A defesa não é obstrução: um alerta à democracia
Mais um alerta que se acende e não diz respeito apenas a personagens ou preferências políticas. O que está em jogo é a própria salvaguarda das garantias de defesa e o lugar institucional da advocacia em um processo penal que se pretende democrático. Dois episódios recentes ajudam a compreender a gravidade do momento.
No primeiro episódio, relacionado à defesa do coronel Marcelo Costa Câmara, veio a público que advogados teriam dialogado com o delator, Mauro Cid, no contexto de uma investigação defensiva — técnica legítima, reconhecida pela OAB (Provimento 188/2018), voltada a produzir elementos que possam favorecer o acusado e equilibrar a paridade de armas. A partir desse quadro, o Ministro relator da Ação Penal determinou a instauração de inquérito policial contra o advogado que conduzia a apuração defensiva.
É preciso ser didático. Investigação defensiva não é capricho corporativo, nela se concretiza o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição), ela dialoga com a Súmula Vinculante 14 do STF, que assegura acesso a elementos de prova indispensáveis. O contato com potenciais fontes — inclusive colaboradores premiados — não é, por si, ilícito, desde que não haja indução à falsidade, coação, violação de sigilo legal ou obstrução concreta de diligências.
Tratar a mera iniciativa de ouvir, checar versões e reunir documentos como indício de crime inverte a lógica do devido processo e intimida a atuação técnica do defensor.
No segundo episódio, a defesa de Filipe Martins foi mencionada em relatório da Polícia Federal por ter impetrado mandado de segurança diante das ilegalidades ocorridas no curso da ação penal que seu cliente responde. O documento da Polícia Federal sugere uma atuação “coordenada” com intuito de causar tumulto processual e “subverter a lógica jurisdicional do julgamento”.
Aqui a distorção é ainda mais evidente. O mandado de segurança (art. 5º, LXIX, da Constituição) é remédio clássico do constitucionalismo brasileiro para conter abusos de poder e ilegalidades. Classificar sua impetração como “estratégia para tumultuar” deslegitima o uso regular de uma garantia constitucional e desestimula o controle jurisdicional dos atos estatais.
Se a busca de tutela judicial passa a ser vista como afronta ao próprio Judiciário, a porta da legalidade se fecha por dentro.
Os dois casos convergem para um problema institucional que consiste na normalização da suspeita sobre atos típicos da advocacia. Não se trata de blindar ilícitos — coação de testemunha, destruição de prova ou violação de sigilo são crimes e devem ser reprimidos. Trata-se de afirmar que investigar, peticionar, impetrar, recorrer, dialogar com fontes, analisar provas e pressionar por transparência são condutas legítimas e, muitas vezes, deveres éticos da defesa.
A Constituição diz que o advogado é indispensável à administração da Justiça (art. 133). O Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) consagra a inviolabilidade do advogado por seus atos e manifestações no exercício profissional, resguarda o sigilo profissional e protege escritórios e comunicações. A Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) coíbe condutas de agentes públicos que, por excesso, criminalizam prerrogativas e constrangem o exercício da defesa. Não são privilégios: são ferramentas estruturais para que o cidadão não fique à mercê do processo como instrumento de poder.
Transformar diligências defensivas e remédios constitucionais em “indícios” produz um efeito inibitório. Advogados passam a temer pedir vista, requerer diligências, confrontar versões, impetrar habeas corpus ou apresentar recursos não por estratégia, mas por receio de se tornarem investigados. O resultado é um processo unilateral, no qual a narrativa oficial não é testada e o erro — que é humano — deixa de ser corrigido a tempo.
Os casos ilustram um fenômeno preocupante: a criminalização velada da atuação do advogado justamente quando ele cumpre, com maior vigor, sua missão constitucional. Esse caminho corrói silenciosamente o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, até que reste apenas um ritual formal rumo ao veredito.
Defesa forte não é obstrução; é condição da justiça. Se aceitarmos que o exercício das garantias constitucionais se transforme em comportamento suspeito, em breve aceitaremos que o silêncio seja culpa e que a discordância seja crime. A democracia não sobrevive a esse atalho.
*Antonio Carlos Fonseca – Advogado, Sócio do Miranda Fonseca Advocacia, membro da Lexum.