A Suprema Corte, o caso Smith & Wesson e o PL da Responsabilidade Sem Limite no Brasil
Em 5 de junho de 2025, a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou por unanimidade a tentativa do governo mexicano de responsabilizar sete fabricantes norte-americanos de armas pela violência causada por cartéis em território mexicano. A acusação era ambiciosa: alegava-se que essas empresas, ao manterem relações comerciais com revendedoras supostamente envolvidas em práticas ilegais, teriam contribuído para o tráfico de armas e, por consequência, para os crimes cometidos com elas. O processo foi barrado com base em uma norma federal que protege expressamente a indústria armamentista contra esse tipo de responsabilização indireta: o PLCAA – Protection of Lawful Commerce in Arms Act.
Promulgado em 2005, o Protection of Lawful Commerce in Arms Act (PLCAA) é uma legislação federal dos Estados Unidos que protege fabricantes e vendedores de armas de fogo contra ações civis decorrentes do uso criminoso de seus produtos por terceiros. A lei não impede todas as ações judiciais, mas veda aquelas que buscam responsabilizar esses agentes por danos causados por terceiros, exceto em situações específicas. Uma dessas exceções é a chamada “predicate exception”, que permite ações quando se alega que o fabricante ou vendedor violou conscientemente uma lei estadual ou federal aplicável à venda ou marketing de armas, e essa violação foi causa próxima do dano alegado. No caso em questão, o governo mexicano tentou enquadrar sua ação nessa exceção, argumentando que os fabricantes de armas sabiam que seus produtos seriam desviados para o tráfico ilegal. No entanto, a Suprema Corte dos EUA concluiu que as alegações do México não satisfaziam os critérios exigidos pela “predicate exception”, pois não demonstravam uma violação específica e consciente de uma lei aplicável, nem estabeleciam um nexo causal direto com os danos alegados.
O voto, redigido pela Justice Elena Kagan, vai ao ponto: não basta saber que seu produto pode ser mal utilizado. É preciso demonstrar participação consciente, conduta afirmativa, adesão mental e causalidade concreta. A simples tolerância ou omissão — ainda que censurável sob o ponto de vista ético — não atende ao padrão de culpabilidade jurídica exigido para configurar “ajuda e incentivo” a um crime. A Corte reconhece que os fabricantes sabiam da possibilidade de desvio das armas, mas rejeita a tese de que esse conhecimento genérico seja suficiente. E é enfática ao afirmar que uma empresa que vende um produto legal, em larga escala, sem violar as normas aplicáveis, não se converte em cúmplice pelo simples fato de que parte da sociedade o utiliza para o mal.
No que tange ao nexo de causalidade, cumpre esclarecer que a exigência decorre diretamente do texto do PLCAA, em especial do § 7903(5)(A)(iii), que define os requisitos da chamada predicate exception. Segundo o dispositivo, a ação só pode prosseguir se houver (i) violação consciente (knowingly) de uma lei federal ou estadual aplicável à venda ou marketing de armas e (ii) demonstração de que essa violação foi a causa próxima (proximate cause) do dano alegado. Trata-se de um filtro jurídico severo, que exclui hipóteses de responsabilidade por omissão, ambiente permissivo ou mera associação indireta. A Corte interpretou esse padrão de forma estrita: não basta saber que o produto pode ser desviado, nem que o mercado comporte riscos — é preciso apontar conduta afirmativa, transgressão normativa concreta e elo causal direto entre o ato e o dano. Inferências estatísticas, correlações genéricas ou práticas comerciais legalmente toleradas não satisfazem esse critério. A responsabilização civil, nesse modelo, não admite atalhos: exige o nexo determinado pelo legislador. E onde a lei exige proximate cause, não cabe substituí-la por probabilidade, abstração ou expectativa política.
