia poderia esvaziar a jovem Suprema Corte — ainda carente de prestígio e de aparato institucional. A resposta viria com uma coreografia impressionante.

Marshall dividiu sua opinião em três partes. Primeiro, reconheceu que Marbury tinha direito à comissão. A nomeação fora completada com a assinatura presidencial e o selo do Estado. A entrega seria mera formalidade. Mais que isso: Jefferson e Madison violaram um direito já adquirido de Marbury.

Segundo, Marshall sustentou que esse tipo de violação era suscetível de controle judicial. A entrega da comissão não era ato político, mas função ministerial. Não caberia ao Executivo reavaliar. Ao negar a entrega, Madison descumpriu um dever legal. A Corte, portanto, poderia — em tese — intervir.

É no terceiro ponto que a manobra de Marshall se consuma. Apesar de reconhecer o direito e o descumprimento, a Suprema Corte, disse ele, não tinha competência para conceder o remédio. O artigo 13 do Judiciary Act of 1789, ao permitir ações originárias para mandados de segurança, violava o artigo III da Constituição. A Suprema Corte tem jurisdição originária apenas para casos envolvendo embaixadores, ministros públicos ou Estados. Todas as demais causas devem iniciar-se em instâncias inferiores. Logo, a norma legal era inconstitucional — e, portanto, “null and void”.

Foi aqui que Marshall cunhou a famosa máxima:

It is emphatically the province and duty of the judicial department to say what the law is.” Mas essa afirmação não veio sozinha. Ela integra um trecho mais extenso, cuja leitura integral revela a densidade da concepção de supremacia constitucional que o Chief Justice buscava consolidar:

It is emphatically the province and duty of the Judicial Department to say what the law is. Those who apply the rule to particular cases must, of necessity, expound and interpret that rule. If two laws conflict with each other, the Courts must decide on the operation of each.

So, if a law be in opposition to the Constitution, if both the law and the Constitution apply to a particular case, so that the Court must either decide that case conformably to the law, disregarding the Constitution, or conformably to the Constitution, disregarding the law, the Court must determine which of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of judicial duty.

If, then, the Courts are to regard the Constitution, and the Constitution is superior to any ordinary act of the Legislature, the Constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply.

Those, then, who controvert the principle that the Constitution is to be considered in court as a paramount law are reduced to the necessity of maintaining that courts must close their eyes on the Constitution, and see only the law.

This doctrine would subvert the very foundation of all written Constitutions. It would declare that an act which, according to the principles and theory of our government, is entirely void, is yet, in practice, completely obligatory. It would declare that, if the Legislature shall do what is expressly forbidden, such act, notwithstanding the express prohibition, is in reality effectual. It would be giving to the Legislature a practical and real omnipotence with the same breath which professes to restrict their powers within narrow limits. It is prescribing limits, and declaring that those limits may be passed at pleasure.

That it thus reduces to nothing what we have deemed the greatest improvement on political institutions — a written Constitution, would of itself be sufficient, in America where written Constitutions have been viewed with so much reverence, for rejecting the construction. But the peculiar expressions of the Constitution of the United States furnish additional arguments in favour of its rejection.

The judicial power of the United States is extended to all cases arising under the Constitution.”[3]

Esse trecho, verdadeiro manifesto da supremacia constitucional, revela o núcleo do argumento de Marshall: se a Constituição é escrita para limitar o poder, permitir que o legislador a desobedeça por simples ato majoritário é corroer o pacto constitucional por dentro[4]. É entregar ao Legislativo o “poder de fazer qualquer coisa” — justamente o que a arquitetura republicana se propunha a impedir.

E, como a Corte não tinha jurisdição válida para emitir o mandamus, o pedido de Marbury foi negado. Marbury perdeu, mas a Corte venceu. Saiu do episódio fortalecida — não por confrontar o Executivo, mas por afirmar um princípio institucional. Nas palavras de Barnett e Blackman, foi um dos maiores movimentos de “jiu-jitsu” da história do direito: afirmar um poder ao mesmo tempo em que se recusa a exercê-lo, e com isso consolidar a autoridade judicial frente a uma ameaça real de desobediência presidencial.

Essa sofisticação tem sido perdida no discurso contemporâneo. O ativismo judicial brasileiro, frequentemente travestido de heroísmo interpretativo, esquece que Marshall venceu ao recuar. Que o controle de constitucionalidade não é ato de vontade, mas de contenção. Que a supremacia da Constituição não é instrumento para corrigir o mundo, mas para limitar o poder — inclusive o do juiz.

Marbury não foi o nascimento do judicial review. Como apontam Barnett e Blackman, a doutrina já existia nos debates da Convenção, nas práticas judiciais prévias e nos textos de Hamilton no Federalist No. 78. O que Marshall fez foi dar-lhe a legitimidade institucional definitiva — e o fez recusando um pedido legítimo, em nome de uma limitação textual que ele próprio não poderia transpor.

Essa é a lição que vale resgatar. O juiz não é um criador de normas nem um agente da história. Seu ofício é aplicar o texto — e, às vezes, negar aquilo que até poderia querer conceder. Porque a Constituição, para continuar sendo Constituição, precisa valer mais do que a vontade do intérprete. E porque a liberdade, para sobreviver, exige limites — inclusive ao entusiasmo judicial.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.


