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Em plena catástrofe gaúcha, as prioridades são a mordaça e o ardil

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Opiniões, intercâmbio de ideias, compartilhamento de emoções, críticas e demais formas de manifestações do livre pensar – as variadas ramificações da comunicação humana têm sido cada vez mais demonizadas por nossos senhores de mando, cujo pavor da opinião pública tem sido diretamente proporcional à pressão da mordaça por eles imposta. Temendo ser desnudados em sua incompetência gerencial e em seus propósitos escusos à frente da coisa pública, nossos figurões sequer permitem que as dores das vítimas das enchentes catastróficas no Rio Grande do Sul despertem um laivo ínfimo de compaixão em seus corações embrutecidos e aplaquem sua fúria censura.

Triste exemplo de descompostura foi o recente chilique do ministro das Comunicações Paulo Pimenta. Em vez de demonstrar preocupação com os alagados, seus semelhantes em humanidade, o potentado escancarou sua intolerância em relação ao que designou como “narrativas desinformativas e criminosas vinculadas às enchentes e desastres ambientais ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul .” Traduzindo para o português corrente junto a pessoas mais lúcidas e decentes, a crise de nervos de Pimenta foi desencadeada por manifestações opinativas, segundo as quais o trabalho de voluntários estaria se revelando bem mais eficaz na resposta à tragédia que a atuação de agentes estatais. Nada além de convicções pessoais, amparadas pela garantia constitucional à liberdade de expressão, mas que levaram o figurão a acionar o aparato investigativo de uma polícia federal transformada em agência política, pronta a promover uma intimidação covarde de indivíduos enxergados como opositores. Qual será mesmo a serventia de um ministério das comunicações? Certamente, nenhuma relacionada à viabilização das comunicações pelo país, pois tem sido a Starlink, empresa privada de propriedade de Elon Musk, a maior responsável pela conectividade do povo gaúcho nesses dias tão penosos.

Em fiel cumprimento às ordens de seus chefões, o mensageiro “Bessias” agiu na mesmíssima toada e convocou as principais plataformas digitais para determinar a retirada de pretensas “fake news” sobre a tragédia no Sul. Tudo, por óbvio, em mais uma afronta ao Marco Civil da Internet, que condiciona a remoção de conteúdo à prolação de decisão judicial fundamentada, com a devida especificação do material infringente.

Sempre alinhado ao atual executivo em matéria de sanha censora, o Judiciário não tardou a exibir seus habituais arreganhos autoritários. Na esteira da “jurisprudência Moraes”, uma magistrada plantonista do Rio Grande do Sul atendeu a um pedido de urgência formulado pelo Ministério Público local para forçar a Meta (dona do Facebook e do Instagram) a retirar um conteúdo supostamente “desinformativo” acerca da catástrofe.

Diante das reações do poder constituído ao cooperativismo e à solidariedade de centenas de heróis anônimos, as pessoas passarão a nutrir um receio crescente de publicar fotos e/ou vídeos não protagonizados por agentes estatais. Por consequência, populações inteiras vitimadas pela catástrofe terão acesso cada vez mais reduzido a informações cruciais em períodos de calamidade, tais como a disponibilização, por particulares, de meios de transporte para salvamento, e a organização, por associações civis, de postos de distribuição de donativos. Em tragédias de grande porte, a real desinformação pode ser a ponte macabra entre saúde e enfermidade, entre vida e morte.

No pós-emergência, a censura imposta pela aliança executivo-judiciário tende a gerar consequências tão nefastas quanto aquelas produzidas no calor da intempérie. Durante a regulação dos sinistros envolvendo quedas de barragens, de pontes, de outras edificações e a aniquilação de centenas de vidas humanas, poderemos deparar com peritos engenheiros, geotécnicos e hidrólogos verdadeiramente apavorados diante da perspectiva de identificação de evidências de imperícia ou até de negligência grossa por parte de agentes estatais. Como frutos venenosos do medo reinante em regimes autoritários, haverá um comprometimento na aferição das possíveis causas, ou dos fatores agravantes do desastre, na responsabilização (civil e criminal) dos envolvidos e na adoção de medidas concretas com vistas à prevenção de futuras ocorrências da mesma natureza.

