Carta Aberta à Faculdade de Direito do Largo São Francisco

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Soberania Não é Manto Para Impunidade.

No dia 25 de julho do corrente ano, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco promoveu, em seu Salão Nobre, um evento e manifestação em torno da chamada “Carta em Defesa da Soberania”, reunindo professores, juristas e políticos. A presente Carta Aberta é uma resposta não apenas a esse episódio, mas também uma crítica à postura recorrente da instituição nos últimos anos — uma postura que, a nosso ver, tem se revelado partidária e enviesada, ainda que revestida do discurso de defesa de princípios universais.

Nós, signatários desta missiva, oriundos das mais diversas áreas — juristas, advogados, economistas, jornalistas, empresários, profissionais liberais e formadores de opinião — manifestamos, por meio desta, nossa perplexidade e inconformismo diante do uso instrumental de conceitos como soberania e democracia para fins ideológicos e seletivos. Eis, pois, a nossa mensagem.

Reivindicar soberania é legítimo. Mas brandi-la como escudo retórico contra qualquer forma de crítica ou responsabilidade externa é transformar um princípio constitucional em álibi de autossuficiência moral. A recém-anunciada “Carta em Defesa da Soberania”, subscrita por instituições públicas e setores da sociedade civil organizada, e encabeçada pela São Francisco, padece exatamente dessa confusão: invoca a soberania como se ela fosse atributo do Estado, e não limite do seu poder.

Soberania, em uma república constitucional, não é sinônimo de imunidade política, nem de autoridade moral incondicionada. Tampouco é o direito de violar direitos. A soberania que merece respeito internacional é aquela que nasce da fidelidade a princípios universais – liberdade, justiça, igualdade perante a lei – e não da negação deles em nome de um “projeto de nação” tão vago quanto impositivo.

A Carta parte da premissa de que o Brasil está sendo vítima de uma “intromissão externa” indecorosa. Mas o que se rotula como intromissão é, na verdade, o exercício legítimo da crítica democrática e da responsabilização internacional quando um Estado, qualquer que seja, se afasta dos seus compromissos com os direitos fundamentais e com a lisura institucional. As nações não são ilhas morais. A soberania, nos marcos do direito internacional contemporâneo, convive com deveres que transcendem fronteiras: dever de proteger, dever de respeitar, dever de prestar contas.

Em tom veemente, a missiva critica uma pretensa violação aos princípios da independência nacional e da não-intervenção, sem, porém, especificar em que medida as sanções americanas teriam nos tornado menos autônomos, e teriam nos sujeitado a algum tipo de violência efetiva, grave ameaça, ou arbítrio. A rasura da argumentação se evidencia da mera observação dos fatos, pois nosso território não foi invadido, nossas autoridades não foram sequestradas por nação estrangeiras, e nossos poderes seguem funcionando como bem entendem.

Sanções econômicas são assuntos pertinentes à política internacional, e, nessa qualidade, devem ser negociadas entre os países envolvidos pela via diplomática, e não mediante manifestações de tribunais, da OAB ou de grupos de juristas. Até porque, sendo a imposição de tarifas e a cassação de vistos prerrogativas dos EUA no exercício de sua própria soberania, bravatas de togados e do seu entorno soam como uma caricatura de quixotismo, tão despropositadas quanto inócuas. Assim, em vez de bradarem contra deliberações soberanas de outras nações, que, reitere-se, não comprometeram o funcionamento das nossas instituições, os signatários da carta deveriam voltar os olhos para as anomalias que vêm marcando a atuação destas.

