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“A Pátria Descoberta”: revisão do patriotismo

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Em seu livro clássico História do Liberalismo Brasileiro, o professor Antonio Paim (1927-2021) relaciona Gilberto de Mello Kujawski (n. 1929) como um dos autores brasileiros de destaque nas últimas décadas na produção de reflexões de interesse ao liberalismo nacional. A contribuição mais importante de Gilberto de Mello Kujawski, na opinião de Paim, foi proporcionada em seu opúsculo A Pátria Descoberta (1992), que nos dispusemos a adquirir e examinar, em sua edição pela Papirus Editora.

Conforme a oportuna síntese de Paim, o trabalho de Kujawski se dedica a distinguir os conceitos de patriotismo e nacionalismo – mais ou menos como o fizera também o autor católico Gustavo Corção (1896-1978) em seu Patriotismo e Nacionalismo (1960), autor este originalmente próximo à antiga União Democrática Nacional, mas lamentavelmente terminando seus dias como um antiliberal. Tanto Kujawski quanto Corção tratam o patriotismo como algo positivo e o nacionalismo como algo negativo. De acordo com Paim, A Pátria Descoberta é “rica de ensinamentos, sendo impossível resumi-los todos, cumprindo apenas chamar a atenção para a magnitude do confronto” entre esses dois conceitos.

De fato, a natureza do estilo dos argumentos empregados por Kujawski é extremamente multifacetada, algo lírica, versátil e impossível de compartimentalizar com maior amplitude – mesmo que o livro em si seja de dimensões reduzidas. Como o tema do patriotismo e da vinculação dos brasileiros com o Brasil, porém, sempre nos interessou diretamente em nossos trabalhos, ressalvamos do livro o que nos é possível neste espaço.

A principal influência de Kujawski é o filósofo liberal espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), cuja célebre ideia de que “eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim” é usada como ponto de apoio para justificar a valorização da noção de patriotismo, sem que ela implique forçosamente a aversão xenófoba, o estatismo tacanho e a negação das liberdades e projetos individuais. Kujawski dedica o livro, no entanto, ao escritor polímata brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), clássico de interpretação da sociedade brasileira a quem também recorre por diversas vezes em suas páginas.

O objetivo é declarado desde o início: combater a pregação do derrotismo crônico e da aversão à própria nacionalidade por parte dos brasileiros, sem que, ao mesmo tempo, se rendam loas ao nativismo ou ao nacionalismo, considerados por ele como “caricaturas indigentes do verdadeiro patriotismo”. Kujawski não considera o patriotismo um sentimento ou virtude, mas “um modo de ser”, a “instalação” do indivíduo em um “projeto de vida coletiva” que é a pátria, mediante o qual “nos arraigamos vitalmente à nossa circunstância e ao nosso projeto social concreto. Sem patriotismo, a vida humana perde suas raízes e perde-se a si mesma. A realização da minha vida pessoal guarda consonância com o destino da minha pátria”.

Ele enxerga verdadeiro patriotismo mesmo em autores que criticam ardorosamente seus próprios países, inclusive alvejando o próprio patriotismo nominalmente, desde que esse “arraigar vital” esteja evidente em suas obras. “O indivíduo é tanto mais produtivo espiritualmente quanto mais imerso na vida da comunidade”, sustenta. “A base, o húmus do patriotismo é essa imersão profunda na comunidade. Na vida cotidiana e na vida heroica da comunidade. Quando sincero, o patriotismo começa silenciosamente na ação de velar pelo cotidiano, esse cotidiano que pertence a todos nós, com o mesmo amor que se dedica ao cuidado do jardim”. A apreensão afetiva do que diuturnamente nos atravessa, nas imagens, cenas, afazeres, costumes de nosso torrão, seria a premissa da possibilidade do “gesto heroico pela pátria, quando preciso. Sem o aleitamento prolongado no seio da terra natal, não teríamos força nem inspiração para defendê-la. (…) A pequena pátria nos educa para a pátria grande”.

Quando enaltece essa experiência, essa condição, essa característica inerente aos indivíduos e que deve movê-los às mais sublimes realizações, percebe-se que Kujawski não está falando de um ardor desmedido por fardas, gritos de guerra, hinos ou símbolos, e sim de algo muito mais profundo e que tem a ver com o cultivo do dia a dia na própria vida privada. Sua tese se contrapõe simultaneamente ao que ele chama de nacionalismo, que seria uma negação radical, troglodita, intransigente e autoritária de tudo que é universal para exaltar apenas o que é local, e o que ele chama de Iluminismo – designação, na nossa opinião, pouco feliz -, que seria a exaltação plena das questões universais e o desprezo pela pertença local e pátria.

