Liberdade de expressão na mira: STF e a nova censura digital

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No julgamento sobre o Marco Civil da Internet, o Ministro Alexandre de Moraes decidiu evocar John Stuart Mill. O fez com ironia, desdém e uma autoconfiança típica de quem se vê rodeado por ignorantes. Repreendeu os defensores da liberdade de expressão que “deram um Google” e se sentiram cultos ao citar Mill. De forma performática, zombou das “frases de efeito” que circulam nas redes, da falta de leitura séria dos clássicos e, claro, da apropriação indevida do liberalismo. Aparentemente, no que toca à liberdade, apenas a toga sabe o que diz.

Mas eis o ponto desconfortável: o Ministro, ao se dizer leitor de Mill, parece tê-lo compreendido menos do que os tais “internautas” apressados. E não por erro de citação, mas por inversão de essência. Ao tentar mobilizar On Liberty como fundamento para a limitação do discurso, Moraes atribui ao filósofo liberal uma doutrina que ele rejeitou explicitamente. O Ministro não leu errado: leu contra. E usou Mill para negar Mill.

A base de seu raciocínio é o chamado “princípio do dano”. De acordo com o voto, Mill reconheceria a legitimidade de interferência estatal na liberdade de expressão quando a conduta influenciasse “de modo prejudicial os interesses dos outros”. A partir daí, conclui-se que a sociedade — leia-se o Estado — adquire “jurisdição” sobre tal conduta. A leitura é engenhosa, mas falsa. Porque em On Liberty, o dano que autoriza a limitação da liberdade não é um desconforto difuso, nem um abalo no sentimento coletivo, muito menos uma ofensa subjetiva ao interesse público. O dano, para Mill, é objetivo, mensurável, concreto — e excepcional.

Mill sabia, também, que a tirania não se esgota na força estatal. A pressão social, quando organizada sob a aparência do bem comum, é capaz de esmagar indivíduos com a mesma violência do poder formal. Por isso advertiu, com precisão cirúrgica:

“Há um limite à interferência legítima da opinião coletiva na independência individual; e encontrar esse limite, e protegê-lo contra transgressões, é tão indispensável para o bom estado das relações humanas, como a proteção contra o despotismo político.”[1]

Essa advertência não é retórica — é estrutural. Está na base de tudo o que Mill escreveu sobre o poder. Não é difícil percebê-la na passagem inaugural de On Liberty, onde se estabelece com clareza a fronteira do poder legítimo da sociedade sobre o indivíduo: “o único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou coletivamente, para interferir na liberdade de ação de outro, é a autoproteção.” [2] Mill reafirma essa regra ao longo de toda a obra. Não se trata de um poder interpretativo para proteger o sensível, mas de um critério estrito para conter o violento. O discurso, salvo quando for direta e imediatamente incitador de dano físico ou material, é protegido — mesmo quando errado, mesmo quando ofensivo, mesmo quando repulsivo.

Moraes, no entanto, descola a ideia de dano da noção de liberdade individual. Aproxima-a perigosamente da lógica do interesse social, da harmonia coletiva, da ordem comunicacional. Ocorre que essa é justamente a razão pela qual Mill escreveu On Liberty: para alertar que a opinião pública e os seus aparelhos estatais — inclusive o Judiciário — são os primeiros a violar a liberdade sob o pretexto do bem comum. E o fazem, quase sempre, com intenções nobres, com justificativas morais e com citações de autores que jamais os autorizaram.

O trecho utilizado pelo Ministro — “tão logo que qualquer parte da conduta de alguém influencia de modo prejudicial os interesses de outros, a sociedade adquire jurisdição sobre tal conduta” — não trata de discurso, mas de conduta no sentido estrito. Não de uma ideia publicada num post, mas de um ato que, por si só, prejudica a esfera jurídica alheia. Mill não defendia a supressão de falas, mas a punição de atos. Não há nele autorização para censura prévia, remoção automática, nem intervenção hermenêutica do Estado sobre a linguagem do cidadão. O que há é o contrário: uma profunda desconfiança de todo poder que se arroga o direito de proteger o povo contra as próprias palavras.

