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“História da liberdade religiosa”: o ponto de partida

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O liberalismo é a tradição política da modernidade por excelência e, comumente, ao traçar seu histórico de desenvolvimento, compreende-se que enfatizemos essa dimensão. Contudo, as ideias que, no fluxo de elaboração do pensamento ocidental, desaguaram na liberdade individual preconizada pelos liberais não se desenvolveram apenas no campo da filosofia política – sequer talvez seja aí que se possa começar a reconhecê-las.

O livro História da liberdade religiosa – Da Reforma ao Iluminismo, lançamento recente do professor de Filosofia e estimado amigo e pensador Humberto Schubert Coelho, preenche uma lacuna ao abordar minuciosamente o florescimento da ideia de liberdade a partir da necessidade de coexistência de pontos de vista contrários no campo da religião. De fato, de muitas maneiras, o problema político moderno tem por ponto de partida inescapável a necessidade de garantir essa coexistência em um cenário em que a diversidade religiosa se impôs no Ocidente, sobretudo após as cisões entre o Catolicismo e o Protestantismo.

O entrelaçamento entre a filosofia e a fé, para Humberto Schubert, foi palco nuclear das reflexões que ensejaram essa noção de liberdade e a própria necessidade de firmá-la. Seu propósito declarado com este livro, que recomendamos a todos os liberais interessados em ir mais fundo na meditação sobre tão relevante problema, é evidenciar as conexões entre a Reforma Protestante e o Iluminismo, bem como seus respectivos articuladores e pensadores, “e o debate fundamental sobre a natureza (metafísica) e sobre o lugar (ético e civil) da religião na vida dos indivíduos”.

O livro é resultado do estágio pós-doutoral de Humberto como pesquisador convidado da Faculdade de Teologia e Religião da Universidade de Oxford. O autor, simultaneamente ao enfoque no tensionamento das confissões religiosas no Ocidente e em como elas, no seio plural da Cristandade, desenvolveram construções teóricas para justificar a tolerância mútua, termina por oferecer uma abrangente e didática história da própria espiritualidade cristã ocidental em si, em sua interface com a atividade filosófica.

Sua metodologia como historiador da Filosofia e da Teologia evita os excessos de condenar a religião como a fonte dos conflitos e ódios entre as pessoas, como se outros interesses não a empregassem corriqueiramente como pretexto para suscitar tais beligerâncias, e de hipertrofiar a política como a única dimensão relevante dos “processos transformadores da história da cultura e das ideias”. Ele admite que, antes que “as pessoas e instituições reconhecessem e consolidassem a noção de que o Estado deveria defender as pessoas da imposição religiosa ao invés de a impor” – o que está na gênese do liberalismo, muito antes de serem discutidas privatizações ou reformas administrativas -, “numerosas gerações de pessoas pagaram altíssimos preços por sustentarem ideias proibidas ou malquistas pelo clero e pelos governantes”.

Contudo, o que a história que apresenta com maestria consegue demonstrar é que as investidas contra o autoritarismo que represava a liberdade religiosa não tiveram fonte única, advindo tanto de adversários da religião cristã e adeptos de dissidências ou heterodoxias quanto de membros ortodoxos das igrejas católicas ou protestantes que perceberam o caráter imperativo de algum gênero de tolerância, deduzindo valores de liberdade das próprias interpretações que empreendiam acerca do pensamento cristão. “Não se deve concluir”, diz Humberto Schubert, “que a história da liberdade religiosa tenha tido como vilã a instituição religiosa. (…) Talvez seja possível interpretar a história evolutiva da liberdade religiosa como a história da complexa relação entre o espírito greco-romano e o espírito judaico-cristão; uma história que intensifica a harmonia entre essas consideravelmente distintas raízes através do estímulo provocado por seu próprio conflito; que revela a unidade na diferença e ajuda a explicar o aprofundamento de ambas”.

A epopeia desse relacionamento, tal como contada pelo autor, a despeito de seu enfoque no período contemporâneo e posterior à Reforma Protestante, começa bem antes. O capítulo inicial, “Raízes medievais e renascentistas da luta pela liberdade religiosa”, explora esse diálogo incessante entre “criticismo (Platão), realismo científico (Aristóteles) e fideísmo (a Bíblia)”, alternando-se uns elementos em relação aos outros na prevalência em cada contexto ou época, como uma lente simplificadora que permite entender os rumos tomados pela religião e a liberdade até o período moderno. Desde os primeiros séculos do Cristianismo, o conflito da diversidade religiosa já existia, com a rivalidade entre o Catolicismo romano e as chamadas heresias cristãs, tais como o Pelagianismo e o Arianismo.

