A decisão da Suprema Corte dos EUA em Barnes v. Felix

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A decisão unânime da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Barnes v. Felix, 605 U.S. ___ (2025), proferida em 15 de maio deste ano, foi equivocadamente descrita em certos meios de comunicação jurídica como uma “facilitação” de ações contra policiais. O título do artigo publicado pelo Consultor Jurídico — “Suprema Corte dos EUA facilita processo contra policiais por uso fatal da força” — distorce uma reafirmação do padrão constitucional em uma leitura editorializada — não informativa, mas opinativa — com nítido viés político. Trata-se de uma caracterização imprecisa que, além de obscurecer os fundamentos jurídicos do julgado, sinaliza algo mais grave: a substituição da análise constitucional pela militância disfarçada de interpretação.

O julgado em Barnes v. Felix não representa inovação, mas reafirmação: recusa um reducionismo jurisprudencial que compromete o padrão constitucional de razoabilidade e devolve à Constituição sua autoridade textual.

No centro do caso estava a doutrina do moment of threat, adotada pelo Quinto Circuito, segundo a qual a análise da razoabilidade do uso da força letal por parte do agente estatal deve se limitar ao instante exato em que o policial percebe uma ameaça à sua integridade física. Isso significa — e foi admitido pelas instâncias inferiores — que nenhum fato anterior ao disparo poderia ser considerado, inclusive decisões do próprio policial que teriam contribuído para a escalada da situação. Essa doutrina é também adotada pelo Segundo, Quarto e Oitavo Circuitos, ao passo que os demais Circuitos aplicam o critério da totality of the circumstances.

A Suprema Corte, ao julgar Barnes v. Felix, enfrentou diretamente esse conflito interpretativo à luz da cláusula da Quarta Emenda, que proíbe “searches and seizures” (buscas e apreensões) desarrazoadas. Reafirmando a jurisprudência estabelecida desde Graham v. Connor, 490 U.S. 386 (1989), a Corte reiterou que o uso da força deve ser julgado com base na razoabilidade objetiva, sob a ótica de um policial razoável na cena dos fatos — e não com a comodidade analítica de quem julga ex post. Isso exige considerar a totalidade das circunstâncias, inclusive os eventos antecedentes que contextualizam a ação final. Ao restringir essa análise a um recorte temporal de dois segundos, o Quinto Circuito violou não apenas o precedente, mas a própria lógica constitucional da razoabilidade.

Como destacou a Justice Kagan, relatora da decisão unânime, “The ‘totality of the circumstances’ inquiry into a use of force has no time limit” — isto é, não pode ser restringida cronologicamente de modo artificial (Barnes v. Felix, op. da Corte, p. 5). Em outras palavras, o juiz constitucional não pode decidir com “vendas cronológicas”, sob pena de ignorar a moldura fática completa de um evento estatal de violência: “A court deciding a use-of-force case cannot review the totality of the circumstances if it has put on chronological blinders” (op. cit., p. 7).

Na prática, a Suprema Corte remeteu o caso de volta para que o Tribunal do Quinto Circuito reaprecie a questão à luz do entendimento unanime dos Justices, ou seja, de que em situações extremas é preciso considerar a totalidade das circunstâncias envolvidas sob a perspectiva de um policial razoável.

Logo, ao reduzir essa decisão a uma “facilitação” processual o artigo do Conjur incorre em dois erros. O primeiro é ignorar a natureza normativo-constitucional do padrão de razoabilidade objetivo já consolidado na jurisprudência da Suprema Corte (vide Graham v. Connor). O segundo, mais grave, é transformar o Judiciário em protagonista político, como se tivesse sido a Corte a “tomar partido” contra policiais. Trata-se, na verdade, de uma reafirmação da contenção judicial: o juiz não deve presumir a legalidade da força por conveniência institucional, nem deve condenar o policial por reflexo ideológico. Deve aplicar a Constituição — com rigor, sim, mas com fidelidade ao seu texto.

Tal distorção interpretativa dos fatos é ainda mais visível na omissão do artigo em relação à opinião concorrente do Justice Kavanaugh, subscrita pelos Justices Thomas, Alito e Barrett. Essa opinião concorrente reconhece, com substância empírica e prudência judicial, os riscos reais e extremos enfrentados por policiais em abordagens rotineiras. Ao citar exemplos concretos de policiais mortos em paradas de trânsito e a imprevisibilidade das situações, Kavanaugh destaca que o risco não reside apenas na infração que motiva a abordagem, mas na reação do abordado, que pode ocultar crimes mais graves ou representar ameaça à coletividade: “A driver who speeds away from a traffic stop can pose significant dangers to both the officer and the surrounding community.
(Barnes, conc. Kavanaugh, p. 4)

A opinião do Justice Kavanaugh, embora não afaste a necessidade de controle constitucional da força letal, reequilibra o debate sobre esse tema, lembrando que não há soluções fáceis para decisões tomadas em segundos sob altíssima tensão. Ignorá-la — como fez o artigo jornalístico — é empobrecer o caso e ocultar parte do esforço da Suprema Corte em harmonizar texto constitucional com realidade prática.

A Constituição, não só a americana, mas de qualquer nação, não é um editorial. Não pode ser lida como palanque de causas, por mais nobres que se apresentem. O artigo do Conjur, ao sugerir que a decisão representaria um avanço contra a polícia, substitui o raciocínio jurídico pela retórica política e compromete a compreensão adequada do julgado, ainda mais considerando que a jurisprudência americana frequentemente é comentada no Brasil, mesmo que mal compreendida muitas das vezes, de modo que o cuidado com a precisão da análise se torna não apenas desejável, mas obrigatório.

A decisão unânime em Barnes v. Felix não criou um “novo direito”, como parece ser o entendimento do artigo — apenas reafirmou que nenhum tribunal pode fechar os olhos à moldura fática de um evento estatal de violência. Talvez o equívoco constatado no artigo do Conjur decorra da situação vivenciada já há algum tempo – mas agravada nos últimos 6 anos – aqui no Brasil. A lição que deveria ficar para nós é que o papel do juiz constitucional não é proteger instituições ou indivíduos abstratamente, mas resguardar o texto da Constituição contra distorções — inclusive hermenêuticas. Isso exige contenção. Julgar com base na Constituição, mesmo quando isso contraria preferências políticas ou institucionais, é o que distingue o juiz republicano do juiz político.

Para finalizar, vale citar as palavras do Justice Neil Gorsuch proferidas perante o Comitê de Assuntos Judiciários do Senado norte americano, em 20 de março de 2017, antes da sua confirmação para a Suprema Corte: “For the truth is, a judge who likes every outcome he reaches is probably a pretty bad judge, stretching for the policy results he prefers rather than those the law compels.

O que a Constituição exige, em casos como Barnes v. Felix, é precisamente isso: que se veja o contexto sem romantizá-lo, que se respeite o texto sem reescrevê-lo, e que se julgue com base no direito — não na tentação editorial, nem no ativismo disfarçado de compaixão. Pois o verdadeiro juiz republicano não busca agradar, mas obedecer. E sua fidelidade não é às causas do momento, mas à lei que permanece — como uma âncora constitucional em meio aos ventos passageiros da opinião pública.

*Mario Conforti – Advogado, pós-graduado-graduado pela FGV Direito Rio, Fundador e membro do Conselho Fiscal da Lexum.

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