Como bem diagnosticou Mill, o impulso regulador muitas vezes se mascara de moralidade pública, mas nasce do gosto pessoal da maioria dominante, que projeta seus próprios medos e desejos como normas universais:

O princípio prático que os conduz às suas opiniões acerca da regulação da conduta humana é o sentimento na mente de cada pessoa de que todos deviam ser obrigados a agir como ela — e aqueles com quem simpatiza — gostaria que agissem. […] Sempre que há uma classe dominante, a moralidade do país resulta, em grande parte, dos interesses e do sentimento de superioridade desta classe.”[3]

A consequência é clara: quando a preferência pessoal da elite política se traveste de interesse coletivo, a liberdade se torna refém do arbítrio. O que se apresenta como proteção da sociedade é, muitas vezes, apenas o espelho dos valores de quem detém o poder de punir. E quando esse poder é exercido sob o pretexto de moralidade difusa — sem critérios objetivos, sem responsabilidade individual, sem limites textuais — o direito deixa de ser um sistema de contenção e passa a ser um instrumento de imposição cultural.

Na formação política brasileira, como demonstrado por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, o direito não se consolidou como instância autônoma e racional, mas surgiu imerso na lógica patrimonial do poder, confundindo-se com a própria vontade do soberano. Já no modelo ibérico, “rendas e despesas se aplicam, sem discriminação normativa prévia, nos gastos de família ou em obras e serviços de utilidade geral”[4]. A norma, nesse quadro, não delimita: ela serve, ela reflete a estrutura de mando.

Essa lógica não foi superada com a modernização. Ao contrário, como Faoro explicitou no encerramento do livro, “o quadro administrativo, o estamento que, de aristocrático, se burocratiza progressivamente, em mudança de acomodação e não estrutural”[5], torna-se o centro de irradiação do poder. O domínio patrimonial, agora estatal, “apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos cargos”[6], operando por meio do direito e da legalidade como linguagem funcional de um poder que não se submete a freios. O “caminho burocrático do estamento, em passos entremeados de compromissos e transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças”[7].

A consequência é a captura da linguagem jurídica por uma elite que não se limita a gerir o Estado — ela o incorpora, como extensão de seu próprio poder histórico. E como todo poder que se pretende absoluto, esse estamento não tolera o dissenso: precisa regular o discurso, domesticar a crítica, moldar a linguagem pública aos limites do aceitável. É nesse ponto que a liberdade de expressão deixa de ser um princípio abstrato e se revela como obstáculo real à hegemonia cultural.

Dito isso, o “mercado livre de ideias” que Moraes caricaturiza como dogma não lido é exatamente o coração do pensamento liberal. Mill sustenta que mesmo as ideias mais absurdas devem circular, pois a verdade não é um ponto imóvel, mas um processo dialético. A liberdade, diz ele, é a única condição sob a qual a inteligência pode se desenvolver. Silenciar opiniões não é apenas ferir direitos — é empobrecer o debate. E um juiz que decide o que pode ou não ser dito com base naquilo que lhe parece útil, perigoso ou sensato talvez esteja mais próximo do censor do que do intérprete.

Para além da deturpação do cerne da obra de Mill, o voto de Moraes contraria uma longa tradição de responsabilidade civil, da qual somos tributários. Desde os primórdios, as sociedades vêm buscando alcançar o convívio pacífico entre seus membros com base no que o gênio romano cunhou como neminem laedere, que consiste no dever genérico, imposto a cada um de nós, de não lesar outrem. Assim, sempre que fazemos o que não dispomos da faculdade de fazer, incorremos em conduta lesiva, pois afetamos, contra a vontade de alguém, o rol de seus direitos. E é esse comprometimento coercitivo da esfera de liberdades alheias que se cunhou designar como ato ilícito, ensejador da obrigação de reparação dos respectivos danos.

