Liberdade em xeque: a conivência da mídia com o ativismo judicial

Print Friendly, PDF & Email

É notória a subserviência da grande mídia brasileira ao nosso estamento togado, cujos desmandos costumam ser escusados ou, pelo menos, suavizados por colunistas ou editorialistas. Passam, porém, despercebidos aos olhos do público leigo em direito os inúmeros erros conceituais propositadamente travestidos em verdades jornalísticas, com o fim de justificar o indefensável. O editorial de hoje de O Globo sobre o julgamento da constitucionalidade de dispositivo do Marco Civil da Internet (MCI) é um triste exemplo de peça de desinformação.

Logo no primeiro parágrafo, os editorialistas reportam a maioria formada, no STF, para o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 19 do MCI, mas lamentam que ainda falte “estabelecer de modo objetivo as regras que passarão a vigorar”. Em democracias liberais, a definição de normas de conduta cabe tão somente a congressistas eleitos, e não aos togados encarregados de sua aplicação. A constatação decorre do princípio da separação entre os poderes, consagrado como cláusula pétrea da nossa Constituição, que jornalistas não podem se dar ao luxo de desconhecer.

Apostando no tom emocional do voto do ministro Flávio Dino, o editorial se recusa a normalizar o uso das redes “para incentivar automutilação ou suicídio de crianças, e articular massacres em escolas”. Também me recuso a banalizar práticas tão deletérias, mas tenho lucidez e boa-fé suficientes para compreender que incumbe aos pais e tutores o dever de guarda e vigilância de menores sob os seus cuidados. A levar a sério a extrapolação argumentativa de Dino, repetida por O Globo, deveriam ser vigiadas de perto as vendas de facas, tesouras, agulhas e quaisquer outros objetos perfurantes ou perfurocortantes, passíveis de causar lesões corporais graves, e até levar a óbito.

Em seguida, o jornal celebra a tendência do STF de cancelar a vigência do artigo 19, e de ampliar o escopo do artigo 21 do mesmo MCI, que, em sua atual redação, atribui às plataformas a obrigação de remover conteúdos contendo cenas de sexo e nudez, mediante simples notificação do interessado. Mais uma vez, O Globo finge esquecer que a restrição do sistema notice and take down a situações extremas foi uma escolha legislativa, que togados não podem rever ao sabor de suas canetas.

Não satisfeito em advogar em prol de uma indevida atuação legiferante da corte, o editorial ainda estimula o Supremo a fazê-lo por inteiro, desmontando o mecanismo do artigo 19 até mesmo nas hipóteses dos atentados à honra. Nessa seara, alguns dos “legisladores de toga” se mostram dispostos a manterem o desenho atual do dispositivo, qual seja, a prolação de decisão judicial como fator ensejador da obrigação de remoção de conteúdo. Porém, na opinião dos editorialistas de O Globo, a providência não é suficiente para frear a pseudo-agressividade reinante nas redes, pois a atual versão do dispositivo do MCI “incentiva a prorrogação das ofensas, (…) mesmo quando o conteúdo é flagrantemente ilegal.”

Onde mesmo residiria a tal flagrante ilegalidade em comentários passíveis de caracterizarem ofensa à honra alheia? Em algum local encontrável apenas na imaginação desses jornalistas, pois ausente até da nossa legislação penal. Para que se tenha noção da irrelevância dos crimes contra a honra em nosso ordenamento jurídico, basta ter em mente que, nos casos de calúnia, difamação ou injúria, o juízo criminal só entra em cena após provocação da parte ofendida. Ao excepcionar a regra da legitimidade exclusiva do Ministério Público para a propositura de ações criminais, nosso Código Penal pressupõe que as condutas caluniosas, difamantes ou injuriosas sejam indiferentes à sociedade como um todo, sendo passíveis de causar danos tão somente aos alvos dos comentários. Contudo, na visão dos jornalistas globais, os crimes contra a honra, de baixíssimo potencial lesivo e punido com penas brandas, configurariam “barbaridades por trás do biombo da liberdade de expressão”.

Barbaridade mesmo consiste na relativização da livre manifestação opinativa por parte de uma imprensa que, em tese, deveria atuar e obter seus lucros precisamente graças ao emprego dessa liberdade. Muito além do papel de um jornal, a empresa desempenha função de veículo propagandístico, dissociado de qualquer compromisso com o rigor técnico dos assuntos abordados. Só esquece que, assim como todas as medidas alheias à legalidade estrita, a censura por ela hoje pregada contra as redes pode vir a ser empregada contra os textos globais. Se assim for, será tarde demais para chorar e se arrepender das próprias falácias.

À luz dos princípios estruturantes da Lexum — segundo os quais o Estado existe para preservar a liberdade, a separação de poderes é cláusula inegociável da Constituição e ao Judiciário incumbe apenas dizer o que a lei é, jamais o que ela deveria ser — o conluio entre imprensa “desinformativa” e magistrados ativistas revela-se duplamente pernicioso: mina o fundamento republicano que limita o poder e subordina a sociedade a uma engenharia moral que dispensa a representação popular. Se o jornalismo abdica de fiscalizar o poder e passa a legitimar a substituição da vontade do legislador pela caneta judicial, trai não apenas sua vocação crítica, mas, sobretudo, o compromisso com a liberdade que sustenta a própria razão de ser de uma democracia republicana.

*Katia Magalhães – advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no You Tube.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Lexum

Lexum

A Lexum é uma associação dedicada à defesa da liberdade e do Estado de Direito no Brasil. Fundamentamos nossa atuação em três princípios essenciais: (1) o Estado existe para preservar a liberdade; (2) A separação de poderes é essencial para a nossa Constituição Federal; e, (3) A função do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser. Promovemos um espaço para advogados liberais clássicos, libertários e conservadores, estimulando o livre debate e o intercâmbio de ideias.

Deixe uma resposta

Pular para o conteúdo