Festa na Corte: da era Weber para a era Barroso

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Em sistemas modernos e funcionais, que priorizem a eficiência ao personalismo, a transferência de cargos em instituições ocupadas por servidores públicos não-eleitos costuma ter lugar em ambiente de sobriedade e discrição. Discursos breves e protocolares da autoridade em retirada e da recém-empossada são símbolos suficientes de que, a partir daquele momento, o órgão em questão estará sob “nova” direção. “Nova”, aliás, tomada em sentido bem amplo, pois, nos Estados de Direito sob o império das leis e não dos homens, a mudança do rosto à frente das cortes constitucionais de justiça não reserva lá maiores surpresas para os jurisdicionados.

Já entre nós, na terra do homem cordial e dos bacharéis verborrágicos, tudo tem de ser espetacularizado, com os holofotes e as narrativas sempre a serviço dos “donos do poder”; e assim foi a transição da era Weber para a era Barroso no comando do STF, durante a qual testemunhamos cenas incompatíveis com os padrões de conduta minimamente decentes que esperaríamos de uma cúpula judiciária.

A começar pelas palavras de despedida de Weber, em que a magistrada, entre risinhos e olhares voltados para seu colega Alexandre de Moraes, acentuou um suposto “apreço dos detentos e das detentas do 08.01” pelo togado, ao lado do qual Weber e as comunidades carcerárias da Papuda e da Colmeia teriam “rezado”, a convite dos próprios prisioneiros[1]. Ora, com exceção talvez de poucos santos, nenhum ser humano nutre afeição por alguém que assina seu decreto prisional! Muito menos quando o encarceramento é determinado de modo irregular e por motivações politiqueiras, como tão debatido por aqui. Assim, além do atecnicismo da maioria de suas decisões, de sua sede legislativa, da politização dos eventos do 08.01 e da iniciativa do autêntico veículo de propaganda intitulado “Democracia inabalada[2], a ministra, até na retirada, manchou a toga com o fel do regozijo pelo sofrimento injusto imposto a outrem.

No dia seguinte, deparamos com o discurso de posse de Barroso[3] que, mesmo para os mais alheios aos assuntos do espaço público, soou como um “conto de fadas”. Logo no trecho inicial, dedicado à sua biografia melosa desde o colégio da “vovó Maria” até sua chegada às Universidades de Harvard e Yale, foi gritante o silêncio sobre seu mais notório feito profissional na fase pré-toga: a defesa do assassino italiano Cesare Battisti, por ele designado, por ocasião dos fatos, como “pessoa não-perigosa e de longa data ressocializada[4].” Em seu único caso criminal como causídico, o suporte técnico de Barroso foi determinante para justificar a concessão de asilo político ao criminoso notório, em plena consonância ideológica com a gestão petista da época. Por mera coincidência, pouco tempo depois, Dilma Rousseff viria a indicar o advogado para a suprema corte “da forma mais republicana que um presidente pode agir: não pediu, não insinuou, não cobrou”, nas palavras de Barroso, em sua posse à frente do tribunal.

Em comentários sobre nossa estrutura judiciária, o togado louvou nossa Constituição exatamente no aspecto onde mais deveria criticá-la, ou seja, no amplíssimo rol de temas por ela contemplados. Aliás, o magistrado chegou a lançar mão desse excessivo intervencionismo da Carta para apontá-lo como “causa da judicialização ampla da vida no Brasil.” Distorceu uma premissa verdadeira para desenhar a conclusão falsa, pois nem mesmo a nossa lei maior, embora se imiscua indevidamente em quase todos os aspectos da vida diária, autoriza juízes não-eleitos a redigirem normas para toda uma coletividade.

No parágrafo seguinte, vimos uma defesa da autocontenção do STF e de seu diálogo com os demais poderes e com a sociedade, frase farsesca se contraposta à realidade do noticiário. Como defender tais virtudes se o próprio Barroso tem legislado sem qualquer pudor, como se viu em matéria possessória – Marco temporal! -, no desrespeito à coisa julgada e em inúmeros outros temas de atribuição exclusiva do Congresso? Como sustentar a imposição de limites à corte se o togado não só contempla como até se orgulha das investigações de ofício, das mordaças e das prisões políticas que se tornaram rotineiras no universo judiciário?

