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Entre caçadas e mordaças, a agonia das liberdades

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Uma massa tendente à uniformidade de ideias e posturas, acuada entre um pavor de possíveis consequências nocivas de seu livre pensar, uma imbecilização voluntária como via de fuga para as agruras do cotidiano e uma abulia conformista refletida em exclamações como a velha “do que adianta falar de política se a gente não pode mudar nada mesmo?” – assim tenho enxergado boa parte dos meus conhecidos da vida real que, fora das bolhas pseudo-ideológicas das redes, buscam entretenimento em memes, piadas ou fofocas, mas se mostram prontos a mudarem o rumo da conversa assim que puxo algum assunto tido como mais delicado. E nem haveria de se esperar algo diferente! Afinal, as censuras, as prisões e os inquéritos de ofício pelos “crimes de opinião”, tão discutidos aqui, a noção disseminada de golpismo como simples rascunhos em “papel de pão”, a homogeneidade da maioria dos comentários midiáticos e as notícias sobre cassações e inelegibilidades pouco convincentes – coincidentemente impostas a figuras identificadas como “oposicionistas” ao grupo político assentado no poder – têm sido eficazes na intimidação dos nossos arroubos de espontaneidade.

Após um longo voto em seu português pobre, o ministro Benedito Gonçalves do TSE declarou Bolsonaro inelegível por suposta disseminação de notícias falsas[1]. “Para surpresa de ninguém[2], profetizava um jornalista global em suas redes, logo no início da sessão, incorrendo em sincericídio, pois o resultado de qualquer julgamento deve ser uma “surpresa” pautada por parâmetros legais pré-determinados. Se é certeza apriorística, aí já não há mais que se falar em Estado de Direito e, muito menos, na função a ser individualmente desempenhada por cada julgador.

A aludida ação com vistas à inelegibilidade do ex-mandatário havia sido movida pelo PDT, com base tão somente em uma reunião com embaixadores estrangeiros, durante a qual Bolsonaro havia criticado nossas urnas eletrônicas. Como debatido em vídeo do meu canal no YouTube[3], tal encontro não teria sido justificativa suficiente para privar alguém de seus direitos políticos, pois foi realizado em data anterior ao período eleitoral e não configurou abuso do cargo presidencial para a obtenção de vantagem indevida na corrida (como teria ocorrido, por exemplo, com o emprego da posição para detratar oponentes). Antes, refletiu apenas a livre manifestação de uma postura referente ao nosso sistema de votação, em conduta que, apesar de não vedada – pelo menos, não ainda! -, tem incomodado sobremaneira nossos togados de cúpula.

Tanto assim que, em sua fundamentação escancaradamente copiada das declarações reiteradas do ministro Alexandre de Moraes, Gonçalves caracterizou a postura de Bolsonaro e seus seguidores como a daqueles que “transbordam, enfim, no golpismo, sob a forma de um flerte perigoso com soluções extremas (…)”. Aliás, fez questão de citar as diversas “advertências” de Moraes acerca da possibilidade de cassações e até prisões de políticos tidos como ameaças à ordem democrática. Atuando quase como ventríloquo de seu superior, mencionou, como precedente, a primeira obra-prima alexandrina no domínio de mandatos eletivos: o dito “caso Franscischini”, abordado em minúcias neste espaço[4], relativo à cassação de deputado estadual em virtude apenas dos questionamentos por este suscitado em torno das urnas. Assim, em uma interpretação literal do recado dos “deuses de toga” aos mortais eleitos, conclui-se que se acham a perigo os mandatos de todos os políticos que tiverem ousado questionar nosso sistema eletrônico de votação. É esse mesmo o grau de respeito de nossos magistrados à liberdade de expressão e ao voto popular?

Note-se, ainda, que Gonçalves determinou a inelegibilidade apenas de Bolsonaro e deixou intactos os direitos de seu vice, fingindo desconhecer que, à luz do nosso atual sistema constitucional, a chapa em uma disputa pela presidência da república é una. Assim como o eleitor, na urna, tem forçosamente de optar por um titular e um vice da mesma chapa, da mesma forma a cassação e/ou a inelegibilidade do “principal” têm de afetar também o “acessório”: ou bem ficam ambos inelegíveis, ou bem são ambos absolvidos da acusação de crime eleitoral. Porém, esse raciocínio já seria excessivamente técnico para o viés politiqueiro das recentes decisões proferidas pela corte eleitoral.