É pouco provável, por exemplo, que, na vigência do regime luloalexandrino, técnicos venham a se debruçar, com seriedade, sobre o relatório intitulado “Brasil 2040”, com previsões sobre a elevação do nível do mar e o aumento das chuvas no Sul, mas sumariamente arquivado por Dilma Rousseff . Menos provável ainda é que a eventual análise do documento por parte de algum intrépido engenheiro venha a resultar na atribuição de responsabilidades aos mandachuvas da época, mesmo que haja fundamento para sustentá-las.

A catástrofe gaúcha, além de ter servido de pretexto adicional para calar uma sociedade onde mais de metade dos indivíduos receiam manifestar suas opiniões por medo de punição , ainda veio bem a “calhar” como pano de fundo para o exame de uma das ações judiciais mais relevantes para uma economia ainda tão estatizada quanto a nossa. Enquanto a sociedade brasileira acompanhava, em choque, os registros dos primeiros dias de calamidade no Sul, teve menos olhos para atentar para os detalhes do julgamento sobre a constitucionalidade da Lei das Estatais. Após a canetada do ex-supremo Lewandowski, suspendendo, em março de 2023, a vigência de dois importantes dispositivos da norma , o atual assentado no Planalto dispôs da chancela togada para, ainda em seu primeiro trimestre de governo, “diligenciar” o aparelhamento das estatais de maior porte. Assim, durante mais de um ano de conveniente engavetamento do caso no Supremo, teve tempo mais que suficiente para concluir seu feito de colocar seus “prepostos” à frente das maiores empresas controladas pela União.

Eis que, em plena tragédia no Rio Grande do Sul, os togados recolocaram o assunto em pauta e, agindo como juízes comprometidos com seus deveres de ofício, formaram maioria para reconhecer a constitucionalidade tanto da vedação às nomeações políticas quanto da quarentena para ex-integrantes de partidos. Contudo, também chegaram ao “entendimento” majoritário de que todas as nomeações de Lula, efetuadas ao abrigo de liminar de Lewandowski, deveriam permanecer intocadas. Ora, até mesmo um leigo em direito concebe a contradição grotesca na deliberação: ou bem a Lei das Estatais é inconstitucional e todas as nomeações sob sua égide são válidas; ou bem ela é constitucional, e seus efeitos são produzidos desde sua promulgação, razão pela qual todas as indicações políticas feitas entre a sua entrada em vigor e o julgamento no Supremo só podem ser inválidas!

A mesma corte que inventou a “censura só até o dia 30” acaba de implementar as “nomeações proibidas por lei, mas admitidas por terem partido de Lula”. Novo ardil supremo para, abusando do momento singular de comoção nacional, confirmar as indicações lulistas a empresas públicas e sociedades de economia mista, instrumentos perfeitos para a consecução das mais tenebrosas transações, como vimos durante os anos da Lava-Jato.

Desprezo à eficiência, concentração de poderes nas mãos de autoridades estatais e sufocamento à livre iniciativa individual, até mesmo na solidariedade em catástrofes. Ao lado da oficialização da mordaça, todas essas monstruosidades, concebidas em ambientes de exercício quase débil da cidadania, ceifam uma a uma as nossas liberdades. A tragédia riograndense talvez tenha deixado ainda mais à mostra todas as nossas feridas institucionais, que não param de sangrar. Da mesma forma como talvez tenha sido um fator catalisador de legítima revolta de uma sociedade civil, que não suporta mais a “coleira” de nossas lideranças autoritárias. O resultado desse caldeirão em ebulição só o futuro apontará.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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