Como a censura piora a desinformação

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Que o estado falimentar em que a liberdade de expressão se encontra em nosso país tem sido objeto do meu mais atento escrutínio e instigador das mais severas críticas, resta claro em meus artigos predecessores. Que a dita desinformação tem sido usada como uma desculpa conveniente para produzir as censuras mais abjetas, tenho repetido até à rouquidão. Que a pretensão do Estado em definir o que é verdade ou não, com o fim de combater às fake news, é hoje a maior agressão à ordem liberal, ninguém que leve a sério a democracia liberal pode pôr em xeque. No entanto, isso não significa que não reconheçamos que as fake news, a desinformação e afins, não sejam um problema. Não é porque rejeitamos o “remédio” por eles oferecido, isto é, censura, que não sejamos capazes de reconhecer a natureza do problema ou não estejamos aptos a oferecer soluções muito mais eficazes e que não comprometam a liberdade. Na verdade, como procurarei demonstrar, o tal “remédio”, não só é intragável, por autoritário e antiliberal, como piora o mesmo mal que dizem querer combater.

Comecemos pelo começo: até que ponto as fakes news são realmente um problema? Aqueles (censores) que oferecem soluções exageradas para o mal o fazem porque também exageram as consequências das notícias falsas. Para eles, a divulgação de mentiras coloca em risco a própria democracia, uma vez que comprometeria o poder de tomada de decisão do eleitor. Nesse espírito, muitos deles sugerem que Bolsonaro foi eleito em 2018 tão somente por causa das fake news. Será mesmo que elas sozinhas conseguem explicar uma diferença de mais de 10 milhões de votos? Questiona-se aqui a própria inteligência de uma parcela expressiva do eleitorado. De acordo com essa narrativa, foram elas (fake news), e não a rejeição ao PT, as grandes fieis da balança para decidir o pleito.

Se assim foram as coisas, como explicar a derrota de Bolsonaro em 2022? Não duvido haver quem tenha a cara de pau de dizer que foi a postura “firme” (leia-se truculenta) do TSE, presidido por Moraes, de combate à desinformação que iluminou o debate e salvou do obscurantismo cidadãos que outrora haviam sido enganados e levados ao “erro” (leia-se voto) na “terra sem lei” que era a internet antes de o esclarecido Moraes entrar em ação. Essa tese, feita à medida das susceptibilidades egocêntricas do grande “iluminista”, por acólitos e puxa-sacos, dentre os quais um bando que me recuso a chamar de jornalistas, assim como a anterior, faz troça da inteligência popular. Uma análise intelectualmente honesta admitirá que, tanto em 2018 quanto em 2022, o fiel da balança foi a rejeição, primeiro ao PT, depois a Bolsonaro (tanto que a vitória de Lula foi reconhecidamente estreita).

De cara, podemos concluir, então, que a tese das fake news decidindo eleições, tese na qual o Brasil do interregno 2018—2022 seria o laboratório perfeito, carece e muito de evidências para suportá-la. É, no entanto, cômoda aos que não admitem que o povo possa em maioria rejeitar conscientemente seu partido e suas bandeiras. “Se o povo não elegeu o PT em 2018, é porque foi enganado pelos manipuladores das redes; faz-se mister, portanto, controlar melhor essas redes para que o povo possa escolher da forma certa, isto é, nos escolher”.

Contudo, rejeitar, por falta de evidências (e lembrem que o ônus está com quem afirma), o extremo de que as notícias falsas estão a decidir eleições não significa dizer que elas não causem danos e não sejam um problema a ser enfrentado.

As fake news criam dissabores desde sempre, não sendo uma inovação das redes sociais, que, contudo, e isso é fato, potencializam sua circulação. Em política, elas ganham maior volume sim em períodos eleitorais e sem dúvidas são com frequência resultado de má-fé dos que as criam, contando com a ingenuidade de muitos que as compartilham.

