Arte sob a ditadura do politicamente correto

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Recentemente, foi proferida sentença pela MM. Juíza Barbara de Lima Iseppi, da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, nos autos da ação penal nº 5003889-93.2024.4.03.6181, que resultou na condenação do humorista Leonardo de Lima Borges Lins, conhecido artisticamente como Léo Lins, à pena de 08 (oito) anos, 03 (três) meses e 09 (nove) dias de reclusão, cumulada com 39 (trinta e nove) dias-multa, fixados no valor unitário de 30 (trinta) salários mínimos, além do pagamento de indenização por danos morais coletivos no montante de R$ 303.600,00.

A decisão teve por fundamento a suposta prática dos delitos tipificados no art. 20, §§ 2º e 2º-A da Lei nº 7.716/1989, que trata de discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e no art. 88 da Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), relativo à discriminação contra pessoas com deficiência. Os fatos teriam ocorrido durante a apresentação do espetáculo humorístico intitulado “Léo Lins – Perturbador”, exibido e amplamente divulgado na plataforma YouTube, com expressiva audiência.

O cerne da controvérsia consistiu em verificar se a conduta do réu estaria amparada pelo direito à liberdade de expressão artística e pelo chamado animus jocandi — elemento subjetivo que caracteriza a intenção de provocar humor ou entretenimento, tradicionalmente reconhecido como excludente de tipicidade penal em contextos cômicos. Contudo, a magistrada afastou tal tese, sustentando que o réu se utilizaria da comédia como disfarce para promover discurso discriminatório, extrapolando os limites constitucionais da liberdade de expressão.

Todavia, a sentença revela graves fragilidades jurídicas, especialmente no que tange à proteção à liberdade de expressão artística e aos parâmetros constitucionais da liberdade de pensamento. A questão fundamental, que a decisão aparenta não enfrentar de forma suficiente, refere-se ao elemento volitivo do tipo penal: houve, de fato, dolo de discriminar? Ou tratou-se de manifestações teatrais proferidas por um personagem em espetáculo público, com claro propósito humorístico? Além disso, a sentença carece de enfrentamento efetivo aos dispositivos constitucionais, notadamente os arts. 5º, inc. IX, que assegura a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e o art. 220, que veda qualquer tipo de censura à manifestação cultural.

A Constituição de 1988 não concede a liberdade de expressão — ela a reconhece como anterior ao Estado, intangível pelo arbítrio do intérprete e inviolável mesmo diante da maioria. Ao proclamar no art. 5º, inciso IV, a livre manifestação do pensamento, e no inciso IX, a liberdade de expressão artística e intelectual “independentemente de censura ou licença”, o texto constitucional estabelece um limite ao poder, não uma autorização para regulá-lo. Essa blindagem textual, reforçada pelo art. 60, § 4º, IV, que veda emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais, não pode ser contornada por interpretações criativas nem relativizada sob o pretexto de proteger sensibilidades coletivas. O Judiciário, cuja função é aplicar a Constituição, não pode se colocar acima dela. Ao ignorar os direitos fundamentais negativos — aqueles que delimitam onde o Estado não pode tocar —, o julgador deixa de ser executor da Carta e passa a ser seu concorrente, rompendo com a arquitetura republicana que lhe confere legitimidade. Liberdade de expressão, em sua dimensão original, não é aquilo que o juiz tolera: é aquilo que o Poder não pode proibir.

Abre-se, a partir dela, um precedente preocupante: quais os limites impostos a um artista no exercício de sua atividade criativa? Seria possível, à luz do atual ordenamento, restringir manifestações críticas ou provocativas sob o risco de punição penal, ainda que feitas em tom satírico, por personagens em ambiente cênico?

A juíza sustenta que houve dolo porque o humorista teria, em tese, adotado postura consciente e voluntária de reforçar estigmas sociais, ao se utilizar da linguagem humorística como uma “ferramenta de discriminação” e não como recurso legítimo da liberdade artística, os crimes imputados ao artista demandariam uma intenção deliberada de incitar ou promover a discriminação. utilizou-se uma baliza de interpretação subjetiva clara ao presumir que o humorista usa daquela estrutura de palco para performar atos discriminatórios, quando o que ocorre na realidade é apenas uma manifestação de espetáculo cômico.

Ignorou-se na sentença o julgado da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no AgRg no RHC nº 193928/SP, de relatoria do Min. Reynaldo Soares da Fonseca, que determinou o trancamento de inquérito policial contra comediante acusado de discriminação por piada envolvendo cadeirante. O Relator em seu voto vencedor expressou que:“ o fato de se tratar de um show de stand-up comedy já denota a presunção do animus jocandi, sendo necessário, portanto, a presença de elementos minimamente sugestivos do dolo específico de discriminação, o que não se verifica na hipótese.”, no próprio teor do acordão discutiu-se que a qualidade da manifestação poderia ser inteiramente questionada, mas não poderia ser presumido ou colocada aquela manifestação artística no nível criminoso.