[1] “Article III

Section 1

The judicial Power of the United States, shall be vested in one supreme Court, and in such inferior Courts as the Congress may from time to time ordain and establish. The Judges, both of the supreme and inferior Courts, shall hold their Offices during good Behaviour, and shall, at stated Times, receive for their Services, a Compensation, which shall not be diminished during their Continuance in Office.

Section 2

The judicial Power shall extend to all Cases, in Law and Equity, arising under this Constitution, the Laws of the United States, and Treaties made, or which shall be made, under their Authority;–to all Cases affecting Ambassadors, other public Ministers and Consuls; – to all Cases of admiralty and maritime Jurisdiction;–to Controversies to which the United States shall be a Party; – to Controversies between two or more States; – between a State and Citizens of another State; – between Citizens of different States; – between Citizens of the same State claiming Lands under Grants of different States, and between a State, or the Citizens thereof, and foreign States, Citizens or Subjects.

In all Cases affecting Ambassadors, other public Ministers and Consuls, and those in which a State shall be Party, the supreme Court shall have original Jurisdiction. In all the other Cases before mentioned, the supreme Court shall have appellate Jurisdiction, both as to Law and Fact, with such Exceptions, and under such Regulations as the Congress shall make.

The Trial of all Crimes, except in Cases of Impeachment; shall be by Jury; and such Trial shall be held in the State where the said Crimes shall have been committed; but when not committed within any State, the Trial shall be at such Place or Places as the Congress may by Law have directed.

Section 3

Treason against the United States, shall consist only in levying War against them, or in adhering to their Enemies, giving them Aid and Comfort. No Person shall be convicted of Treason unless on the Testimony of two Witnesses to the same overt Act, or on Confession in open Court.

The Congress shall have Power to declare the Punishment of Treason, but no Attainder of Treason shall work Corruption of Blood, or Forfeiture except during the Life of the Person attainted.”

[2] BARNETT, Randy E.; BLACKMAN, Josh. An introduction to constitutional law: 100 Supreme Court cases everyone should know. Illustrated Edition. Frederick, MD: Aspen Publishing, 2023. eISBN 979888614086-6, p. 5 a 8.

[3] Tradução livre do trecho de Marbury v. Madison (1803): “É, de forma enfática, atribuição e dever do Poder Judiciário declarar o que é a lei. Aqueles que aplicam a norma a casos concretos devem, por necessidade, interpretá-la e explicá-la. Se duas normas entram em conflito, cabe aos tribunais decidir sobre a aplicação de cada uma.

Assim, se uma lei for contrária à Constituição, e se tanto a lei quanto a Constituição forem aplicáveis ao caso, de modo que o tribunal deva decidir de acordo com uma delas — ou conforme a lei, desconsiderando a Constituição, ou conforme a Constituição, desconsiderando a lei —, o tribunal deve determinar qual dessas regras conflitantes rege o caso. Isso é da própria essência do dever judicial.

Se, então, os tribunais devem considerar a Constituição, e se esta é superior a qualquer ato legislativo ordinário, a Constituição — e não tal ato — deve reger o caso a que ambas se aplicam.
Aqueles, portanto, que contestam o princípio de que a Constituição deve ser considerada nos tribunais como lei suprema são forçados a sustentar que os tribunais devem fechar os olhos para a Constituição e ver apenas a lei.

Tal doutrina subverteria os próprios alicerces de todas as Constituições escritas. Equivaleria a declarar que um ato legislativo que, segundo os princípios e a teoria do nosso governo, é completamente nulo, é, na prática, plenamente obrigatório. Equivaleria a dizer que, se o Legislativo fizer aquilo que é expressamente proibido, tal ato, apesar da proibição expressa, será efetivo. Seria conferir ao Legislativo uma onipotência prática e real com o mesmo fôlego com que se declara restringir seus poderes a limites estreitos. Seria prescrever limites e, ao mesmo tempo, afirmar que tais limites podem ser transgredidos à vontade.

O simples fato de que isso reduz a nada o que temos considerado a maior inovação das instituições políticas — uma Constituição escrita — já seria suficiente, na América, onde tais Constituições são objeto de tanta reverência, para rejeitar tal interpretação. Mas as expressões específicas da Constituição dos Estados Unidos fornecem argumentos adicionais em favor de sua rejeição.

O poder judiciário dos Estados Unidos se estende a todos os casos decorrentes da Constituição.”

[4] A ideia de que uma Constituição escrita impõe limites objetivos ao poder distingue nitidamente o modelo americano do sistema inglês de common law, onde a ausência de um texto codificado permite maior flexibilidade institucional. Como bem observa Marshall, aceitar que o legislador possa contrariar uma Constituição escrita por meio de atos ordinários é esvaziar sua razão de ser. O pacto constitucional, nesse modelo, repousa sobre a autoridade normativa do texto — não sobre convenções ou costumes —, razão pela qual sua violação por maioria legislativa compromete não apenas a forma, mas o próprio fundamento do constitucionalismo moderno.

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Lexum

Lexum

A Lexum é uma associação dedicada à defesa da liberdade e do Estado de Direito no Brasil. Fundamentamos nossa atuação em três princípios essenciais: (1) o Estado existe para preservar a liberdade; (2) A separação de poderes é essencial para a nossa Constituição Federal; e, (3) A função do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser. Promovemos um espaço para advogados liberais clássicos, libertários e conservadores, estimulando o livre debate e o intercâmbio de ideias.

Deixe uma resposta

Pular para o conteúdo