Como se não bastassem tantos abusos explicitados no voto do togado, naquele mesmo dia, poucas horas antes do julgamento, havíamos deparado com mais uma ameaça descabida e iminente a um veículo de comunicação. Para desolação de todos nós, entusiastas das liberdades, o Ministério Público Federal de São Paulo havia acabado de ingressar com uma ação civil pública contra a rádio Jovem Pan, pleiteando a revogação de sua concessão devido à prática supostamente ilícita de “disseminação de desinformação[5]”.

Debruçada sobre as mais de duzentas páginas da inicial, constatei, com tristeza, a atuação de um MP desempenhando a tarefa de um verdadeiro departamento de censura, com uma riqueza de detalhes e um rigor de fazerem inveja aos setores de propaganda de ditaduras reconhecidas enquanto tais. De fato, os signatários da petição demonstraram uma precisão cirúrgica ao “examinarem” diversas atrações da programação da emissora, apresentando longas transcrições de opiniões manifestadas por jornalistas e convidados, com a devida menção aos horários, às datas e até aos períodos de transmissão.

O leque de assuntos objeto dos comentários repreendidos pelo MP não poderia ser mais amplo, englobando os mais variados acontecimentos políticos do ano eleitoral, assim como diversas decisões judiciais, atuação das forças armadas e de grupos como o MST, e, é claro, inúmeras questões acerca do uso de urnas eletrônicas. Segundo os autores da medida, aliás, nada originais no plágio do discurso padronizado por Moraes, Dino e demais autoridades, a emissora estaria abusando de sua concessão para desacreditar as instituições nacionais e o próprio sistema democrático, razão pela qual caberia ao Estado concedente do sinal radiofônico determinar a sua revogação.

Logo o MP, por definição o fiscal da lei e da Constituição Federal que veda qualquer forma de censura, se desvia de suas funções, e, em vez de atuar como órgão empenhado na defesa das liberdades do cidadão, passa a agir como longa manus de uma cúpula judiciária favorável à mordaça, e de um grupo político ora assentado no Planalto, assumidamente simpatizante de ditaduras estrangeiras e de medidas de cunho autocrático, em particular, da “regulação da mídia”. Que não passa de triagem prévia dos conteúdos a serem consumidos pelos espectadores.

Para cúmulo do absurdo, os signatários da famigerada ação, além da revogação da concessão da emissora, ainda requerem ao juízo que: (i) obrigue a União Federal a “reunir informações oficiais, junto ao Tribunal Superior Eleitoral, sobre a confiabilidade dos processos democráticos por ele organizados, e transformá-las, se necessário com o expertise da Secretaria de Comunicação Social – SECOM ou da Empresa Brasileira de Comunicação – EBC, em conteúdos de radiodifusão sonora”; (ii) estipule para a JP as obrigações de veicular os aludidos materiais, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00, e de pagar a singela quantia de R$ 13.406.672,80 (treze milhões, quatrocentos e seis mil e seiscentos e setenta e dois reais e oitenta centavos), a título de “danos morais coletivos”; e, ainda (iii) condene a União a fiscalizar e punir outras concessionárias que venham a divulgar conteúdos produzidos pela JP. Alguma necessidade de comentar a insanidade totalitária emanada de tais pedidos?

Como o assunto não foi apreciado pelo juízo paulista, tal ameaça gravíssima ainda pode ser tida como iminente. Ainda. Porém, nada desprezível, por tratar-se de medida em perfeita sintonia com todas as decisões teratológicas debatidas neste espaço, e estimuladas, reitere-se, pelo núcleo político da situação.

Em vez de assegurarem o efetivo funcionamento da democracia por meio do respeito ao voto popular, assim como a liberdade irrestrita de manifestação de todos, aí incluídos os comunicadores, profissionais ou não, nossos togados de cúpula e, agora, parcela do MP lançam mão de seu poder e de sua autoridade para asfixiar a individualidade de cada um de nós, até nos transformarem em uma enorme massa pasteurizada, controlada a todo instante em um ambiente cinzento e triste, como no orwelliano 1984. Porém, haveremos de resistir a todos esses arreganhos autoritários.

[1] https://www.conjur.com.br/2023-jun-28/relator-reuniao-bolsonaro-superou-francischini

[2] https://twitter.com/bernardomf/status/1673830169180504065?s=61&t=vAea_HVccS-S5Qhd-SVCBg

[3] https://www.youtube.com/watch?v=S1wcpfyrRKg&t=67s

[4] https://www.institutoliberal.org.br/blog/o-stf-que-cassa-mandatos-e-caca-a-vontade-popular/

[5] https://www.poder360.com.br/justica/mpf-pede-fim-de-concessao-da-jovem-pan-por-desinformacao/

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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