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“Justiça: O que é fazer a coisa certa”, de Michael J. Sandel

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Michael Sandel possui doutorado em filosofia pela Universidade de Oxford e é professor do curso de filosofia da Universidade Harvard, onde suas aulas despertam a curiosidade de alunos de diversos cursos, o que levou seu curso “Justiça” a se tornar o mais popular da universidade, ser o primeiro a ser disponibilizado gratuitamente de forma on-line e também a ser televisionado na TV aberta.

Em seu livro Justiça, Sandel aborda diferentes correntes filosóficas como utilitarismo, liberalismo[1] e libertarianismo, além das filosofias de Kant e Aristóteles. Percebemos o tom “professoral” da abordagem de Sandel ao buscar explorar nuances em situações controversas que ocorrem em nossas vidas. Além disso, o autor discute como diferentes perspectivas podem recomendar atitudes diversas diante das mesmas circunstâncias – ou, ainda que a decisão seja a mesma, apresentar fundamentos diferentes para ela.

Um dos primeiros temas debatidos na obra é a política de controle de preços. O autor usa como exemplo o aumento de preços exacerbado verificado em uma região após ser atingida por um furacão. Na apresentação do problema feita por Sandel, avaliamos que fica explícita a noção de que a ganância é um defeito moral. Sem entrar no juízo de valor dessa afirmação, surgem outros questionamentos que julgamos igualmente interessantes partindo da mesma premissa.

No Brasil, são frequentes (e repetitivos) protestos de diversas categorias do serviço público por reajustes de salários. Em que pese a população muitas vezes seja prejudicada pela suspensão do serviço ou por paralisações no trânsito, ainda assim muitos simpatizam com o movimento grevista. Um questionamento que se coloca nessa situação, a partir da premissa de Sandel de que a ganância é um defeito moral: por que a busca de reajuste para categorias com salários altos (comparados com seus pares da iniciativa privada) não gera a mesma comoção/ultraje que a venda de produtos mais caros durante períodos de calamidade?

No cenário base discutido por Sandel – aumento de preços em região atingida por furacão -, sentimos falta de outros questionamentos não abordados no livro: qual seria a fórmula para precificar as dificuldades que os vendedores terão com esse cenário para repor estoques, encontrar prestadores de serviços, reconstruir lojas, etc.? Como identificar com clareza uma precificação abusiva? Segundo Sandel, uma lei contra o abuso de preço “aborda a virtude – o incentivo a atitudes e disposições, a qualidades de caráter das quais depende uma boa sociedade”; no entanto, suscita reflexão: quão virtuosa é uma sociedade que precisa de leis para que a virtude prevaleça?

Visando a levar mais nuances para a questão colocada por Sandel de que a ganância seria um defeito moral, fazemos ainda um último questionamento: quem se interessa pelas motivações do Jeff Bezos, quando ele cria centenas de milhares de empregos durante a pandemia?

O autor também traz para o debate o “serviço” de barriga de aluguel, controverso (e ilegal) em muitos países. O autor relata a decisão da justiça que avaliou a necessidade financeira e “falta de informações” da mãe biológica da criança como fatores que tornavam nulo o contrato. Além disso, o juiz Wilentz (relator do caso) rejeita a ideia de que esse é um serviço válido, considerando que contratos de aluguel degradam a criança e a procriação por mercantilizar coisas que “em uma sociedade civilizada, o dinheiro não pode comprar”.

A partir do posicionamento do juiz Wilentz, podemos ponderar outras questões sobre coisas que supostamente “o dinheiro não pode comprar”. Não seria de se imaginar que a tarefa da educação infantil cabe aos pais de uma criança? Nesse caso, o serviço de creche poderia/deveria ser vendido? Esse serviço e as creches que os ofertam não degradam o papel que deveria ser dos pais de educar seus filhos na primeira infância? O serviço de uma babá seria igualmente degradante? Muitos dos serviços/mercadorias que são comercializados hoje já foram considerados como atividade inerentes a um determinado papel social. No entanto, a lógica do capitalismo é justamente a de prover oferta de serviços/mercadorias para os quais existe demanda.

Sandel também apresenta algumas das principais linhas filosóficas que discutem quais devem ser os princípios norteadores da nossa tomada de decisão, capazes de promover a justiça. Ele começa apresentando a filosofia utilitarista que, tal como proposta por Jeremy Bentham, parte da premissa de que nossas vidas são regidas pela busca pela maximização da felicidade/prazer e minimização da dor/sofrimento. Segundo os utilitaristas, nós devemos a maximização da felicidade para o maior número de pessoas, ainda que essa felicidade seja obtida pela dor/sofrimento de algumas poucas pessoas.