Em praxe já consagrada por juízes supremos, que parecem copiar e colar o mesmo texto-padrão, de tão pasteurizado, Barroso dedicou inúmeras linhas à chamada “vitória da democracia e das instituições”, assinalando, em tom de ressalva, que, “justiça seja feita, na hora decisiva, as Forças Armadas não sucumbiram ao golpismo”. Como se houvesse uma expectativa apriorística de “golpismo” das Forças, seja lá o que isso for, e como se, na hora H, elas tivessem resistido à tentação de uma derrubada violenta dos poderes constitucionais. Mais um toque de farisaísmo, pois, como tão discutido neste espaço, o togado autor de frases personalistas e parciais, ao feitio das conhecidas “nós somos a democracia” e “derrotamos o bolsonarismo”, não hesitou em desrespeitar a pluralidade inerente ao sistema democrático e em abusar de sua toga para reduzir o debate público ao único viés possível sob sua ótica autoritária: “empurrar a história na direção certa.” Certa, é claro, no entender de onze sacrossantos magistrados, e sob a chancela do novo Zeus do Olimpo togado.

Também foi de estarrecer que, no tópico alusivo à proteção aos direitos fundamentais, Barroso tenha avocado para si e seus pares a defesa das pautas por ele entendidas como louváveis, tais como as lutas das ditas minorias identitárias, dos povos indígenas, da proteção ambiental, o combate à pobreza, e tantos outros temas genéricos, fora dos autos dos processos sobre conflitos específicos entre certas e determinadas partes. Não satisfeito com o já vasto rol de atribuições conferidas ao Supremo pela Constituição, o togado tornou a incorrer no vício já clichê na cúpula da magistratura: a atuação como formulador de políticas públicas, e, ainda mais grave, sem ter tido um voto popular sequer!

Assim, após discurso à altura de manifesto político – e não de compromissos efetivos de um árbitro de litígios -, Barroso fechou sua fala afirmando assumir a presidência do STF e do CNJ “sem esquecer que sou, antes de tudo, um servidor público. Um servidor da Constituição.” A par de todas as violações praticadas contra a lei maior, será que o uso da expressão chula “perdeu, mané!” para se dirigir a um compatriota efetivamente revelou compostura diante do pagador de impostos?

Encerrada a liturgia, eis que se iniciou a parte dionisíaca da celebração, com a substituição das togas pelos paletós bem cortados e da sala de julgamento do Supremo por um ambiente informal, repleto de iguarias. A festança contou com a presença dos togados Fachin, Moraes, Zanin, Toffoli, e Gilmar Mendes, e com a organização e o patrocínio da AMB – Associação de Magistrados[5], entidade que pleiteou e conseguiu, graças à própria corte, uma “legitimação” para o julgamento de casos patrocinados por escritórios de parentes dos magistrados. Tamanho conflito de interesses que, em países mais rígidos, abalaria os assentos dos togados, foi noticiado com naturalidade por aqui.

O clímax do convescote foi atingido no karaokê de Barroso, durante o qual o magistrado entoou, com paixão, a canção Evidências, com sua letra repleta de paradoxos, iniciados por “quando eu digo que deixei de te amar/é porque eu te amo”. Versos como “faço tipo falo coisas que eu não sou/mas depois eu nego” revelam ambiguidades de alguém que diz algo e, em seguida, se contradiz, que pode se comportar de um modo em público e de forma diametralmente oposta em círculo privado.

Já em êxtase, o togado soltou a voz no refrão “e nessa loucura de dizer que não te quero/vou negando as aparências/disfarçando as evidências”, como se fosse recomendável a exposição pública do magistrado supremo do país proferindo, em primeira pessoa, a palavra “loucura”. Que aparências serão essas a serem negadas, e que evidências a serem disfarçadas?

E prosseguiu, como que inebriado, cantando e gesticulando os versos “chega de mentiras/de negar o meu desejo”, saídos do fundo de sua emoção, como autêntica catarse. Afinal, o ato diário de mentir e a criação de uma “segunda pele” como forma de negação pública de desejos vorazes podem levar o indivíduo a estourar de exaustão. Ou não?

Como se diz, in vino veritas, seja qual for o “vinho” em questão. Certo é que nossos poderosos togados nos transmitem suas mensagens constantes de autoritarismo, e, se parcela significativa da população insiste em virar as costas às “evidências”, é por conveniente sabujice ou embotamento de todos os sentidos. Pena que uma sociedade inteira tenha de arcar com as consequências nefastas.

[1] https://revistaoeste.com/politica/rosa-weber-revela-bastidor-de-visita-com-moraes-a-papuda-e-colmeia/

[2] https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/democracia-inabalada/

[3] chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.conjur.com.br/dl/discurso-barroso-posse-28-setembro.pdf

[4] https://www.conjur.com.br/2011-jun-10/barroso-advogado-garantiu-liberdade-cesare-battisti

[5] https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2023/09/29/barroso-sobe-ao-palco-para-cantar-com-diogo-nogueira-na-festa-da-posse.htm

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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