A coragem perdida: OAB ontem e hoje
Embora uma parcela da direita brasileira ainda questione o golpe de 1964, é inegável que o Ato Institucional nº 5 (AI-5), editado no quinto ano do regime militar, representou uma violação mordaz das liberdades individuais — aquelas que conservadores, liberais clássicos e libertários sempre defenderam como inalienáveis. O AI-5 não apenas suspendeu direitos e garantias fundamentais, mas marcou uma época em que o Estado brasileiro se entregou ao arbítrio e ao autoritarismo, desconsiderando os princípios de liberdade e justiça. Diante desse contexto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sob a liderança de figuras como Laudo de Camargo e Raymundo Faoro, não hesitou em se levantar como uma força moral, reafirmando seu compromisso com o Estado de Direito e os direitos individuais, mesmo sob a sombra do autoritarismo.
Naquele período sombrio, a OAB desempenhou um papel crucial como uma das poucas instituições que mantiveram uma postura firme e corajosa frente ao regime. Esse papel é narrado de forma marcante nos livros de Elio Gaspari, que documenta a trajetória da OAB sob as presidências de figuras como Laudo de Camargo e, posteriormente, Raymundo Faoro. Em uma época em que o AI-5 transformou o Estado brasileiro em uma máquina de repressão, a Ordem não hesitou em se posicionar contra os abusos, afirmando-se como uma defensora intransigente dos direitos fundamentais e da legalidade.
Laudo de Camargo, presidente da OAB quando foi instituído o AI-5, adotou uma postura pública de crítica ao endurecimento do regime enquanto muitos se calavam diante do poder militar. Ele e a OAB mantiveram um compromisso com o Estado de Direito, recusando-se a aceitar a perda das garantias constitucionais e denunciando as prisões arbitrárias, a tortura e o desrespeito às liberdades civis. Esse ato de resistência não se deu por meio de interpretações ativistas ou distorções do texto legal, mas pelo uso da hermenêutica clássica, sem os arroubos dos neoconstitucionalistas e neopositivistas atuais. Laudo de Camargo e seus colegas de luta ancoraram-se nos princípios fundacionais do direito, buscando uma interpretação fiel às normas, às garantias constitucionais e aos valores universais de liberdade e justiça. Gaspari descreve esse momento como um período de resistência moral em que a Ordem enfrentou ameaças e pressões, mas não se curvou, definindo-se como um bastião de resistência e conquistando o respeito como uma das vozes que falavam em nome de uma sociedade silenciada.
Com a presidência de Raymundo Faoro, essa resistência não só continuou, mas ganhou ainda mais articulação e visibilidade. Faoro, um advogado e intelectual profundamente comprometido com os ideais de democracia e liberdade, ampliou a atuação da OAB, utilizando sua capacidade de articulação para envolver a sociedade civil na luta pela redemocratização. Gaspari destaca que Faoro assumiu o desafio de dialogar com os militares em busca de uma transição para a democracia, sempre sem comprometer os princípios que guiavam a instituição. Ele se recusava a flexibilizar os valores que defendia, permanecendo fiel à hermenêutica jurídica tradicional, a fim de assegurar que a luta pelo Estado de Direito não se transformasse em um discurso politizado, mas sim em um compromisso com o direito universal. Faoro sabia que essa era uma batalha pela própria identidade do Brasil e estava disposto a enfrentá-la com a mesma coragem que Laudo de Camargo havia demonstrado no início da repressão.
Hoje, ao olharmos para a atuação atual da OAB, é inevitável uma comparação que revela uma triste diferença. A coragem daqueles tempos parece ter se transformado em uma postura pusilânime. Em vez da firmeza de Laudo e Faoro, observamos uma OAB hesitante e, em muitos momentos, cúmplice de poderes que desafiam princípios fundamentais. A entidade, que um dia foi uma das últimas trincheiras em defesa das liberdades, muitas vezes parece hoje mais alinhada ao establishment, cautelosa ao criticar excessos e seletiva em suas defesas.
Essa transformação representa, na verdade, uma perda de identidade. A OAB da época de Camargo e Faoro era uma força moral, capaz de se opor ao regime com independência e coragem, sempre fiel à essência do direito clássico, sem concessões a interpretações ativistas. A atual parece ter esquecido esse legado, entregando-se a um silêncio que, em muitos aspectos, reforça o sentimento de desesperança que paira sobre a sociedade brasileira. Gaspari nos mostra, em sua obra, o exemplo de resistência moral que a Ordem personificou, e, ao revisitar essa história, fica claro o quanto esse espírito de coragem faz
falta nos dias de hoje. A OAB precisa se lembrar de sua própria história e recuperar o papel de defensora intransigente dos direitos fundamentais que um dia a definiu — um papel que, no atual contexto, é mais necessário do que nunca.
Como Edmund Burke nos ensinou, “para que o mal triunfe, basta que os bons fiquem de braços cruzados.” A história da OAB, marcada pela firmeza de Laudo de Camargo e Raymundo Faoro, deveria nos lembrar que a coragem de poucos pode conter os abusos de muitos. No entanto, se a entidade continuar a hesitar diante das ameaças ao Estado de Direito, a passividade que Burke advertiu se tornará nossa triste realidade. Como bem expressou Rui Barbosa, “de tanto ver triunfarem as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.” Mais do que nunca, a Ordem precisa revisitar suas raízes e recordar-se de que seu silêncio não é apenas uma omissão, mas uma permissão tácita para que os excessos floresçam. Que as lições de Burke e Rui, somadas aos exemplos de outrora, possam guiá-la de volta à sua missão.