A teoria do medalhão togado
Enquanto 2023 se despede, milhares de jovens brasileiros exibem, orgulhosos, seus diplomas obtidos ao longo do árduo período universitário. Entre nós, nem tão árduo, mas, ainda assim, uma travessia da idade dos sonhos para a prosaica rotina adulta. Bacharéis em Direito, que realizações vocês pretendem alcançar no recém-descoberto universo das leis? Ou melhor, tirando de ombros ainda verdinhos o fardo de tamanha responsabilidade por coisas futuras e, em sua maioria, imprevisíveis, transfiro a pergunta aos pais dos novos graduados: que tipo de conselho profissional você daria ao seu rebento? Aqueles que apostarem na longevidade da atual “democracia relativa”, que varrerem certas “firulas” éticas das próprias consciências, e que ansiarem pelo sucesso acima de tudo, poderão, com maiores ou menores variações, protagonizar o diálogo hipotetizado abaixo:
– Saiu o último convidado da tua festa de formatura, e chegou a hora de falarmos como dois amigos sérios. Aliás, fecha a porta, pois tudo o que desejo é ver tua grandeza, e, nessa conversa sobre os caminhos para alçá-la, não há lugar para ouvidos indiscretos. São escassos os prêmios dessa loteria chamada vida, e, para meu filho único, depositário de todas as minhas expectativas, anseio uma notabilidade ímpar, que haverá de ser a coroação máxima dos nossos esforços.
– Aguardo com curiosidade teus conselhos. Em meio a uma miríade de carreiras jurídicas, qual delas devo seguir?
– Nenhuma me parece mais útil e prestigiosa que a de medalhão togado.
– Ora, ora. Não basta atingir o ápice de uma biografia profissional como medalhão? Imaginei que ainda fôssemos o país dos medalhões…
– Pois somos, e continuaremos a sê-lo! Contudo, o sucesso do ofício conduziu a uma proliferação desenfreada, a uma verdadeira “inflação” de medalhões, que, de tão numerosos, vêm perdendo um pouco do seu charme de outrora, para se incorporarem à casta de meros profissionais bem-sucedidos. Como almejo ver-te coberto de glórias dignas de um Alexandre Magno ou de um Napoleão, não te basta ser mais um dentre muitos medalhões; haverás de ser um medalhão togado!
– Se bem entendi tua fala, devo inscrever-me em algum concurso para a magistratura, e aos trambolhões, logo no primeiro cujo edital for lançado?
– Meu bacharel impetuoso, modera o ardor da tua juventude, de modo a que, lá pelos quarenta e cinco anos, estejas apto a galgar o mais alto posto que bem mereces. E, antes que me esqueça, nada de concurso. Será que nem toda a verborragia acadêmica foi capaz de abrir teus olhos sobre os caminhos para atingires as instâncias superiores do judiciário, sem teres de passar por uma via crucis de provinhas, de ansiedade em torno dos resultados, e de todas as demais etapas a serem vencidas pela maioria de teus colegas? É certo que, uma vez aprovado no concurso, já gozarias de status invejável aos olhos da maioria de teus conhecidos, de salário magnífico para tua pouca idade – sem falar em todos os penduricalhos e demais benesses -, da estabilidade no cargo, de horários bem “flexíveis”, de férias prolongadas, e, melhor ainda, sem qualquer cobrança efetiva por desempenho. Porém, tudo ainda muito insignificante para o meu futuro imperador.
– E como pretendes que me torne juiz? Por um passe de mágica?
– Quase isso. Amanhã mesmo, procura o teu inseparável colega A., filho do desembargador X. – cujas festanças e a casa de praia cinematográfica frequentas desde o início da faculdade -, e pede-lhe uma vaga no escritório onde ele trabalha desde estagiário. Estou certo de que não te negará favor tão singelo.
– Impossível. A sociedade de advogados que ele integra, uma das maiores do Rio, é especializada em um ramo do Direito no qual jamais atuei.
– Ora, ora, que importância tem isso em se tratando de amigo íntimo do filho do Dr. X? Outrossim, ostentas a maior qualificação para o cargo, pois, do alto da tua inópia mental, seguirás repetindo falas alheias, sobretudo as dos figurões da banca, o que te valerá, desde o primeiro dia, toda a simpatia e boa-vontade dos que mandam por lá. Aliás, urge aparelhar teu espírito contra o risco de surgimento de ideias próprias, perigo este que poderá ser afastado por meio de tua imbecilização ainda maior em horas adicionais nas redes sociais, e da busca pelo constante tumulto das multidões. A solidão é fatal para teus planos, já que o indivíduo, entregue a si mesmo, pode se tornar verdadeira oficina de pensamentos.
– Como farei para adaptar-me à rotina de um grande escritório? Logo eu, que nunca fui dado a estudos jurídicos, e que só passei por um estágio curto na defensoria?
