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Solidariedade na calamidade

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A catástrofe que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é seguramente a maior de toda a história brasileira. Impressiona pela extensão e devastação apocalípticas, e seus prejuízos só poderão ser satisfatoriamente dimensionados um bom tempo depois que as águas baixarem e voltarem ao nível normal. O maior desses custos, sem dúvida, é o das vidas perdidas, e o grande desafio, já com mais de duas semanas decorridas do dilúvio, continua sendo o de encontrar sobreviventes. De acordo com voluntários que vêm se empenhando corajosamente nas buscas, a quantidade de vidas humanas perdidas pode chegar a milhares, uma vez que provavelmente ainda há casas com famílias inteiras mortas, bairros e regiões com corpos boiando, muitas pessoas ilhadas e sem alimentação, e as possibilidades de resgate são limitadas pela escassez de meios.

Depois, virão os gigantescos prejuízos materiais, até o momento imensuráveis. Casas, galpões, celeiros, lavouras, empresas e pastos destruídos, animais mortos, tratores, eletrodomésticos, máquinas de todos os tipos, estoques, pontes e estradas — tudo destruído. É como se a economia tivesse sofrido um poderoso bombardeio. É plausível supor que os cálculos feitos até agora dos recursos necessários para a reconstrução estejam subestimados. Há alguns dias, o governo gaúcho os estimou em R$ 19 bilhões, alguns economistas têm falado em R$ 100 bilhões, outros chegam a sugerir R$ 300 bilhões, porém tudo leva a crer que podem ser bem maiores do que esses valores, porque, simplesmente, não é possível ainda fazer estimativas seguras. Dos 497 municípios gaúchos, 401 foram diretamente afetados, ou seja, quatro quintos do Rio Grande do Sul ficaram sob as águas, e ainda há alagamentos. Então, o que temos pela frente é a reparação de praticamente todo um Estado — e que representa o quinto PIB do Brasil.

Uma das características das grandes calamidades é que elas, ao mesmo tempo que costumam lançar muitas máscaras por terra, separando o joio do trigo à custa de muita desolação e tristeza, parecem também evidenciar o velho dito de que há males que vêm para o bem. E o bem, nesse caso, atende pelo nome de solidariedade e pela revelação de muitos ensinamentos para o futuro.

Solidariedade

Sociedades livres e virtuosas são regidas por quatro princípios basilares: o respeito à dignidade da pessoa humana, o bem comum, a solidariedade e a subsidiariedade, todos eles imutáveis no tempo, universais e interconectados, cada um requerendo a presença dos outros três. Possuem um profundo significado moral, por nos remeterem aos valores e instituições ordenadores da vida em sociedade. A forte interdependência entre os agentes econômicos das economias modernas embute várias formas de solidariedade e precisa transformar-se em relações no plano da ética social, por parte dos indivíduos, do Estado e dos chamados agentes intermediários, que atendam às exigências morais que devem abraçar as relações humanas.

A solidariedade é uma virtude moral, e não um mero sentimento de compaixão pelos necessitados; é uma determinação firme e perseverante de empenho efetivo pelo bem comum; e eleva-se ao grau de virtude social ao se colocar na dimensão da justiça, quando essa é dirigida essencialmente para o bem comum. Como qualquer virtude, a solidariedade deve ser interior, ou seja, voluntária, espontânea, autêntica. Tirar de João para entregar a Pedro não é solidariedade, é pura extorsão; e aproveitar-se de desastres para se promover é simples vaidade ou, no caso de políticos, demagogia.

O lado positivo dessa calamidade — se é que nesse contexto se pode encontrar algo positivo — é que o povo brasileiro e, especialmente, o gaúcho, por razões óbvias, estão dando um verdadeiro espetáculo de solidariedade. