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A voz das ruas voltou?

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O 08.01 foi um divisor de águas na história dos nossos movimentos de indignação coletiva. Naquele fatídico dia, milhares de “herdeiros” das legítimas e pacíficas manifestações de repúdio aos desmandos da gestão Dilma Rousseff, à corrupção endêmica e ao caos econômico foram presos e processados por uma corte suprema desprovida de atribuições para o julgamento de indivíduos sem foro privilegiado, enquanto os verdadeiros depredadores e seus facilitadores permaneceram no gozo de suas liberdades. A narrativa oficial transformou a simples presença de pessoas no interior de prédios públicos, ou em acampamentos diante de quartel do exército, em prova conclusiva de participação no crime de tentativa de abolição do estado de direito, embora sem tanques ou organização militar.

Além do rótulo apriorístico de “golpistas” a indivíduos reunidos, em um “domingo no parque[1]”, para o exercício de seu direito constitucional à assembleia e ao protesto, os togados incompetentes ainda impuseram aos réus as penas duríssimas de mais de uma década de encarceramento, assim como a multa impagável de R$ 30 milhões. De lá para cá, por óbvio, seguimos roendo a amargura dos dias “democráticos” na solidão dos nossos lares, ou, no máximo, em postagens cautelosas nas redes, sem menção a nomes, mas com o abuso no recurso às metáforas e aos eufemismos. Abençoados somos nós por dispormos de figuras de linguagem tão providenciais na prevenção à “disseminação do ódio” e na salvaguarda das nossas próprias liberdades.

Eis que, no último domingo, algo de novo ocorreu. A manifestação convocada pelo ex-presidente Bolsonaro, após a “visita” da polícia federal ao ex-mandatário no âmbito da Operação Tempus Veritatis, lotou a Avenida Paulista de pessoas ordeiras e atentas aos discursos no palanque. Após a fala inaugural da ex-primeira-dama, em tom bastante emocional de sacralidade até mesmo em relação ao marido (por ela designado como “o escolhido”), seguiram-se discursos de dois deputados federais e de um senador, cujas palavras entremearam citações bíblicas, a defesa do estado de Israel e louvores à pessoa Bolsonaro, mais uma vez referido como portador da escolha de Deus. A par do tom personalista, gerador de arrepios em qualquer liberal, estranhei a ausência de alusões a projetos de lei, propostas de emendas à Constituição e demais medidas eficazes na contenção institucional aos abusos de togados não-eleitos. Afinal, não se tratava de cidadãos comuns, mas de congressistas com mandato, aos quais caberia a tomada de providências efetivas à implementação do mecanismo constitucional dos freios e contrapesos em que um poder controla os excessos dos demais.

O discurso do governador Tarcísio, representando seus colegas presentes, foi bem mais técnico que os anteriores, com a devida ênfase na necessidade de preservação da liberdade de expressão e da segurança jurídica e na recordação dos avanços da gestão Bolsonaro na área econômica. Porém, como não há perfeição sobre a Terra, o governador “escorregou” diante da tentação de uma fala personalista e descreveu Bolsonaro como aquele que “não é mais uma pessoa”, pois “representa um movimento” – observação que me deixou o gosto amargo da lembrança de uma fala de Lula no auge do período lavajatista, quando se autorreferenciou como sendo “uma ideia”.

Somente com o pastor Silas Malafaia vieram as tão aguardadas e justas críticas aos recentes desmandos de magistrados de cúpula, com direito à pronúncia de nomes e sobrenomes de togado quase “intocável” entre nós e uma cronologia de fatos bem mais precisa e verídica que as habitualmente apresentadas na grande mídia. No ápice do discurso, advogou pela liberdade de questionar pleitos eleitorais – como feito pelo então candidato Aécio Neves, em 2014 -, destacou os abusos contra os réus do 08.01 e, em referência específica ao prisioneiro Cleriston, morto no ano passado, afirmou que “o sangue de Cleriston está nas mãos de Alexandre de Moraes” – coragem já enxergada pelo estamento supremo como “crime de opinião” e que possivelmente valerá sua inclusão nas investigações sobre o tal “golpe de estado de papel[2].