– Tanto melhor. Segue os passos do teu amigo, que “arranha” o português e sequer se envergonha de ostentar sua nulidade como jurista. Trata de adulá-lo mais a cada dia, e acompanha-o às audiências, aos julgamentos e às reuniões, mas, sobretudo, às atividades sociais, que certamente preencherão quase todas as horas dos teus dias, e boa parte das tuas noites. Torna-te sua sombra em seminários, cerimônias de posse, convescotes e até funerais, e não esquece, por óbvio, de pajeá-lo também nas tradicionais happy hours em whiskerias nas proximidades do fórum. Finge comer e beber à farta, mas freia o apetite e o consumo do álcool; ri bastante e fala muito sem dizer nada, enquanto dá ouvidos ao que disserem os potentados jurídicos e políticos, e mais ouvidos ainda ao que eles “soltarem” em estado etílico. Quanto ao teu linguajar, não há motivo para preocupação: meia dúzia de fórmulas jurídicas prontas te servirão, com folga, nos eventos solenes, e, para as ocasiões oficiosas, recorre à vulgaridade e aos termos mais chulos que te vierem à mente.
– Uau! Que profissão difícil essa! Agora vamos à parte menos glamourosa do trabalho. O que devo fazer na minha nova rotina como advogado?
– Se longos cinco anos na academia não souberam te ensinar a profissão, serei eu a sabê-lo? Mas vamos lá, não me furtarei ao desafio. Concentra-te nos assuntos dos clientes mais ricos e poderosos, e defende-os com ardor e convicção, a ponto de sustentar, em petições histriônicas e gestos teatrais, a inocência de políticos flagrados com dinheiro na cueca ou malas milionárias, de executivos cujo padrão de vida seja incompatível com seus vencimentos, e de empresários que mantenham “departamentos de propina” como setores regulares de seu organograma. Depois de horas de dedicação tão intensa, te aguardará um sono tranquilo e reparador, na certeza do cumprimento do teu dever profissional e até de tua função social como cidadão. Afinal, todos têm direito à defesa, e, como uma sociedade não se autogoverna, teu trabalho servirá de ferramenta valiosa para o retorno ao poder de figuras experientes na vida pública, sem as quais poderíamos nos ver entregues à desordem e ao caos.
– E quando haverá de chegar o meu dia como magistrado?
– O que te ensino não é nada fácil, leva tempo, paciência e muito trabalho, mas, com boa dose de afinco, triunfarás! Colocarás em prática todos os meus conselhos e deixarás que os anos operem o seu ofício. Ora, somente o passar do tempo transformará o lambe-botas de hoje no advogado reconhecido de amanhã. Da mesma forma como apenas os anos selarão os elos de “confiança” que despertarás junto aos maiorais jurídicos, togados ou não, e junto às figuras de renome no empresariado e na política que vierem a ser defendidas por ti. Até o tão aguardado dia em que teu amigo – sempre ele, o teu esteio e garante da tua “credibilidade” – vier a ser nomeado desembargador pelo quinto (constitucional), para ocupar a vaga de algum togado aposentado.
– E eu?
– Serás o próximo! Afinal, com todo o vasto círculo de boas amizades que tiveres angariado, serás lembrado em todas as listas da Ordem, terás o beneplácito do tribunal e constarás como primeira opção do governador, ou do presidente de plantão. Até porque, até lá, já estarás engajado nas mais elevadas esferas políticas e sempre ao lado do partido da situação, claro. Mesmo na remota hipótese de troca do grupo no poder, o teu vastíssimo raio de influência e, não menos importante, as confidências que tiveres trocado com figuras de todo o espectro político nacional assegurarão tua chegada à corte. Assim, já me delicio antevendo a cerimônia da tua posse, no dia em que vestirás a toga, e serás investido do poder da caneta, inclusive para dirimires causas envolvendo teus ex-clientes, e até defendidas por teus parentes. Daí em diante, seguirás sozinho, adotando o mesmo modus operandi de sempre, até que, graças ao teu talento de medalhão togado, alcances a tão sonhada cúpula judiciária. Se conseguires atravessar esse Rubicão, serás livre e empoderado para decidires sobre a liberdade alheia, sem qualquer amarra imposta por cânones, por leis ou pela Constituição.
– Mas talvez gostasse de exercer outra atividade, como, por exemplo, a política.
– Será possível que, além de tolo, sejas alheio ao noticiário? É exatamente como medalhão togado, e, de preferência, como medalhão togado supremo, que estarás no topo de todas as esferas de mando, ditando políticas públicas a mandatários eleitos, dispondo da prerrogativa de calar, prender e caçar (com “ç” mesmo!) teus inimigos, assim como todos aqueles que identificares como tais, e de pronunciar longos discursos midiáticos, sempre dentro dos limites da invejável mediocridade.
– Nenhuma imaginação? Nenhuma filosofia?
– Nada disso. Quando alçado a medalhão supremo – e o serás! -, contenta-te em repetir as já envelhecidas fórmulas de que o teu tribunal é um poder político, e de que todos vocês, supremos togados, são os defensores da democracia contra os ataques golpistas por parte de extremistas. E não esqueças tu de rotular teus desafetos pessoais como inimigos da própria ordem democrática e como nefastos disseminadores de desinformação.
– Farei o meu melhor.
– Rumina bem minhas palavras, filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale O Príncipe de Machiavel, e desde já te dispensa do trabalho de lê-lo. Vamos dormir.
Talvez nem mesmo o genial Machado de Assis tenha imaginado toda a extensão dos prejuízos causados por sucessivas gerações de medalhões, parasitas bajuladores, ávidos por seus carguinhos na cúpula estatal e ocos de espírito. Até quando prosseguiremos fomentando, nos brasileiros do amanhã, o desejo de se tornarem deuses do céu brasiliense, alheios à institucionalidade e investidos de poderes ilimitados? Sugestão de reflexão para o alvorecer do próximo ano.