Todos aqueles que honestamente se colocam no debate público e anseiam por uma qualificação desse debate (sem que ele perca sua natureza aguerrida quando necessário, é claro) só podem se frustrar com o quanto a desinformação o desqualifica, apequena e bagunça. Quem é intelectualmente honesto não se regozija nem quando as fakes news divulgadas beneficiam seu lado, partido, candidato ou coisa que o valha. Pelo contrário, fará um esforço em contrapor o embuste com a verdade. Não há mérito algum em insistir com o que se sabe ser uma mentira para obter logros políticos. Quem aliena a verdade assim hoje alienará muito mais no futuro, incluindo seus ditos princípios.

Já o caminho dos censores também não é o dos intelectualmente honestos ou o dos que genuinamente se preocupam em qualificar o debate público. Vejo uma distância moral bem grande entre os que se esforçam em pacificamente divulgar a verdade e rebater a mentira e os que veem a solução passando por calar e criminalizar os que concorrem para divulgar a desinformação. Reconhecer que as fakes news são um mal, longe de significar acender uma vela para a censura, deve servir para que a rejeitemos ainda mais.

Dizem que a “crise” de desinformação seria também o resultado de uma crise de confiança nas instituições e na imprensa tradicional. Não aquiesço em chamar de crise o que, como vimos, não é nem de perto uma novidade, mas devo dizer que concordo com o diagnóstico de que a falta de confiança nas instituições e na imprensa alimenta sim as fakes news.

É típico do conspiracionista, de longe o personagem mais eficiente na propagação de mentiras, uma desconfiança generalizada com as instituições, desconfiança essa que excede e muito o saudável ceticismo político (prescrito pelo conservadorismo moderno e comum também a liberais, que, por óbvio, mantém o pé atrás com o Estado) e desagua em paranoia e maluquice. Do ceticismo saudável ao conspiracionismo aberto há uma distância considerável, mas é possível pensar em gradações de um ponto a outro. Já o censor costuma desconsiderar essa distinção, vendo no mero ceticismo uma forma de ataque às instituições, sem perceber que é essa mesma postura beligerante que alimentará uma desconfiança — justificadíssima diante da censura — que poderá desembocar em algum momento no conspiracionismo.

Quantas vezes não somos confrontados com queixas razoáveis e sensatas, misturadas na retórica de alguns com especulações fantasiosas? Ver alguém com quem em parte estamos em perfeito acordo, mas que de repente segue por uma via conspiratória não nos faz pensar que “até mesmo um relógio quebrado está certo duas vezes por dia”? O discurso conspiratório ganha força quando toma como premissas fatos concretos e queixas com razões de ser. Peguemos como exemplo a atuação do TSE nas últimas eleições. Pode-se dizer que, com episódios como a censura a matérias verdadeiras, mas desagradáveis à campanha petista, a documentários, a admissão da censura prévia e até mesmo a censura a uma fala técnica e absolutamente correta de um ex-ministro do STF, a corte eleitoral não atuou de forma equilibrada e nem isenta. Essa é uma leitura totalmente possível e legítima à luz dos fatos. Porém, há uma diferença enorme entre tecer essa crítica e afirmar que as urnas foram fraudadas. Criticar o TSE não significa advogar a tese da fraude eleitoral. Contudo, os mesmos episódios que corroboram a crítica sensata de alguns dão fôlego aos conspiracionistas. Tanto em um caso como em outro (conspiração ou crítica legítima), pensam os censores que a ninguém é lícito criticar sua atuação.

Em uma de suas decisões mais famosas e temerárias, para lástima não só de nossa pátria, mas também de sua biografia (que a história seja implacável), Alexandre de Moraes baniu o influenciador Bruno Aiub Monteiro, vulgo Monark, das redes sociais. Tivesse Monark matado alguém, ou se entrincheirado com algum grupo paramilitar para tomar Brasília de assalto, ainda assim cumpriria indagar: onde está autorizado o banimento da vida pública como punição (Moraes, como sempre, não apresenta uma única lei que autorize isso)? Mas há o agravante de que o crime bárbaro do “perigosíssimo” influenciador tenha sido proferir estas “terríveis” palavras: “E não é o cara que tá indo lá, lutando e colocando… porque, toda vez que o Supremo faz um movimento desse, ele gasta fichas políticas. Isso tem um custo pra ele. […] Então, porque ele (Supremo) está disposto a pagar este custo? Por que ele (Supremo) está disposto a garantir uma não-transparência nas eleições? A gente vê o TSE censurando gente, a gente vê o Alexandre de Moraes prendendo pessoas, você vê um monte de coisa acontecendo, e ao mesmo tempo eles impedindo a transparência das urnas? Você fica desconfiado, que maracutaia está acontecendo nas urnas ali? Por quê? Por que o nosso sistema político não quer deixar o povo brasileiro ter mais segurança? Qual é o interesse? Manipular as umas? Manipular as eleições? É isso que eu fico pensando… .”

