Imbecilidade estrutural: o espantalho do racismo reverso

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A sexta turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), na análise de uma ação de injúria racial movida por um homem branco contra um homem negro, que o chamou de “escravista cabeça branca europeia”, decidiu que não é possível haver tal tipo de injúria contra pessoas brancas. Conforme a decisão: “O conceito de racismo reverso é rejeitado, pois o racismo é um fenômeno estrutural que historicamente afeta grupos minoritários, não se aplicando a grupos majoritários em posições de poder. A interpretação das normas deve considerar a realidade concreta e a proteção de grupos minoritários, conforme diretrizes do Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial do Conselho Nacional de Justiça”.

Vamos por partes. Antes de tudo, convido o nobre relator, ou quem mais se refira ao tal “conceito de racismo reverso”, a apresentar onde exatamente está apresentado tal conceito. Quem o formulou? Quais são os teóricos dessa tese? Digam-nos os nomes dos autores defensores do dito racismo reverso. Não o farão, por uma razão muito simples: o pseudoconceito só existe em obras e na boca de identitários. Tal como acontece com o embuste da “democracia racial”, nunca proferida por Gilberto Freyre, a militância identitária criou o espantalho do racismo reverso para atacar interlocutores que dizem o óbvio ululante: o racismo não é um fenômeno exclusivo de brancos contra negros.

Se você aponta fatos óbvios e de conhecimento público como o extermínio de milhões de judeus (brancos) pelos nazistas (também brancos, aliás), ou o genocídio dos tútsis em Ruanda (que, anos antes, haviam sido eles mesmo genocidas daqueles que os vitimariam no futuro), pode muito bem aparecer um exemplar de militante identitarista esbravejando e dizendo que esses não são casos de racismo. Ora, é bom recordar que, geneticamente falando, não há raça em se tratando de humanos, e isso não é uma opinião, mas um fato científico. Sendo a raça uma verdadeira “construção social” (e é irônico que a turma que vê em tudo uma construção social se faz de sonsa diante dessa, que é uma construção, de fato), o racismo é também um fenômeno social, não biológico. Não há razão, portanto, para que ele seja exclusivo de um grupo sobre outro. Sequer há razão para que não possa ocorrer entre pessoas que, do ponto de vista fenotípico, seriam da mesma “raça”. Vislumbre dois homens, igualmente brancos, na Alemanha de Hitler, sendo o primeiro um orgulhoso membro do partido nazista e o outro um judeu; não seria a cor da pele que reduziria o repúdio que o primeiro sentiria em relação ao segundo, visto por ele, efetivamente, como de uma “raça inferior”.

Sim, é verdade que historicamente o racismo se manifesta predominantemente mais em uma direção que em outra, e ninguém, em sã consciência, negaria que os negros são, historicamente, as vítimas preferenciais de racismo no Brasil. Ocorre que a mesma história que atesta isso também demonstra que grupos que, no passado, estiveram no polo de vítima podem se converter em algozes. Citei há pouco o exemplo de Ruanda, em que uma minoria étnica (negra) praticou genocídio contra outra minoria étnica (também negra), com a situação sendo invertida após um lapso temporal, em que o grupo que outrora foi vítima se converteu em vitimador. Ora, não é a mesma esquerda que fala em “racismo reverso” que vive a acusar Israel de genocídio? Para fazerem isso (ainda que estejam equivocados), eles precisam acreditar que um grupo que foi vítima da maior atrocidade do século XX esteja ele mesmo a cometer semelhantes atrocidades no século XXI.

Como podemos ver, o conceito de racismo reverso, que as manchetes anunciam por aí como tendo sido rejeitado pelo STJ, não passa de um espantalho. Não há nem nunca houve racismo reverso; há simplesmente racismo, sendo que o polo de vítima não é exclusividade dos negros, ainda que eles sejam mesmo as principais vítimas no Brasil. Não é porque as mulheres são as maiores vítimas de estupro, por exemplo, que vamos negar que homens também podem ser estuprados (e são).

Na sequência, a decisão reproduz, pura e simplesmente, a tese do racismo estrutural: “pois o racismo é um fenômeno estrutural que historicamente afeta grupos minoritários, não se aplicando a grupos majoritários em posições de poder”. Ora, a sexta turma do STJ simplesmente pega uma teoria social e a toma como um fato dado. Como nos recorda o professor Paulo Cruz, tal tese é simplesmente impossível de ser comprovada. Aliás, aqui vemos o mal danado que é vulgarizar o que entendemos por ciência; com todo o respeito às humanidades (até mesmo porque sou um sujeito primordialmente de humanas).

A tese do racismo estrutural é reducionista, simplista e, por isso mesmo, popular. Apesar de toda a eloquência com a qual ela é comumente apresentada, a verdade é que não há profundidade nenhuma ali. Pior, há uma arrogância diametralmente oposta ao que ela é capaz de demonstrar. Em seu livro, Silvio Almeida não simplesmente apresenta uma teoria para explicar o racismo; ele propõe apresentar a teoria definitiva, a explicação que amalgamaria todas as demais, o que se denota na afirmação pretensiosa de que “o racismo é sempre estrutural”. A tese tem servido muito bem aos propósitos da militância identitária, pois ela se apresenta como algo supostamente irrefutável. Se o racismo é sempre estrutural e a sociedade é racista, de modo que reproduzimos o racismo, ainda que inconscientemente, então a própria negação da tese acaba servindo como uma evidência. “Você nega o racismo estrutural, pois você vive em uma sociedade racista e tem o racismo internalizado”. Não há forma mais desonesta de argumentar. Já consideraram que se pode negar a tese, não porque somos racistas inconfessos, mas porque ela nos parece equivocada?