Contudo, percebe-se um silêncio histórico dessas mesmas entidades que agora se erguem em defesa da soberania. Onde estavam quando o STF instaurou o inquérito sem vítima, sem provocação, sem Ministério Público – o inquérito do fim do mundo? Onde estavam quando se rasgou o princípio da legalidade para sustentar prisões políticas? Onde estavam quando Débora Rodrigues, uma cidadã sem antecedentes, foi condenada a 14 anos de prisão por escrever “perdeu, mané” com batom na estátua da Justiça? Onde estavam quando Clériston Pereira da Cunha, o Clezão, morreu na prisão, após ser preso apenas por portar um cartaz de protesto, e após sucessivos pedidos de liberdade provisória, devido a problemas de saúde graves, pedidos estes ignorados pelo Ministro Moraes, aliás, professor titular desta casa? Onde estavam quando se calaram jornalistas, foram censurados perfis, e criminalizada a crítica sob o manto da “desinformação”? Onde estavam as vozes do “projeto de nação” quando o Estado transformou liberdade de expressão em concessão discricionária? Frente à reiteração de violações à intranscendência da pena, à individuação das condutas, à legalidade estrita, prévia e escrita, ou mesmo às regras basilares do juiz natural, onde repousavam os que agora despertaram?

Cumpre, todavia, um esclarecimento: dentro do próprio Largo de São Francisco há docentes, servidores e estudantes que genuinamente prezam pelo Estado Democrático de Direito, pelas liberdades fundamentais e pela verdadeira soberania. Esta carta, porém, dirige-se à Faculdade em sua dimensão institucional, pois foi nesse plano que, tal como aconteceu com a “Carta pela Democracia” de 2022, a Escola subscreveu um documento de nítido viés político-partidário, ignorando os abusos então já praticados pelo STF e pelo TSE contra apenas um dos polos do espectro. Essa seletividade, além de revelar desonestidade intelectual, perpetua divisões e desvia o debate dos reais desafios que nos cabem enfrentar.

A narrativa da “soberania atacada” busca desviar o foco do verdadeiro ponto sensível: a erosão das garantias individuais, a captura de instituições e a instrumentalização política da legalidade. A mesma carta que invoca o direito à ampla defesa e ao devido processo ignora seletivamente os sinais de abusos de poder e de disfunções estruturais no sistema de justiça. Mais que isso: transforma qualquer tentativa externa de escrutínio – jurídico, político ou diplomático – em ameaça à pátria. Nesse tipo de discurso, toda discordância vira traição. Todo controle vira agressão. Toda crítica é colonização.

A lógica subjacente é perigosamente coletivista: o povo se confunde com o Estado, a Constituição se reduz à vontade majoritária, e os direitos individuais se tornam condicionais à estabilidade institucional. Mas repúblicas não se medem pela unidade de seus slogans, e sim pela liberdade de seus dissensos. O Estado de Direito não floresce onde a legalidade é tratada como monopólio da maioria ou como blindagem contra responsabilização.

A verdadeira soberania – aquela que merece defesa – é a que reconhece que o poder político deve obediência aos direitos dos indivíduos, e não o contrário. Não há autonomia nacional legítima onde o cidadão é tratado como súdito, onde a crítica é demonizada como traição, e onde a Constituição é convertida em peça cenográfica para justificar o império de quem a manipula.

Se há algo que fere a soberania do Brasil, não é a crítica vinda de fora. É o autoritarismo que brota de dentro – e o silêncio cúmplice de quem só se indigna quando lhe convém. Deixamos de ser plenamente soberanos pelo menos desde 2019, o fatídico ano da oficialização dos inquéritos de ofício, que se iniciaram não contra algum político arrebatador de paixões, mas contra meios de comunicação indesejados, além das prisões à margem do devido processo legal e de todos os abusos correlatos. Em sua miopia, os signatários da carta da USP preferem não enxergar que só tornaremos a ser soberanos se, e quando retomarmos o primado da Constituição e das leis, em detrimento dos caprichos dos detentores do poder.

E qual seria a razão desta miopia? Poderia se conceber que juristas da mais alta monta, professores ou egressos da mais prestigiada e tradicional faculdade do país ignoram princípios fundamentais do Direito e das relações internacionais? Ou o motivo seria uma questão mais pragmática, talvez até mais desconfortável de se admitir? Seria possível que, ao se omitir diante dos desmandos e abusos constantes, esses juristas estejam, na verdade, apenas preservando um espaço que lhes é conveniente? Trata-se de uma pergunta, não de uma afirmação. Afinal, quando a preservação do status quo e dos interesses institucionais se torna a prioridade, os princípios do Direito e as relações internacionais podem se tornar detalhes secundários, facilmente ajustáveis conforme o cenário. Quando se coloca outros interesses acima da verdade e da justiça, a soberania deixa de ser uma questão de princípio e passa a ser um meio de preservar privilégios. Raymundo Faoro já nos alertava sobre essa transformação: a profissão jurídica, que deveria ser a guardiã da justiça, acaba se tornando servil ao poder.