Desfilando, em seguida, por suas páginas, críticas aos graves problemas do Brasil de sua época – muitos deles, infelizmente, bastante atuais -, Kujawski pontua que “a vitalidade brasileira está patente na receptividade universal, no interesse por tudo o que se passa dentro e fora de nossas fronteiras e na sua abertura à modernização”. Sua crise, entretanto, deriva do fato de que o Brasil se abre à modernização, mas sem cristalizar a sociedade moderna, permanecendo atrelado aos arcaísmos que pretenderia abandonar, materializados sob a forma do patrimonialismo e da extrema dificuldade de abraçar a impessoalidade da lei, tal como diversos outros intérpretes da sociologia brasileira advogariam. Entrementes, ele considera que o Brasil, tendo sido um império, constituiu-se em torno de um ponto de referência com função cultural pedagógica, a Corte no Rio de Janeiro, o que se perdeu após a mudança da capital para Brasília. Disso adviria, em sua opinião, boa parte de nossa crise, mas ela não muda o fato de que, desde muito tempo, o Brasil é um país e orbita a necessidade de um projeto nacional único, apesar de sua pluralidade.

O que variaria, a seu ver, seriam “as diversas propostas mediante as quais interpretamos concretamente nosso projeto ou destino comum”. Àquela época, essas propostas seriam basicamente as seguintes: a do Brasil-potência, sustentada pelo Estado de Segurança Nacional, ligada aos personagens desenvolvimentistas do regime militar, “centrada no imperativo de transformar o país numa grande potência industrial e militar, com relativo desprezo pelo custo social desse empreendimento”, proposta “de interesse mais do Estado que da sociedade”; a populista, cultista do patrimonialismo, do clientelismo e do paternalismo, que se pretende apoiar na massa trabalhadora e na liderança personalista e caudilhesca; a progressista, pretendendo transformar o Brasil em uma nação igualitária, nacionalista e anticapitalista, vinculada ao que então se costumava chamar de países do Terceiro Mundo, como uma espécie de terceira via socializante ao império soviético e aos EUA; a liberal, “que pretende fazer do Brasil uma realidade estruturada não pelas oligarquias, não pelo Estado, mas pela própria sociedade civil, com base na livre iniciativa e na economia de mercado, sem nenhum assistencialismo, integrada no circuito da economia e da política ocidentais”; e a social democrata, que pretende concretizar uma “economia de mercado com controle social”. O discurso – de certo modo clichê – de Kujawski de que o binômio “esquerda e direita” é insuficiente e estimula a polarização infecunda se soma à sua tese de que nenhum dos projetos acima referidos poderá algum dia se impor plenamente aos demais, devendo sempre levar em consideração uns a existência dos outros.

Na sequência, o autor examina a história do patriotismo. Na Grécia Antiga, encontra seu protótipo no amor dos gregos à disputa e à competição em nome de suas cidades-estados. Em Roma, ao contrário, tudo girava em torno de seu direito público. Na Idade Média, Kujawski vê a evolução do patriotismo na autoidentificação dos cristãos europeus em comparação com o “outro” islâmico. Chegando à discussão dos Estados-nações, ele combate os argumentos dos que negam a existência concreta de entidades chamadas “nações”. Afirma que a nação é “uma comunidade real, fundada na identidade de vigências, usos, crenças, opinião pública e, sobretudo, do mesmo projeto de vida em comum”; que essa entidade é anterior à Revolução Francesa, começando a constituir-se, ainda que sob a forma de Estados dinásticos, no Renascimento – particularmente Espanha, Portugal, França, Inglaterra e Holanda -, cabendo à revolução apenas “integrar as nações no substrato da soberania popular, após a derrubada do Antigo Regime”. Em sua origem, esses Estados-nações se configuraram para lançar-se à aventura marítima, autocompreendendo-se como tais, portanto, em reação ao contato com o mundo exterior, derivando-se da “grande política internacional, universal”, possibilitada pelas Grandes Navegações. Seriam o efeito da incorporação longa e acidentada de diversas unidades menores, como os reinos, ducados e condados, unidos em um projeto comum. Os povos têm, na opinião do autor, caráter específico, embora “matizado, de forma ondulante e instável”, e nem sempre, ao contrário do que se diz, sendo meramente uma reprodução do estilo de vida de suas “classes dominantes”.