Protagonista indiscutível do evento, Bolsonaro, após um histórico de sua carreira política, enalteceu os principais valores cuja defesa pavimentou seu caminho até o Planalto. Louvou a responsabilidade fiscal, as liberdades em geral – inclusive à autodefesa -, o direito à vida desde a sua concepção, a proteção à propriedade privada e o anticomunismo e, sem menção nominal a seus opositores políticos, deixou bem nítido o paralelo entre os pilares da atuação de sua equipe e os fetiches das gestões lulopetistas. Ainda fez questão de enfatizar o contraste entre a “fotografia da garra do povo brasileiro” naquele dia 25 e a existência de um “presidente sem povo ao lado”. Não se tratava, ali, de um mero duelo de popularidade, mas do questionamento implícito e legítimo sobre a adesão da população ao seu projeto de país, em detrimento daquele oferecido pelo “outro”, carente de apoiadores populares espontâneos. Em bom português, um claro desafio à legitimidade dos atuais planaltinos.

Por último, chegou ao verdadeiro cerne de sua “convocação” aos populares: a prestação de esclarecimentos sobre as investigações contra ele instauradas. Citou, de passagem, a trama policialesca envolvendo o recebimento de joias e o bizarro caso de importunação à baleia, mas concentrou todo o seu potencial oratório na contestação à acusação de planejamento de um golpe de estado. Do alto do palanque, definiu, com acerto, que “golpe é tanque na rua, é arma”, quando tudo o que os investigadores encontraram foi uma minuta de estado de defesa, mecanismo constitucional, cuja decretação é cercada de ritos institucionais.

Mais curioso é ter em mente que, exatos três dias antes da manifestação na Paulista, Bolsonaro havia comparecido à polícia federal para depor sobre os tais planos golpistas e, diante das autoridades policiais, havia optado por manter o silêncio[3]. Ora, qual teria sido o motivo para silenciar sobre fatos que, pouquíssimo tempo depois, viria a escancarar diante de uma avenida lotada? A única razão plausível para tanto só pode residir no total descrédito das autoridades policiais, enxergadas pelo acusado como agentes instrumentalizados por togados que desrespeitam as regras do jogo o tempo todo (ou seja, os ritos processuais), com vistas a fazerem prevalecer os resultados por eles desejados.

Embora tenha falado em “pacificação”, e até mesmo em anistia para os prisioneiros políticos, o que Bolsonaro fez no último domingo foi negar a jurisdição do Supremo e a autoridade de uma polícia federal pronta a cumprir ordens ilegais (e diante da qual calou) e deslocar os litígios do interior das dependências do tribunal e da polícia para a rua. Como se tivesse bradado, a plenos pulmões, perante juízes nomeados, em sua maioria, por seus opositores políticos: “diante dos senhores e do seu aparato policial, me calo com receio de sofrer um encarceramento arbitrário, pois prefiro levar os fatos ao conhecimento da população”. Mais uma derrota acachapante para a legitimidade de uma suprema corte que, há tempos, deixou de ser vista pela parcela bem-informada da sociedade como guardiã da Constituição.

Assim, não surpreende o comparecimento maciço da população a um evento político, em pleno domingo. A par do fascínio pessoal ainda exercido por Bolsonaro sobre uma parcela dos presentes, talvez a maioria tenha retornado às ruas para desnudar sua exaustão diante da insegurança jurídica gerada por togados nada afeitos à institucionalidade e ávidos por cercearem as liberdades individuais. Talvez para exorcizar seu pavor diante da perspectiva concreta de censura, de prisões ilegais, do pagamento de impostos considerados não-devidos por força de coisa julgada e até mesmo de afrontas à sua propriedade rural e/ou urbana.

Mais cedo ou mais tarde, indivíduos premidos pelo medo explodem em reações contra as figuras enxergadas por eles como injustamente opressoras e aderem ao chamamento de quem lhes prometa lutar por suas liberdades. Ontem, a convocação foi feita por Bolsonaro; amanhã, poderá sê-lo por outras lideranças expressivas. Certo é que o primeiro passo foi dado, e a narrativa sobre o cunho “golpista” de manifestações populares no pós-08.01 esfacelada. Aos poucos, ressurge a “voz das ruas”, e a “fotografia” do último dia 25 tende a ganhar novos horizontes e pautas menos personalistas e mais concretamente voltadas ao enfrentamento do atual cenário de autoritarismo. Que possamos prosseguir sem medo, não em adoração a uma ou outra pessoa, mas imbuídos do anseio legítimo de retomar a institucionalidade indispensável à vida em sociedade.

[1] https://www.bol.uol.com.br/noticias/2023/09/13/moraes-diz-que-8-de-janeiro-nao-foi-domingo-no-parque-e-defende-punicao-a-golpistas.htm

[2] https://informejuridico.net/index.php/2024/02/26/pf-avalia-incluir-malafaia-em-investigacao-sobre-suposto-golpe/

[3] https://informejuridico.net/index.php/2024/02/22/em-depoimento-a-pf-bolsonaro-permanece-em-silencio/

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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