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Folia e liberalismo: as polêmicas do Carnaval

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Afastei-me durante o período momesco das principais polêmicas e discussões do mundo da política. Ninguém é de ferro e eu estava muito ocupado desfilando em minha escola de samba do coração e acompanhando o simpático ambiente familiar das festas de rua do bairro – ambiente que, acreditem ou não, ainda sobrevive em alguns locais, apesar das cenas dantescas e degradantes de muitos dos grandes blocos.

Durante esse tempo de ausência, o próprio Carnaval suscitou algumas polêmicas, não se permitindo escapar ileso ao ciclo de grande politização de todas as coisas que o Brasil vive pelo menos desde 2013. Resolvi, na posição, suspeita ou insuspeita, de folião e, ao mesmo tempo, defensor de atitudes sociais e políticas liberais e conservadoras, comentar algumas dessas polêmicas, que na verdade são fatos novos que trazem à tona velhas questões.

Algumas escolas de samba no Rio de Janeiro, principalmente a campeã Mangueira e a oitava colocada Paraíso do Tuiuti, desenvolveram enredos com temática de viés escancaradamente esquerdista – a primeira “desconstruindo” figuras históricas de forma desrespeitosa e injusta, com direito a Princesa Isabel manchada de sangue, e exaltando a vereadora psolista assassinada Marielle Franco (sendo que seu presidente é investigado por envolvimento com criminalidade e milícias) e a segunda atacando diretamente a direita e os “coxinhas” mais uma vez. Pouco sei a respeito e não acompanho o campeonato de escolas de samba de São Paulo, mas disseminou-se a reclamação de alguns setores religiosos contra a escola de samba Gaviões da Fiel pela comissão de frente encenando um duelo entre as forças de Satanás e de Cristo em que supostamente o mal triunfaria.

Com relação ao caso da Gaviões da Fiel, até onde pude apurar, a informação está equivocada, porque a encenação, representando as visões de Santo Antão, mostra o bem vencendo o mal quando a performance termina. Entretanto, posso entender que a crueza da cena seja chocante e vista como afronta e aviltamento de símbolo religioso por parte dos fiéis. No caso das escolas cariocas, sou totalmente contrário à linha de enredos políticos que vêm procurando investir na “lacração” e na desconstrução de uma “história oficial” baseando-se em perspectivas ideológicas esclerosadas e mal-intencionadas. Entretanto, assisti, como sempre, a todos os desfiles do Rio de Janeiro e acredito que, do ponto de vista técnico, a vitória da Mangueira não é injusta, porque cometeu muito poucas falhas em sua apresentação e tinha cacife em seu samba e sua plástica. O esquerdismo pode ter ajudado em certo grau a favorecê-la aos olhos de alguns jurados, mas, por outro lado, a linha ideológica do enredo não é penalizada no regulamento, então em tese uma escola que quisesse exaltar o Lula não poderia perder pontos apenas por isso, por mais que desejássemos.

Ao mesmo tempo, o presidente Jair Bolsonaro, que foi xingado por manifestantes esquerdistas travestidos de foliões e artistas de rua em diversos blocos, divulgou um vídeo com cenas obscenas ocorridas em um bloco de Carnaval, advertindo que esse é o tipo de coisa em que se vão transformando os cenários de folia todo ano no período. Como sempre, houve todos os tipos de reações. Apareceram os autoritários santarrões que, somando as cenas lamentáveis dos blocos e o esquerdismo de foliões e algumas escolas de samba, pregaram o fim imediato do Carnaval. Outros apontaram as cenas expostas por Bolsonaro como desprezíveis exceções e passaram a defender o Carnaval como o guardião inquestionável da brasilidade e a rotular todos que ousam criticar qualquer aspecto que lhe diga respeito como agentes do mal sobre a Terra.

Não creio que a forma adotada pelo presidente da República para tecer sua crítica – que, aliás, deve concentrar suas forças na aprovação da Reforma da Previdência neste momento – foi a mais adequada, sobretudo às redes sociais de alguém em sua posição. No entanto, é inegável que existem atentados ao pudor e desvarios de toda sorte, bem como devastações do patrimônio público e alastramento de imundícies, por parte de muitos foliões mal-educados durante o Carnaval.