Humberto observa que a comunidade cristã primitiva não defendia ações violentas para a defesa da ortodoxia da fé, o que deve ter mudado “com o aprofundamento das relações entre a Igreja e o poder terreno, e a necessidade de se justificar certas demandas temporais, como guerras, espionagem, código penal e intrigas palacianas, no seio de nações agora oficialmente cristãs”.  A ortodoxia católica triunfou e garantiu uma sólida unidade doutrinal por boa parte da Europa através de um estreitamento da liberdade interpretativa; porém, conforme o autor sustenta, naqueles primeiros tempos do Cristianismo organizado, “a liberdade de investigação e de pensamento em geral, tantas vezes exageradamente apresentada como inexistente, sofreu restrições menores para além das inevitáveis mudanças de preferência cultural dos próprios estudiosos”.

No mesmo capítulo, o autor estuda Francisco de Assis (1181-1182) e Dante Alighieri (1265-1321) como “críticos gentis” da Igreja, formulando contestações morais à atuação do clero, sem cruzar a linha para a cisão ou a heresia. No século XV, com John Wycliffe (1328-1384), Jan Huss (1369-1415) e Joana D’Arc (1412-1431) – ainda que sobre esta última persista uma divergência interpretativa acerca da extensão de sua lealdade à fé -, o livro identifica o recrudescimento de críticas mais generalistas e duras contra a ortodoxia católica. O nascimento do humanismo renascentista merece destaque com uma exposição do pensamento de Nicolau de Cusa (1401-1464), que já à época identificava a futilidade do sectarismo religioso.

O segundo capítulo, “Nasce a Reforma”, começa a enfocar o período histórico de maior interesse para as preocupações do autor. Ao tratar das críticas de Erasmo de Roterdã (1466-1536), identifica nesse personagem holandês um crítico intermediário entre o Renascimento e a Reforma Protestante, estimulando o estudo crítico e analítico da Bíblia e a ideia do livre-arbítrio. Martinho Lutero (1483-1546) demarca a rebelião que dá origem ao Protestantismo, estabelecendo a atitude moderna, “inconcebível para os medievais”, de justificar teologicamente ataques à Igreja, inaugurando uma “liberdade para ser outro tipo de cristão. A diversidade resultante do individualismo protestante é personificada a seguir através de Andreas Karlstadt (1486-1541), Kaspar Schwenckfeld (1489-1561), Huldrych Zwinglio (1484-1531), Sebastian Franck (1499-1542) e os anabatistas. Depois, Humberto apresenta o esforço de trazer coerência às controvérsias protestantes empreendido pela Confissão de Agusburg, liderada pelo luterano Philipp Melanchthon (1497-1560); a reforma inglesa atrasada que desemboca no Anglicanismo, capitaneada pelo rei Henrique VIII (1491-1547) e o arcebispo Thomas Cranmer (1489-1556); a rivalidade entre João Calvino (1509-1564) e Miguel de Servet (1511-1553), condenado à morte por sua crítica ao dogma da Santíssima Trindade na área de influência calvinista; e temas como a atuação dos jesuítas na Contrarreforma, o desenvolvimento da heresia sociniana na Transilvânia – “primeira organização política da história humana a declarar que todos tinham o direito de adorar a Deus ao seu próprio modo” -, a tensão entre católicos e huguenotes na França e a execução de Giordano Bruno (1548-1600) por suas heresias de inspirações platônicas.

O capítulo “O mundo moderno: religião e ciência reconfiguram sua relação” trabalha as modificações filosóficas no campo do entendimento da ciência, sem incorrer na deformação de que a revolução científica entre os séculos XVI e XVII se teria dado sob o impulso de materialistas que odiavam a religião, em uma luta binária que absolutamente não correspondia à verdade. A maioria entre eles, ao contrário, figurava entre religiosos, ainda que heterodoxos. Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), Galileu Galilei (1564-1642), o místico Jakob Böhme (1575-1624), Jan Comenius (1592-1670), Blaise Pascal (1623-1662) e Robert Boyle (1627-1691) são alguns dos protagonistas desta seção. Em Baruch de Espinosa (1632-1677) aparece intrepidamente a sustentação de um sistema filosófico que costuma ser associado ao panteísmo e a apologia da liberdade religiosa, desde que as crenças não ameaçassem a ordem social.