Pense o que quiser da fala do Monark (eu, pessoalmente, discordo das insinuações de fraude), mas ele, bem como qualquer outro cidadão, deve ter liberdade para falar isso e muito mais. Contudo, o ponto aqui é outro. Se existe uma parcela da população que ainda nutre desconfianças com as urnas eletrônicas; se uma outra parte chega a afirmar que crê na possibilidade de fraude; se existe uma retórica de que o TSE teria até mesmo alterado o resultado eleitoral; se isso faria parte de um suposto complô do qual a censura (que é real, lembremos) seria um ingrediente essencial; como a censura ao Monark poderia mudar esse quadro? Então o seu Joaquim que não acredita nas urnas, que acha que o TSE é parte de uma cabala para corromper a democracia, disposto mesmo a fraudar o pleito, vê um influenciador ser banido da vida pública justamente por vocalizar suspeições e fazer provocações nesse sentido. Você crê que a confiança do seu Joaquim nas instituições irá aumentar ou reduzir ainda mais? Pois é.

Para além dos vilipêndios à liberdade de expressão, a opção pela censura logra transformar em vítimas aqueles que poderiam ser naturalmente desacreditados ou mesmo ridicularizados em outras circunstâncias. O que os censores fazem é acrescentar um motivo às predisposições conspiratórias ou mesmo radicais de alguns. Edmund Burke sabia disso quando escreveu “Eu acredito que é possível que homens sejam amotinados e sediciosos sem sentir nenhuma injustiça, mas não acredito que alguém afirme com seriedade que, quando as pessoas têm um espírito turbulento, a maneira forma de mantê-las em ordem é fornecer-lhes algo substancial para reclamar”.

Agora, pensemos na imprensa. Não me esquivo de tecer críticas à imprensa, sobretudo quando grandes veículos adotam uma postura venal, chapa-branca, mal ocultando seus interesses escusos, na mesma toada em que vivem a prestar apoio aos devaneios identitários, dando guarida para farsas convenientes e patrocinando “mentiras do bem”. Contudo, se somos capazes de bater forte na imprensa, é por crer que às vezes elas se desvirtua de seu papel informativo e em claro reconhecimento da importância que esse papel tem para as democracias e a necessidade de que seja devidamente exercido. Aliás, por mais que possamos bater na imprensa, existe grupo mais aguerrido na defesa da liberdade de imprensa do que os liberais? Posso dizer seguramente que, hoje, nós liberais defendemos a liberdade de expressão, incluindo a de imprensa, de forma muito mais ampla e comprometida do que a própria imprensa.

O fato é que, mesmo com todas as críticas legítimas que fazemos a jornalistas, sigo crendo que o jornalismo profissional segue sendo a melhor opção para se obter informação, na certa muito melhor do que as alternativas: “Recebi, mas não sei se é verdade”, “Recebi do fulano e ele é de confiança”, “Ouça e repasse”, etc. Embora haja profissionais do ramo e veículos inteiros que se prostituem e são a vergonha e lástima da profissão, há também os jornalistas e veículos sérios que seguem se esforçando para trazer informação de qualidade. Não há comparação entre o trabalho sério de jornalistas íntegros com as “notícias do Zap” ou os blogs obscuros, muitos dos quais mamam em verbas oficiais e são ainda mais descaradamente venais do que veículos tradicionais. Ocorre que a parcela séria acaba pagando o pato pela banda podre da imprensa.

