Arquitetos de Sentenças: Os processos estruturais, uma jaboticaba brasileira
A curva ascendente do protagonismo judicial no Brasil alcançou um ponto de inflexão quando os chamados processos estruturais — ações judiciais que pretendem reformar sistemas inteiros — se tornaram a panaceia para toda ineficiência estatal. Sob o pretexto de “efetivar direitos fundamentais”, tribunais passaram a escrever planos de governo detalhados, fixar cronogramas de obras, definir matrículas escolares e impor protocolos sanitários. Os arautos dessa técnica apontam para Brown v. Board of Education (349 U.S. 294 – 1955) como inspiração; mas a evocação do caso norte-americano é mais um véu retórico do que uma filiação doutrinária genuína.
Em 1954, a Suprema Corte dos EUA limitou-se a reconhecer — e só isso já foi revolucionário — que a segregação racial violava a Cláusula de Igualdade da Décima Quarta Emenda. No ano seguinte, em Brown II (347 U.S. 483 – 1954), determinou que a dessegregação fosse conduzida “com toda a celeridade possível” (with all deliberate speed), sob a supervisão dos mesmos tribunais distritais que haviam julgado os casos originais. Ao invés de centralizar a implementação ou elaborar um plano nacional, a Corte preservou o federalismo, os limites funcionais do Judiciário e a via recursal ordinária[1], confiando aos juízes de primeiro grau a responsabilidade pela transição¹. Foi um ato de jurisdição, não de governo[2].
No Brasil, porém, o processo estrutural converte o magistrado em gerente público. Em vez de declarar o direito e exigir cumprimento, ele redige o roteiro: determina quantos leitos o hospital deve abrir, qual verba o Executivo deve remanejar, que calendário a prefeitura deve seguir. Na prática, o juiz assume o comando de uma máquina que não lhe pertence; transforma-se em engenheiro constitucional, tomando decisões distributivas que deveriam nascer do sufrágio. Nesse modelo, o Judiciário não é o guardião do texto — é o autor de políticas públicas.
Como observa o juiz federal Eduardo José da Fonseca Costa, em artigo intitulado “Dez Senões do Processo Estrutural”, publicado na Revista da ABDPro, a técnica estrutural no Brasil muitas vezes “encobre uma inaceitável renúncia à institucionalidade democrática, substituindo agentes eleitos por agentes concursados” em decisões de alta complexidade política. Para Costa — Doutor em Direito Processual pela PUC-SP e uma das principais referências nacionais na área — a judicialização estrutural encena um “déficit democrático grave” disfarçado de virtude institucional.
Mais do que uma técnica processual, trata-se de uma mutação institucional: o Judiciário passa a legislar, executar e fiscalizar simultaneamente. A separação entre os poderes, que deveria garantir equilíbrio e contenção recíproca, dissolve-se na figura de um juiz que atua fora do texto normativo e dentro da lógica da gestão. O que se perde não é apenas a legalidade, mas a própria noção de função jurisdicional. A Constituição deixa de ser limite para se tornar pretexto — e a cláusula pétrea do artigo 60, § 4º, III da Constituição Federal, que proíbe qualquer forma de supressão da separação dos Poderes, é frontalmente violada sob o manto de uma jurisdição estrutural pretensamente redentora.
Em crítica lúcida, Costa assinala que, ao se afastar do texto legal e fundar-se apenas em princípios vagos como “dignidade”, “eficiência” ou “igualdade”, o juiz passa a decidir por meio de “criptonormas” — normas ocultas, criadas no ato decisório, sem respaldo legislativo claro. A jurisprudência estrutural, diz ele, “em vez de normatividade, revela um sistema de poderes paralelos, com baixa accountability e alta discricionariedade”.
A justificativa habitual é a invocação genérica de princípios — dignidade, igualdade, eficiência — como se fossem permissivos universais da vontade judicial. Mas princípios não autorizam a ruptura da legalidade. Na hierarquia constitucional, os direitos individuais previstos no artigo 5º, de natureza negativa, são garantias contra o poder, e não instrumentos a serem relativizados por juízes em nome de metas abstratas. Sem ancoragem normativa, a aplicação isolada de princípios converte-se em exercício discricionário, imune a controle, legitimado por valores tão nobres quanto vagos. A função jurisdicional, nesse cenário, abandona o compromisso com a norma para aderir a uma moral de ocasião.
O resultado é um paradoxo. Ao combater a omissão estatal, o processo estrutural gera sobrecarga decisória, incentiva a inércia administrativa (“o juiz resolve”) e enfraquece a accountability democrática. Gradualmente, governos delegam aos tribunais a solução de dilemas políticos espinhosos. E, na medida em que a caneta judicial suplanta a escolha legislativa, a soberania popular é reduzida a formalidade. O juiz, que deveria se submeter à Constituição, passa a manejá-la como se fosse instrumento de governo — e não de contenção do poder.
Não por acaso, Costa aponta que a suposta participação social no processo estrutural — por meio de audiências públicas ou consultas populares — tem sido, na prática, um ritual vazio. Falta publicidade adequada, falta engajamento efetivo da comunidade e, principalmente, falta disposição real de o juiz abrir mão do controle. O processo estrutural, diz Costa, “não democratiza: tecnocratiza”.
Todo governo ama o poder. A Constituição existe para contê-lo. Quando o Judiciário rompe a própria cerca e derruba marcos institucionais para “corrigir” falhas alheias, inverte-se a lógica republicana: quem deveria impor limites passa a governar sem limite. Aliás, como bem disse o Ministro Edson Fachin em recente voto vencido: “(…) os remédios para os males da democracia precisam ser encontrados dentro da caixa de ferramentas da própria democracia.”[3] Na linha do ministro, podemos reafirmar: o ativismo destrói a estrutura para tratar da conjuntura — e, ao fazê-lo, abre a porta para novas violações de direitos individuais sob o pretexto de protegê-los. Uma jurisdição fundada em valores sem norma é indistinguível da arbitrariedade que pretende combater.
Se Brown triunfou como símbolo de igualdade, foi porque respeitou a forma republicana de governo e confiou que a normatividade do texto, ainda que contestada, acabaria por prevalecer. No Brasil, a técnica estrutural, divorciada desse espírito, arrisca converter direitos fundamentais em moeda de troca de um arranjo administrativo gerido por ordens judiciais permanentes. Ao fim e ao cabo, o que se perde é a própria ideia de Constituição como limite, substituída por uma jurisprudência volátil e indomável.
Urge retomar a lição elementar: o juiz é intérprete da lei, não seu inventor; é guardião, não engenheiro. A autoridade judicial reside exatamente no fato de que ele próprio se submete à norma — não na crença de que pode substituí-la. Somente assim a República preserva o delicado equilíbrio entre liberdade individual e poder estatal — equilíbrio que se desfaz quando o martelo da toga decide tornar-se régua, compasso e prancheta de um projeto que nunca passou pelo crivo do voto popular.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.