A ideia de que o racismo só é possível diante de uma relação de poder é a pedra angular da teoria do racismo estrutural. Na verdade, se exercitamos nossas células cinzentas, muito rapidamente encontramos alguns problemas e contradições aí. Se é preciso haver uma relação de poder e ser capaz de impor “desvantagens sociais” para ser racista, como defende Almeida em seu livro, podemos supor que um homem branco e paupérrimo não pode ser acusado de racismo por um homem negro e rico, já que não pode lhe impor desvantagens sociais, mesmo que profira enormidades de cunho racial? Para apimentar um pouco mais, imaginemos que o homem branco em questão seja empregado do outro. “Ah, mas há mais homens ricos brancos do que negros”. Essa resposta, além de estúpida, é uma tentativa de sair pela tangente sem responder à pergunta. Se a tese se pretende de aplicação universal, por óbvio, não pode ignorar nem mesmo aquilo que consideram como “exceção”. Mas não preciso me alongar mais neste ponto; basta recordar que a derrocada de Silvio Almeida, após acusações de assédio, ironicamente, colocou sua teoria em xeque, como defendi em minha análise do caso.

Por fim, assim como a tese do racismo estrutural tem o defeito de subordinar os atos individuais de racismo a uma suposta lógica estrutural da sociedade, a decisão do STJ, ao incorporar tal tese, tem o defeito de subordinar a análise do caso, que deveria ser do fato concreto, considerando os indivíduos envolvidos, a um raciocínio coletivista: “a interpretação das normas deve considerar a realidade concreta e a proteção de grupos minoritários”. Ora, um homem buscou a justiça por ser chamado de escravista. O que o “grupo” do qual ele faz parte tem a ver com isso? Percebam que a análise dos fatos é jogada para escanteio, ao passo que a posição identitária dos personagens é que é levada em conta. Como o denunciante é branco e os brancos são um grupo majoritário (em termos de representação e poder), então ele não pode ser vítima de injúria racial, não importando qualquer consideração sobre sua vida ou mesmo sua condição socioeconômica (afinal, a única relação de poder que lhes importa são critérios fenotípicos). Aliás, como bem lembra o professor Paulo Cruz em vídeo que gravou sobre o tema, sendo a vítima italiana, mesmo se seguíssemos a lógica minoria versus maioria, ele também deveria ser considerado minoria por sua condição de imigrante.

Enquanto as hostes identitárias celebram a decisão do STJ, podemos estar certos de que foi criada uma jurisprudência perigosíssima. É óbvio que os brancos jamais experimentarão o racismo experimentado pelos negros no Brasil, então não é dessa forma que eles podem ser vítimas. Ocorre que ao menos parte da militância identitária vem há muito adotando uma retórica incendiária, flagrantemente discriminatória e abertamente revanchista. Não há falta dos que se declaram contra o que chamam de “palmitagem” (relações inter-raciais que provocariam o “embranquecimento da raça”), dos que atribuem tudo que podem encontrar de negativo ao que copiosamente chamam de “branquitude”, dos que acusam indiscriminadamente de racistas todos que deles discordam, e por aí vai, tudo em nome de uma lógica psicótica e revanchista. O que o STJ fez, na prática, foi declarar que é lícito que se discriminem abertamente os brancos. Militantes identitários podem agora praticar tranquilamente seu racismo, que, claro, não é reverso, mas tão somente racismo.

Mas esse nem é o ponto mais grave. O mais grave aqui é um tribunal superior jogar pela latrina o artigo quinto de nossa Constituição, que declara que somos todos iguais perante as leis, “sem distinção de qualquer natureza”. Ora, ou reconhecemos que o STJ estabeleceu sim uma distinção ou admitimos que somos desprovidos de cérebro. Distinção, aliás, é tudo o que os identitários querem — sempre com a desculpa de reparação histórica. Que eles não saibam que o remédio para a discriminação, em todas as suas vertentes, não é ignorar, mas fazer valer esse nobre, sábio e fundamental princípio de nossa Constituição, de que somos todos iguais e que não pode haver distinção, até podemos entender. Mas a sexta turma do STJ não enxergar que assassinam, dentre tudo o que poderiam assassinar, justamente os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros (posto que é desse princípio que se derivam todos os demais)? Bem se vê como anda o nível de nossos tribunais superiores. E há quem possa ter pensado que só ao STF competia destruir a carta magna. Talvez não seja uma enfermidade institucional, mas estrutural. Podemos chamar de imbecilidade estrutural.

Fontes:

https://www.metropoles.com/brasil/racismo-reverso-stj-decide-nao-ha-injuria-racial-contra-brancos

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/04022025-Racismo-reverso-STJ-afasta-injuria-racial-contra-pessoa-branca-em-razao-da-cor-da-pele.aspx

Racismo Estrutural — Silvio Almeida

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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