Aqueles jornalistas e veículos que claramente são sócios e entusiastas dos novos tempos de censura se sentem parte de uma elite, destinada a guiar os rumos do futuro e nos salvar das trevas da desinformação. Ocorre que tratar o mesmo público a quem se destinam suas notícias e análises como uma turba de bestas indômitas tem seu preço. O povo não é tão néscio como supõem estes pretensos progressistas; as pessoas não deixam de observar quando setores da imprensa prestam apoio aberto a algo como o PL da Censura (em especial quando o texto carrega um dispositivo que pode beneficiar economicamente os veículos de mídia), por exemplo. Isso torna-se ainda mais claro quando há uma defesa explícita da censura em algum caso concreto.

Coincidentemente, no momento em que escrevia este artigo, me deparei com um vídeo um tanto quanto indigesto de alguns jornalistas da GloboNews debatendo memes sobre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que estão correndo nas redes sociais (o ministro tem sido apelidado de “Taxad”); em um dado momento, o jornalista Valdo Cruz se posiciona de forma contrária aos memes, aventando a necessidade de uma “regulamentação”, leia-se, censura (sempre que essa turma fala em regulamentação, estejam certos de que trata-se de censura), já que os memes poderiam ser prejudiciais à imagem do pobre ministro. É esse tipo de vexame pseudojornalístico que corrói a confiança depositada no jornalismo profissional. Então, nosso companheiro, o seu Joaquim, já frustrado com o rumo das coisas no país, depara também com a análise desta nobre elite de tribunos, de um tema da maior relevância, que logo lhe chama a atenção, pois naquela mesma manhã ele recebeu alguns daqueles memes em suas redes sociais; mantém a atenção apenas para ouvir que aquela leve brincadeira política poderia ser o produto de uma rede de desinformação, financiada por interesses escusos, uma verdadeira fake news, carente de regulamentação e consequências. A confiança do seu Joaquim na imprensa tradicional aumentará ou reduzirá, caro leitor? Pois é.

O caminho da censura, além de todas as chagas que provoca em uma sociedade, não apenas é uma medida torpe e ineficaz, mas causa o aumento do mesmo problema que supostamente deveria combater: desinformação. Do papo de bar falando em fraude nas urnas aos memes zoando o ministro da Fazenda, não há nenhuma novidade. É apenas quando a “elite” intérprete da verdade entra em ação que o que era sem consequências ganha uma razão legítima para a queixa – e agora o conspiracionista, antes ridicularizado, sendo, não raro, em parte vítima (embora não menos conspiracionista), se torna mais e não menos desinformador. E o radical, se outrora vivia a lamentar opressões que só existiam em sua cabeça, agora que é vítima de uma opressão real, não deixará de ser radical. Nada disso é desconhecido pela pretensa elite: eles apenas não se importam com as reações desde que elas sejam silenciosas, talvez entre conhecidos, mas longe do público, em linha com o verdadeiro desiderato: calar, calar e calar.

“Mas o que faremos então? Ficaremos reféns da desinformação?” Indagarão os desalentados. Deixo que John Milton responda: “E ainda que todos os ventos da doutrina soprassem desenfreadamente sobre a Terra, enquanto a Verdade se mantiver de pé, faremos mal, com censuras e proibições, em duvidar da sua força. Deixemo-la digladiar-se com a Falsidade. Quem alguma vez ouviu dizer que a Verdade saísse vencida de um confronto livre e aberto? A sua refutação é a melhor e a mais segura das supressões”.

Fontes:

A letter to Sir Hercules Langrishe: Bart. M.P. on the subject of Roman Catholics of Ireland, and the propriety of admitting them to the elective franchise, consistently with the principles of the constitution as established at the Revolution — Edmund Burke

https://static.poder360.com.br/2024/04/Decisao-Alexandre-Moraes-Monark-TSE-13jun2023.pdf

https://pleno.news/brasil/jornalista-da-globonews-critica-memes-e-fala-em-regulamentacao.html

Areopagítica — John Milton (tradução de Benedita Bettencourt)

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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