 

São Paulo, 28 de julho de 2025.

 

Signatários:

 

1. Leonardo Corrêa

2. Katia Magalhães

3. Cristiano Carvalho

4. Adilson Goes

5. Adriano Benetti

6. Adriano da Veiga Medeiros

7. Alex Pipkin

8. Alexandre Silvério Cainzos

9. Alexandre Trindade Santana

10. Alexandre Ywata

11. Alice Mieko Hanashiro

12. Alysson Zanatta

13. Alzemeri Martins Ribeiro de Britto

14. Ana Celina Lucas de Souza Felizzola

15. André Burger

16. André Marsiglia

17. André Pinelli

18. Andréia Miranda

19. Antonio Carlos Fonseca

20. Arthur Fochesatto Panisson

21. Bernardo Santoro Pinto Machado

22. Bruno Gimenes Di Lascio

23. Carlos Henrique R. Miranda

24. Carol Sponza

25. Caroline Coelho Leal

26. Christianne Stroppa

27. Claudio Shikida

28. Dagmar Fidelis

29. Daniel Brandtneris da Costa

30. Daniel Fuks

31. David Ágape

32. Edmundo Cavalcanti Eichenberg

33. Eduardo Nazari

34. Fabio Tomielo da Rocha

35. Fabrício Zortea Camozzato

36. Felipe Batista dos Reis Pestana

37. Fernanda de Carvalho Jaconi

38. Fernando Borges

39. Flávio Gordon

40. Fátima Nascimento Marcondes

41. Gabriel Saldanha

42. Gabriel Siviero Dal Ponte

43. Gabriel Trombini

44. Geanluca Lorenzon

45. Guilherme Pinho Costa

46. Gustavo Fernandes

47. Heidi Tabacof

48. Helio Beltrão

49. Isadora Henrich Saldanha

50. Ivanildo Santos Terceiro

51. Ives Braghittoni

52. João Ferreira

53. João Luiz Mauad

54. Júlio Oliveira

55. Karine Amorim

56. Leila Bittencourt Loiferman

57. Leonardo Augusto Andrade

58. Leonardo Faccioni

59. Lucas Berlanza

60. Luciana M. Ferraretto Simão

61. Lucilene Prado

62. Luiz Ricardo Cavalcanti Vasco

63. Luiz Sérgio Wigderowitz

64. Luís Carlos Borda Júnior

65. Marcelo Pessoa

66. Maria Amélia Mauad

67. Maria Claudia Chaves Goes

68. Maria Inês Murgel

69. Marina Helena

70. Mario Conforti

71. Mateus Bandeira

72. Matheus Schilling

73. Michelangelo de Aguiar Coiro

74. Nadia de Araujo Lopes Monteiro

75. Noris Luz

76. Patricia Andrade

77. Paulo C. Coutinho

78. Paulo G. M. De Moura

79. Paulo Lucena

80. Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli

81. Pedro Henrique A.P. de Oliveira

82. Pedro Henrique Carneiro Mosmann

83. Rafael Nogueira

84. Raquel de Barba Almeida

85. Ricardo Sampaio Alves Junior

86. Roberta V. P.N. Simões

87. Rodrigo Augusto C. Santos

88. Rodrigo Constantino

89. Rodrigo D’Avila Lopes

90. Rodrigo Marcial

91. Rodrigo Marinho

92. Rodrigo Meirelles Massaud

93. Rubem Novaes

94. Saul Duarte Tibaldi

95. Sergio Lewin

96. Sidney Stahl

97. Sônia Santos

98. Tiago Fachini

99. Tiago Silveira de Almeida

100. Ubiratan Iorio

101. Victor Carvalho

102. Walter Wigderowitz Neto

103. Zulma Hertzog Fernandes Veloz

104. Állirson Oliveira Fortes Pereira

105. Úrsula Lobato Costa

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