Esse padrão de causalidade guarda notável semelhança com a exigência de “dano direto e imediato” consagrada no artigo 403 do Código Civil brasileiro. Assim como o proximate cause no direito norte-americano, a cláusula brasileira veda a responsabilização por prejuízos que decorram de cadeias causais longas, reflexas ou indiretas. Em ambos os sistemas, não basta apontar uma conexão fática entre o fato e o dano: exige-se uma conexão normativa qualificada, capaz de justificar a imputação jurídica. A causalidade, nesse modelo, não é uma questão de mera sequência ou frequência, mas de imputação estruturada com base em previsão legal, tipicidade da conduta e controle sobre o resultado. O que a Suprema Corte dos Estados Unidos disse, ao interpretar literalmente o § 7903(5)(A)(iii), ecoa o princípio brasileiro de que a responsabilidade não alcança aquilo que, embora decorrente em termos materiais, não se apresenta como efeito juridicamente atribuível ao agente.
Pois bem. Dito isso, o México não conseguiu apontar nenhuma transação específica, nenhum lojista determinado, nenhum ato concreto. As acusações eram vagas, sistêmicas, imprecisas. Alegava-se que os fabricantes continuavam fornecendo a lojistas “problemáticos”, mas não se indicavam nomes, datas, registros, números de série, relatórios de fiscalização, ou qualquer elemento que configurasse a conduta exigida pela doutrina da aiding and abetting[1]. A Corte sublinha que, sem isso, não há dolo, não há ato, não há causa — há apenas inferência. E a inferência, nesse contexto, é insuficiente.
Mais do que rejeitar a pretensão mexicana, o voto reafirma a separação entre ética e responsabilidade jurídica, entre expectativa política e rigor técnico. Os Justices reconhecem que os fabricantes poderiam ter adotado medidas voluntárias de contenção: restringir a revenda, impor cláusulas contratuais, supervisionar distribuidores. Mas afirmam, com clareza, que a ausência dessas medidas não configura cooperação com o crime. Omissão, aqui, não é coautoria. Nem o marketing agressivo, nem o design simbólico das armas, nem os nomes em espanhol bastam para imputar culpa. O apelo comercial a um determinado público — ainda que ele inclua criminosos — não se confunde com adesão ao propósito criminoso[2]. O mesmo produto pode ser objeto de desejo de um colecionador honesto e de um traficante. E a responsabilidade não pode se basear em intenções presumidas.
A Corte faz, ainda, uma defesa firme da função do Congresso. O PLCAA foi criado para impedir que o Judiciário se transformasse em legislador indireto, impondo à indústria deveres e controles que os representantes do povo não quiseram aprovar por via legislativa. Aceitar a tese do México seria inverter esse pacto institucional: permitir que ações judiciais supram a ausência de consenso político e abram precedentes para responsabilizações ilimitadas por atos de terceiros. A lei não autoriza isso. E, mais do que isso, a Constituição exige contenção.
Essa decisão importa ao Brasil. Num país onde a retórica judicial frequentemente transforma responsabilidade objetiva em ferramenta ideológica, e onde o clamor social ameaça suplantar o devido processo, o precedente americano serve de lição. O fabricante não responde por aquilo que não fez, não causou, não previu de modo específico e não aderiu voluntariamente. A legalidade, a liberdade econômica e a segurança jurídica exigem algo mais. Exigem prova, nexo, tipicidade, limite. Punir com base em pressupostos morais é politizar o Direito. E permitir que a culpa seja atribuída por associação simbólica — porque o produto é perigoso, porque o ambiente é violento, porque a consequência foi grave — é transformar o processo em palco e o juiz em censor.
Em nosso país, o caso merece atenção redobrada. Está em curso no Congresso o Projeto de Lei nº 4/2025, que propõe ampla reforma do Código Civil, com ênfase na responsabilidade objetiva por risco da atividade. O novo art. 927, se aprovado, criará um sistema de imputação automática a qualquer fornecedor de produtos ou serviços – frise-se, quaisquer tipos de produto ou serviço – cujos efeitos causem dano, mesmo quando não haja defeito, culpa ou violação contratual. A responsabilidade, nesse modelo, será quase sempre presumida. O risco, presumido. A culpa, irrelevante. É a lógica do bode expiatório travestida de modernização legislativa.