Kujawski nega que a nação seja definida exclusivamente por elementos do passado, como a língua, a origem das famílias, os costumes e as tradições, entendendo que “esse passado comum não existia quando as nações despertaram” como “um movimento rumo ao futuro, como um anelo coletivo, uma pretensão constitutiva. (…) Essa tensão rumo ao futuro distingue o patriotismo nacional moderno do patriotismo antigo. A cidade-estado celebrava a vibração solar do presente, do aqui e agora. A perenidade da cultura clássica deriva, em princípio, da sua magnífica intemporalidade. (…) Muito diferente é a condição temporal do homem fáustico e barroco que interpreta a nacionalidade moderna a partir do século XV. (…) O patriotismo antigo identificava-se com a celebração da cidade, e sua intenção era exaltar a presença ativa do homem na cidade, sua pertinência a ela, (…), ao passo que o patriotismo nacional moderno compenetra-se na duração do país, e sua intenção é dilatar essa duração para o futuro, recorrendo ao fundo incalculável de reservas de que se julga portador”.

Esse patriotismo é obstaculizado pelo nacionalismo, que atua contrariamente à pátria ao vedar seu acesso aos contributos exteriores e sua inserção harmoniosa na comunidade internacional. Não obstante, o autor admite que o termo “nacionalismo” pode ter uma acepção positiva, desde que encarado não como ideologia, mas como mera ideia: “A ideologia nacionalista que, aferrada ao espontâneo e ao castiço, encerra a pátria em si mesma, hostil a tudo o que chega além das fronteiras, é a traição ao patriotismo. A ideia nacionalista, entendida como potência de nacionalização do estrangeiro, de assimilação criadora do que recebe de fora, provocando a dilatação e o enriquecimento da jurisdição nacional, e inclusive o aprimoramento do castiço e espontâneo, representa o único nacionalismo fecundo, digno de ser interpretado como legítimo patriotismo”.

Tendo ressaltado a experiência do cotidiano da terra como berço do patriotismo, Kujawski se põe a fazer, lançando mão de vários autores hispânicos, um exame de alguns elementos que fazem parte desse caldo – sem, como ele cuida de ressaltar, esgotá-lo: a língua, a paisagem, a cultura, a tradição e a História. Defende, por fim, sinteticamente, duas teses: primeiro, a de que, embora o patriotismo nacional continue tendo valor, as integrações regionais e os organismos supranacionais hoje impõem sua mistura com outros patriotismos mais amplos, os patriotismos regionais; segundo, a de que, consequentemente, pelas semelhanças psicológicas e da forma de viver a passagem do tempo, pela fonte ibérica comum e mesmo a influência direta da Espanha sob o período da União Ibérica na época colonial, o Brasil deveria, nesse contexto, enfatizar, através de interações mais significativas, um patriotismo latino-americano, pois não seríamos tão diferentes de nossos vizinhos hispânicos como alguns entre nós e entre eles acreditam. Infelizmente, a integração da América Latina tem sido um recurso explorado pelas forças caudilhistas e populistas de esquerda da região – mais recentemente, pelo “socialismo do século XXI” do Foro de São Paulo. Não é o único projeto dessa natureza que conhecemos; Carlos Lacerda (1914-1977), por exemplo, defendia, ao contrário, uma integração supranacional, com ênfase nas semelhanças culturais e linguísticas, dos países lusófonos, o que incluiria as ex-colônias portuguesas na África. Não parece haver boas razões para crer que tenha havido grandes avanços em qualquer uma dessas direções desde que esses autores expressaram suas ideias.

Entendemos que o que Kujawski chama de “projeto do Brasil potência” se encontra apenas escassamente presente no Brasil atual, mas os demais projetos por ele mencionados continuam, de algum modo, disputando o espaço. A eles, porém, acrescentaríamos agora outros, notadamente o “progressismo identitário”, talvez mais bem caracterizado como um “anteprojeto de nação”, na medida em que dilui plenamente a importância de uma comunidade pátria e enfatiza a pertença a identidades grupais que, principalmente sob o pretexto de serem vítimas de opressão brutal ou discriminação histórica, estimulam o conflito incessante.

Da mesma forma, concordamos em que é preciso pensar o mundo e a vida em horizontes mais amplos do que a pátria ou a nação, mas os organismos supranacionais de que fala Kujawski também oferecem riscos de perverter suas próprias finalidades e estabelecer diretrizes de engenharia social que não se deveriam sobrepor às necessárias autonomias locais e nacionais. Equilíbrio: eis tudo. Nesse sentido, na mesma linha defendida por Roger Scruton (1944-2020), entendemos que o patriotismo é uma paixão necessária, ou ao menos oportuna, em um mundo dividido em Estados-nações, e não manifesta qualquer contradição essencial com o liberalismo. Pensamos que os liberais mais operosos e produtivos em sua luta serão, simultaneamente, patriotas.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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