A criminalização de uma conduta de natureza performática — ainda que passível de críticas quanto ao seu conteúdo, gosto ou valor moral — representa um precedente profundamente nocivo no plano social. Isso porque abre espaço para que juízos subjetivos sobre a qualidade ou o teor de uma manifestação artística sirvam de base para sanções penais, como multas elevadas e até pena de prisão. O que não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, é a presunção de ilegalidade de uma apresentação cômica, especialmente no contexto de um show de stand-up comedy, onde é inerente à linguagem artística a utilização de personagens satíricos, exageros retóricos (hipérboles) e críticas mordazes a aspectos da vida social.

Em questões já debatidas a nível do Supremo Tribunal Federal, em que buscou-se aduzir o limite da liberdade de expressão, temos o julgamento da ADPF 187, quando se reconheceu como legítima a realização da “Marcha da Maconha”, reafirmando a proteção à livre manifestação do pensamento, ainda que contramajoritária. Do mesmo modo, na ADPF 548, o STF derrubou liminar que suspendia a veiculação do especial de Natal da produtora Porta dos Fundos, reiterando, com base no voto do Min. Gilmar Mendes, que: “retirar de circulação material apenas porque seu conteúdo desagrada parcela da população, ainda que majoritária, não encontra fundamento em uma sociedade democrática e pluralista como a brasileira.”.

A perseguição a manifestações humorísticas não é, infelizmente, um fenômeno inédito na história. Há relatos marcantes, como o de Vera Gulobeva[1], professora soviética condenada ao trabalho forçado em Gulag entre 1951 e 1955 por proferir uma piada contra o regime. Mais recentemente, em 2023, o comediante chinês Li Haoshi[2] foi preso e multado após satirizar, em apresentação pública, o Exército Chinês — sua produtora foi penalizada em cerca de 2 milhões de dólares. O denominador comum desses episódios é a ausência de regime democrático e a intolerância à liberdade de pensamento. Entretanto em países livres e democráticos estas manifestações tendem a serem analisadas como manifestações culturais, sem que sejam aplicados quaisquer meios de censura ou de punição aos artistas.

Mais do que um equívoco jurídico, tal decisão representa um grave retrocesso no regime de liberdades constitucionais. Trata-se, mais do que da limitação à fala de um artista, da restrição a um valor constitucional essencial: a liberdade de expressão artística e crítica. Não se pode admitir que, sob o manto da moralidade seletiva e da pressão social do politicamente correto, o Poder Judiciário converta-se em agente censor, impondo sanções penais a manifestações cômicas sem o necessário exame do contexto, da intenção, e do alcance efetivo da fala.

A condenação imposta ao humorista Léo Lins representa não apenas um equívoco jurídico, mas um grave retrocesso no regime democrático de liberdades constitucionais. A decisão judicial desconsidera que a essência da arte — especialmente a arte satírica — reside na sua capacidade de provocar, incomodar e confrontar sensibilidades sociais, muitas vezes expondo as contradições e hipocrisias do próprio tecido cultural. Ao imputar responsabilidade penal por expressões cômicas proferidas em espetáculo artístico, o Judiciário não apenas ignora os limites constitucionais da intervenção estatal, como assume postura abertamente censória. O que se pune, na prática, não é um crime, mas uma forma de pensar e de comunicar — o que é incompatível com os princípios do Estado de Direito. A liberdade de expressão artística, longe de ser um privilégio do artista, é um instrumento de crítica e transformação social, protegido pelo art. 5º, IX, da Constituição Federal. Criminalizar a comédia é desfigurar a democracia em nome de uma moral autoritária e subjetiva, impondo silêncio onde deveria haver debate.

Em 2012, o escritor Monteiro Lobato também foi alvo de controvérsias quanto ao conteúdo de sua obra. Naquele ano, o Ministério da Educação foi instado a se manifestar sobre um pedido que buscava impedir a circulação do livro Caçadas de Pedrinho, sob o argumento de que este conteria trechos de natureza racista. Embora o MEC tenha rejeitado formalmente a proposta de censura direta, optou por uma solução intermediária que, na prática, estabeleceu uma forma indireta de controle: a obrigatoriedade de inclusão de uma nota explicativa que contextualizasse historicamente o conteúdo da obra[3].

O próprio parecer do Conselho Nacional de Educação[4], expôs diretrizes ainda mais amplas e preocupantes. A Coordenação-Geral de Material Didático do MEC passou a ter como incumbência a seleção criteriosa dos títulos indicados às bibliotecas escolares, devendo garantir que as obras recomendadas ao Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) estejam livres de conteúdos considerados preconceituosos ou estereotipados — excluindo, inclusive, clássicos da literatura nacional ou estrangeira que contenham tais elementos, mesmo que inseridos em contextos históricos específicos.