Vale lembrar que a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos não se apoiou em princípios maleáveis de common law, mas na interpretação estrita de uma lei federal clara — o PLCAA. Os Justices, inclusive a própria relatora Elena Kagan, nomeada por um presidente democrata e notoriamente progressista, seguiram o texto. Aplicaram os termos da lei como estão, sem invencionices, sem abstrações redentoras, sem atalhos hermenêuticos. O resultado não foi ideológico, mas jurídico. E esse é justamente o valor do precedente: mostrar que a contenção do poder de punir não depende da orientação política do julgador, mas do compromisso com a letra da lei. No Brasil, porém, o movimento é outro. O Projeto de Lei nº 4/2025 — especialmente ao reformular o art. 927 do Código Civil — dissolve esse tipo de contenção. Transforma a responsabilidade civil em ferramenta de imputação automática. Bastará que um produto, mesmo lícito e devidamente comercializado, tenha sido utilizado de forma danosa por terceiros, para que o fabricante possa ser responsabilizado, independentemente de culpa, nexo ou previsibilidade.
As consequências não serão apenas jurídicas — serão estruturais. Ao romper o elo entre conduta e imputação, o projeto compromete a previsibilidade do sistema e perverte a lógica dos incentivos. Os custos da incerteza se espalharão por toda a cadeia produtiva: o fabricante passará a responder não pelo que fez, mas pelo que terceiros fizeram com o que ele produziu legalmente. Punido será não quem agiu com dolo ou culpa, mas quem estava presente na origem de um dano futuro. A inovação cederá lugar à blindagem. O risco, presumido. A culpa, irrelevante.
Nos Estados Unidos, o caso envolvia armas — um tema explosivo, politicamente polarizado, moralmente controverso. E ainda assim a Suprema Corte disse não. E mais: disse não cumprindo o que o legislador determinou. Em um país marcado pela common law, foi o Congresso que impôs os limites — e o Judiciário, inclusive sua ala mais progressista, respeitou o texto. Contenção judicial, ali, nasceu da contenção legislativa. Já no Brasil, país de tradição codificada e estrutura normativa densa, o movimento é o inverso. Usa-se a lei não para conter, mas para liberar. Em vez de frear o ímpeto interpretativo, o legislador abre caminho para a imputação irrestrita. Em vez de limitar o juiz, dissolve-se o limite. O que lá foi contenção judicial diante de um tema sensível, aqui será autorização legislativa para o arbítrio judicial em qualquer atividade humana. É a subversão do sistema: o uso do civil law contra a função que o define — impor forma, estabelecer freio, assegurar previsibilidade.
Responsabilizar quem não praticou o ato pode confortar o senso comum. Mas não é justiça. É atalho. E atalho, quase sempre, leva ao arbítrio.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.
[1] A doutrina do aiding and abetting, consolidada a partir do caso United States v. Peoni, 100 F.2d 401, 402 (2d Cir. 1938), exige que o réu tenha praticado um ato afirmativo com a intenção de facilitar a conduta criminosa de outrem — isto é, que tenha “participado como alguém que deseja provocar o resultado e busca, por sua ação, fazê-lo acontecer”. A responsabilidade pressupõe contribuição concreta, adesão mental e finalidade compartilhada com o autor principal. Conhecimento genérico, omissão passiva ou tolerância ética não bastam.
[2] Há, nesse ponto, uma defesa implícita da liberdade de expressão comercial. A Corte recusa a ideia de que o design gráfico, a escolha de nomes ou o apelo mercadológico direcionado possam, por si sós, constituir cooperação criminosa. Trata-se de um limite importante à responsabilização simbólica: o conteúdo comunicativo de uma marca ou campanha não equivale a adesão ao ilícito praticado por terceiros. Essa distinção preserva o espaço legítimo da expressão econômica — protegida, nos Estados Unidos, pela Primeira Emenda, e, no Brasil, pelos arts. 5º, IV e IX, e 220 da Constituição Federal. Ainda que o Código de Defesa do Consumidor imponha limites à publicidade enganosa ou abusiva (art. 37), tais restrições, em nosso país, deveriam exigir demonstração objetiva de ilicitude e de nexo com dano concreto. Nenhum desses requisitos se satisfaz por mera aparência estética, uso de símbolos culturais ou apelo a públicos amplos e indeterminados. A intenção presumida não pode substituir a conduta dolosa demonstrada.