Seguindo a linha de contestar as narrativas simplificadoramente secularizantes, Humberto dedica seu quarto capítulo a ilustrar um “Despertar espiritualista na aurora do Iluminismo”, indo de nomes como George Fox (1624-1691) e John Milton (1608-1674), passando por François Fénelon (1651-1715) e Pierre Bayle (1647-1706) na França do século XVIII, os próprios John Locke (1632-1704) e Isaac Newton (1643-1727) no mundo britânico, Wilhelm Leibniz (1646-1716) na Alemanha, até os primeiros passos do pensamento religioso – e iluminista – nas Américas. No penúltimo capítulo, “A geração de Voltaire”, começando por ressaltar a abordagem do filósofo alemão Christian Wolff (1679-1754) acerca da filosofia de Leibniz como sendo “a maior iniciativa filosófica em favor da religião cristã no século XVIII” e passando por Joseph Butler (16992-1752), o curioso sistema de George Berkeley (1685-1753), os moralistas britânicos e os iluministas escoceses, Humberto enfim aborda os críticos mais ácidos da religiosidade tradicional que emergem entre os chamados philosophes franceses, personificados na figura de Voltaire (1694-1778) – ícone de uma nova forma de pensador, engajado, politizado, debochado, que pretendia investir contra todas as ideias e modos de ser das instituições estabelecidas. Passando, de volta ao Iluminismo escocês, pelo ceticismo de David Hume (1711-1776), o autor conclui apresentando o metodismo de John Wesley (1703-1791) e sua religiosidade socialmente ativa.

O último capítulo, “A Era das Luzes”, se aprofunda um pouco mais no Iluminismo propriamente dito. Através do enciclopedismo de Denis Diderot (1713-1784), ilustra a geração de pensadores ateus e materialistas do Iluminismo de inspiração francesa. Também um contestador do Cristianismo, o hamburguês Hermann Reimarus (1694-1768) é objeto de destaque nesse capítulo. Por outro lado, o autor demonstra que autores como Johan Hamann (1730-1788) e Moses Mendelssohn (1729-1786), ou mesmo o místico e cientista sueco Emmanuel Swedenborg (1688/69-1772), o americano Benjamin Franklin (1706-1790) e os adeptos de uma nova onda do pensamento leibniziano organizado por Wolff, atestam a elaboração rica e influente de outras propostas iluministas que, ainda que pudessem expor entendimentos heterodoxos, não demonizavam a religião e a espiritualidade.

Depois de estudar a teologia racional de Gotthold Lessing (1729-1781), ele conclui seu livro analisando os aspectos espiritualistas do pensamento do polêmico Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cuja obra dúbia e multifacetada favorece uma exploração seletiva e limitada de seu pensamento. Quanto a este último autor, louvamos o esforço de Humberto em procurar combater reducionismos grosseiros e apresentar a faceta mais religiosa do pensamento rousseauniano, inclusive em contraste com muitos entre os pensadores seus contemporâneos, mas complementaríamos que, por outro lado, seria útil recordar as críticas que Rousseau faz ao Cristianismo em Do Contrato Social quando propõe seu conceito de religião civil, já que se trata de algo que adiciona um contraste de certo modo paradoxal à ênfase adotada.

Esperamos que esta enumeração tenha sido o bastante para explicitar a densidade do conteúdo oferecido por Humberto ao interessado em sua obra. Este História da liberdade religiosa permite concluir, nas palavras do autor, que, “longe de caminhar invariavelmente para a secularização e a desintegração da religião institucional, a Modernidade caracterizou-se pelo dinamismo e grande complexidade de movimento de fluxo e refluxo, sístole e diástole da consciência religiosa”, e que, embora “o progressivo aumento da consciência e da demanda por liberdade” desponte “como uma das características principais na história da religião moderna”, isso não deve ser confundido com “secularização em um sentido antirreligioso do termo”, dada, principalmente, a contribuição de diversos religiosos para esse processo. Os subsídios que esse conhecimento fornece para a compreensão mais profunda da razão de ser do liberalismo, de seu surgimento e de suas tensões internas devem ser suficientes para que o leitor deduza o imenso proveito que poderá tirar deste trabalho muito bem-vindo do professor Humberto.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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