O autor apresenta também a filosofia libertária, enquanto defensora de um Estado Mínimo, que atue apenas no indispensável: manutenção da paz, segurança jurídica e proteção da propriedade privada. Qualquer tipo de paternalismo estatal ou legislação sobre a moral ou os costumes não se sustentam.

Sandel sintetiza, no fim de seu livro, um conceito que ele explora ao longo de toda a sua obra: a ideia de que a justiça envolve “o cultivo da virtude e a preocupação com o bem-comum”. Um dos filósofos abordados ao longo da obra na construção dessa visão é Aristóteles, que entende que a justiça está ligada a dois conceitos fundamentais: finalidade pela qual as coisas são criadas (denominada télos) e a identificação das práticas que devem ser honradas/recompensadas. Além disso, Aristóteles entende a linguagem como elemento diferenciador dos seres humanos, pois seria ela o meio pelo qual discernimos e deliberamos sobre o bem. A decorrência dessa tese é a defesa do filósofo de uma pólis (ou comunidade) que promova a virtude, ou seja, a realização através das coisas certas. Há que se questionar quem seria o árbitro de tais “atitudes certas”.

Outros dois filósofos também são importantes na fundamentação de sua visão. Um deles é John Rawls, que defende a ideia de justiça equânime. Essa justiça só poderia ser obtida a partir de uma discussão de princípios realizada por pessoas cobertas pelo “véu da ignorância”, que oculta nosso credo, nossas preferências e condições materiais. Segundo Rawls, somente nesse contexto seríamos capazes de definir princípios corretos para governar nossas vidas. O outro filósofo que Sandel examina é Immanuel Kant, que entende o homem enquanto portador de uma dignidade intrínseca e de racionalidade, que nos permite ser livres. Para Kant, essa liberdade está em agir de acordo com suas próprias leis. No entanto, para que essas leis sejam válidas, elas não podem servir às nossas preferências ou às inclinações pessoais, mas serem orientadas pela ética do dever. Em sua análise da metafísica dos costumes, Kant defende que devemos agir como se nossa ação pudesse ser universalizada enquanto norma para todos. Caso uma ação falhe nesse teste, ela não deveria ser tomada.

Partindo de visões diferentes, Kant e Rawls tentam separar lei e política de controvérsias morais. Nesse ponto, Sandel discorda, afirmando que “uma política sem um comprometimento moral substancial resulta em uma vida cívica pobre”. Independente de concordar ou não com a tese, entendo que é impossível validá-la, pois seres humanos não conseguem abandonar suas convicções, de acordo com o fórum em que estão ou posição que ocupam (tal como propõe Rawls) e tampouco agir segundo princípios absolutos em todas as suas decisões (conforme propõe Kant).

Sandel, bebendo das fontes de Aristóteles e Rawls, defende que a busca pela “vida boa” deve sim fazer parte do debate público. A percepção do autor é que as pessoas confundiram o respeito às convicções morais e religiosas alheias, com ignorar essas visões de mundo. Sua proposta é que nós tenhamos uma vida cívica mais engajada, o que nos permitiria alcançar um respeito mútuo mais forte e não mais fraco. Segundo o autor, esse é um caminho muito mais promissor para uma sociedade mais justa.

Não é difícil compreender a visão de Sandel. Sua busca por uma sociedade mais justa é legítima; no entanto, a história nos mostra (e o autor cita isso em seu livro) que sociedades/governos que buscam declaradamente promover a virtude geralmente são fundamentalistas ou autoritários. No Brasil, a ditadura militar promovia a disciplina de educação moral e cívica nas escolas enquanto torturava agentes políticos opositores. Em outros países, podemos perceber o poder de teocracias, Estados em que o líder do poder Executivo é também o líder da Igreja e, portanto, guardião dos costumes e da orientação para a “boa vida”.  Em ambos os casos, todos aqueles que não se alinham às “virtudes”/ “boa vida” escolhidas pelo ditador acabam sendo perseguidos ou eliminados.

A reflexão proposta pelo autor em seu livro é muito oportuna e, em diversos momentos, nos tira de nossa zona de conforto. No entanto, é muito difícil embarcar em sua proposição para alcançarmos uma sociedade mais justa. Em que pese a busca pela “vida boa” seja um objetivo justo e recomendável, cabe a cada indivíduo definir esse conceito para si e persegui-lo de acordo com suas capacidades.

[1] No conceito comumente utilizado na política americana, que se assemelha ao conceito de “progressista” no Brasil.

*Marco Antonio Tavares Loureiro é associado II do Instituto Líderes do Amanhã. 

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