Ao sustentar que ofensas no ambiente digital legitimariam a interferência estatal no âmbito de liberdade do pretenso ofensor, Moraes sofisma, lançando mão de uma premissa verdadeira para chegar a uma conclusão falsa. Sim, grosserias e denegrimento à reputação alheia podem gerar o dever de indenizar as partes lesadas. Desde que, porém, as condutas reprováveis venham a ser efetivamente praticadas, e que os ofendidos acionem o aparato judiciário em busca da reparação dos danos sofridos. Afinal, tanto a responsabilidade civil quanto a criminal só podem ser aferidas a posteriori, ou seja, após a prática dos ilícitos, que têm de ser apreciados mediante o devido processo legal, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

Na contramão das conquistas civilizacionais alcançadas pelos modernos estados de direito, a solução preconizada por Moraes reside na criação, para as plataformas, de obrigações não previstas em nossa legislação, de modo a torná-las repressoras de atos aprioristicamente julgados “ilícitos” pelo togado e por seus pares. Ao assim proceder, Moraes tutela não apenas os negócios das empresas, como também as deliberações dos supostos ofendidos por posts, que poderiam, por hipótese, até mesmo optar por não se insurgirem contra os pretensos ofensores. Afronta a autonomia da vontade individual, e deturpa o próprio conceito de lide, segundo o qual cabe tão somente ao prejudicado a prerrogativa de buscar os danos alegadamente incorridos, e ao judiciário, inerte por definição, o dever de citar o réu para resistir à pretensão formulada pelo autor.

O voto alexandrino toma as rédeas dos inúmeros conflitos espontaneamente gerados entre partes privadas, avocando, para Moraes, como agente público, uma prerrogativa indevida de rotular o que é certo ou errado, o que democrático ou não. Esvazia o espaço de discussão entre os litigantes acerca das condutas passíveis ou não de ensejarem responsabilidade civil, e “estatiza” a questão, ditando suas próprias verdades e mentiras, e sujeitando todos, plataformas e indivíduos, à sua cosmovisão.

Se Moraes fosse um magistrado de juizado especial, seus abusos poderiam ser diluídos em meio a outros julgados bem mais institucionais e reverentes aos princípios jurídicos, inclusive na seara da responsabilidade civil. Assustador, porém, é que o togado seja um membro da cúpula judiciária, cuja jurisprudência, ainda que distanciada da Constituição e dos princípios jurídicos de há muito consolidados, norteará decisões dos demais tribunais brasileiros.

No fim, o problema não está no uso do Google, mas no abuso da autoridade. Quando um Ministro da Suprema Corte ironiza os defensores da liberdade e, ao mesmo tempo, distorce os fundamentos que os inspiram, não temos uma lição de leitura — temos um alerta institucional. Quem interpreta Stuart Mill desse modo é capaz de interpretar a Constituição de qualquer maneira. Não é Stuart Mill quem legitima esse modelo de controle; é a sua traição que o sustenta.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

*Katia Magalhães – advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no You Tube.


[1] Mill Stuart, John. Sobre A Liberdade (Coleção Clássicos para Todos) (Portuguese Edition) (p. 27). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[2] Mill Stuart, John. Sobre A Liberdade (Coleção Clássicos para Todos) (Portuguese Edition) (p. 32). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[3] Mill Stuart, John. Sobre A Liberdade (Coleção Clássicos para Todos) (Portuguese Edition) (p. 28-27). Nova Fronteira. Edição do Kindle.

[4] Faoro, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro (Portuguese Edition) (pp. 35-36). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

[5] Faoro, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro (Portuguese Edition) (pp. 1134-1135). Companhia das Letras. Edição do Kindle.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

*Artigo publicado originalmente no site da Lexum com o título: “Quem Lê Assim, Julga Como bem Quer”. 

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