O desfecho desse debate resultou na permanência da obra de Monteiro Lobato no acervo das escolas públicas, assegurando sua circulação condicionada. Todavia, essa decisão não garante, de forma definitiva, a continuidade da presença dessa obra — tampouco a de outros títulos do autor — nos programas educacionais. Além disso, compromete a incorporação de diversos clássicos da literatura que, embora representativos de sua época, podem atualmente ser interpretados como ofensivos ou discriminatórios por determinados grupos sociais. Trata-se, portanto, de um precedente que fragiliza a preservação do patrimônio literário e abre espaço para formas sutis de censura ideológica sob a justificativa da proteção de sensibilidades contemporâneas.

O próprio Supremo Tribunal Federal tem recentemente adotado posturas que se afastam de sua consolidada jurisprudência em defesa da liberdade de expressão. Um exemplo disso é o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.513.428/SP, sob relatoria do Ministro Flávio Dino, no qual se decidiu pela retirada de quatro livros jurídicos que continham trechos considerados homofóbicos e ofensivos à população LGBTQIAPN+. A justificativa utilizada foi a necessidade de proteger a dignidade de grupos vulneráveis, mas, sob esse fundamento, acabou-se por legitimar uma forma direta de censura de conteúdo, contrariando o princípio da liberdade de pensamento e de manifestação intelectual — pilares do Estado Democrático de Direito.

Se adotarmos o caminho da censura a livros, obras e peças de teatros consideradas politicamente incorretas, corremos o risco de instaurar uma lógica em que qualquer conteúdo — inclusive textos religiosos, como a própria Bíblia ou outras obras tidas como sagradas — poderá, em algum momento, ser igualmente censurado. Afinal a lógica de aplicação da censura será a mesma, para combater a discriminação e daqueles que se sentem ofendidos ou não acolhidos pelos seus textos. Diante desse cenário, deve prevalecer a primazia da liberdade de expressão e da liberdade artística, ambas protegidas constitucionalmente, sendo a intervenção estatal admitida apenas em situações excepcionais, quando houver dano real e concreto. O que não aconteceu em ambos os casos aqui destacados, em que eram expressões artísticas.

O Estado não deve cercear as liberdades de pensamento e expressão, sob pena de graves consequências sociais, conforme advertiu John Stuart Mill:

“Não pode um governo ter em excesso aquele tipo de atividade que não impede, mas ajuda e estimula, o esforço e o desenvolvimento individuais. O problema começa quando, em vez de suscitar a atividade e os poderes dos indivíduos e dos órgãos, substitui a atividade deles pela sua; quando, em vez de informar, aconselhar e, ocasionalmente, denunciar, os faz trabalhar sob restrições, ou pede-lhes que se afastem e faz o seu trabalho por eles. O valor de um Estado, a longo prazo, é o valor dos indivíduos que o compõem; e um Estado que adie os interesses do desenvolvimento e elevação mental deles, em detrimento de um pouco mais de competência administrativa, ou aquela aparência de competência nos pormenores do negócio que se adquire através da prática; um Estado que inferiorize as suas pessoas, de modo a que sejam instrumentos mais dóceis nas suas mãos, até com fins benéficos, descobrirá que com pessoas pequenas nada de grande se poderia alguma vez realmente alcançar; e que a perfeição da máquina, pela qual sacrificou tudo, no fim de contas de nada servirá, por falta do poder vital que preferiu erradicar, para que a máquina trabalhasse mais suavemente.”[5].

Em tempos em que o discurso público é cada vez mais capturado por pautas morais voláteis e sensibilidades seletivas, cabe ao Judiciário atuar como guardião da liberdade e não como instrumento de coerção ideológica. A criminalização da comédia, especialmente quando desprovida da demonstração de dolo real e efetivo, rompe com os pilares da legalidade penal, da presunção de inocência e da liberdade de criação. O que está em jogo não é o mérito de uma piada, mas o direito de fazê-la. Em um Estado verdadeiramente democrático, cabe à sociedade debater, criticar ou repudiar ideias, mas nunca eliminá-las por meio da força do Estado. Ao punir o artista por expressar, ainda que de forma ácida ou provocativa, aspectos da realidade, cria-se o perigoso precedente de que o desconforto social pode justificar a censura penal.

É imperioso, portanto, que decisões judiciais preservem o espaço da arte como território livre, onde o exagero, a crítica e a sátira não sejam confundidos com crime, mas reconhecidos como parte do exercício legítimo da liberdade de expressão.

*Eduardo Henrique Nazari – Advogado, Mestre e Doutorando em Direito e Economia pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro da Lexum.


[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41003967

[2] https://nypost.com/2023/05/18/china-issues-2m-fine-over-comedian-li-haoshis-army-joke/

[3] https://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/222-537011943/18114-mec-reafirma-posicao-a-favor-da-obra-de-monteiro-lobato

[4] Parecer CNE/CEB nº 6/2011: https://portal.mec.gov.br/index.php?gid=6702&option=com_docman&task=doc_download

[5] Mill, John Stuart, 1806-1873 Sobre a liberdade / John Stuart Mill ; tradução Pedro Madeira. – [Ed. especial]. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2011.

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