Significaria isso, como vi alguns proporem, que o governo ou as autoridades deveriam trabalhar pelo desestímulo ou a extinção do Carnaval? Cabe a um governo democrático a abolição de uma festa popular, tradição de séculos, que faz parte da identidade e da memória cultural, pelo menos em algumas regiões do país? Cabe a um governo democrático destruir um evento tradicional, representado nas principais análises sociológicas e antropológicas sobre o Brasil, porque a festa também pode ser mal vivida por irresponsáveis e vândalos? Um evento que, sim, movimenta bastante a economia e favorece diversos setores?

Por outro lado, deve um religioso que, pessoalmente, é contra o Carnaval, ser obrigado a custear os desfiles e apresentações e fingir que não vê aquilo que o incomoda, simplesmente porque tais apresentações são tradicionais e de peso e impacto, tanto na esfera cultural quanto na econômica? Não terá aquele que não gosta do Carnaval, que o considera desperdício, “coisa do demônio” ou o que for, o direito de não financiá-lo com seus impostos?

A melhor resposta para essas perguntas está no liberalismo. Em primeiro lugar: não, você não tem o direito de acabar com o Carnaval, nenhum governo foi eleito para isso – muitos que votaram em Bolsonaro estavam brincando nas ruas ou desfilando na Sapucaí também, fiquem sabendo disso – e qualquer tentativa de implementar uma tal agenda por desagrado religioso será puro autoritarismo. Pense você o que quiser, o Brasil é um Estado laico e o Carnaval é uma tradição popular que faz parte da nossa cultura tanto quanto qualquer outra. É uma festa popular, como há festas populares em basicamente todos os países do mundo. Não temos exclusividade nisso. Pense em alguém querer acabar com a festa do Dia de São Patrício na Irlanda, com os grandes festivais orientais como o Ano Novo Chinês, com o Dia dos Mortos no México…

Mesmo assim, importa reconhecer que, independentemente de como a festa é financiada, atentados ao pudor nas ruas e outros crimes, previstos na legislação nacional, praticados durante as festividades, deveriam ser exemplarmente reprimidos. Bolsonaro tem razão em considerar graves as cenas que existem mesmo aos montes em blocos e a falta de respeito ao espaço público – entrementes, essas pessoas que assim agem não respeitam esse espaço em período nenhum, e não é porque uma pessoa pula Carnaval que ela será automaticamente porca e incivilizada.

O grande cerne da questão, entretanto, é que se justificam ou se compreendem as reclamações enquanto as pessoas que não gostam precisarem pagar pela festa contra a sua vontade. Parto do princípio de que, em tese, o que pode não ser feito pelo Estado, é melhor que não o seja. Com relação aos blocos, acredito que seria perfeitamente possível, caso se organizassem, manterem-se inteiramente com patrocínios. Quanto às escolas de samba, igualmente; principalmente no Rio de Janeiro, elas têm apelo, têm tradição e força, têm público e fazem um espetáculo que atrai olhares de toda parte. Se soubessem mantê-lo com verba inteiramente privada, com a prefeitura cuidando apenas da logística do evento, teriam muito mais independência e não precisariam ouvir queixas de outros setores da sociedade.

Infelizmente, muitos sambistas são educados, como certa parcela dos brasileiros, em uma mentalidade varguista, segundo a qual a cultura não pode existir fora do Estado e ele precisa estar por trás a financiar tudo. Os dirigentes do samba, que em algumas escolas se perpetuam em dinastias do jogo do bicho ou lideranças políticas ligadas à criminalidade e às milícias, se acomodam nesse modelo e exploram esse discurso a seu favor, para manter seus feudos e se beneficiar da falta de transparência. Uma festa que poderia ser a expressão de um povo e um saudável entretenimento acaba manchada. As escolas de samba, é verdade, são apoiadas por subvenções pelo menos desde 1935; da mesma forma, os sindicatos eram apoiados pelo imposto sindical desde a Era Vargas. Não é porque sempre funcionou de uma forma, que precisa ser sempre assim.

Por que não levar o liberalismo ao samba? O dinheiro é dinheiro; faz diferença para o sambista honesto se ele é de uma empresa privada? O espetáculo ficará mais feio? Não é preciso inserir marcas de patrocinadores em alegorias ou fantasias. Há inúmeras outras formas de propagandear apoios e fazer o produto rentável. Basta criatividade e acreditar naquilo que se faz. Somente assim todos ganhariam – menos, é claro, quem tem interesses obscuros em que tudo permaneça como está.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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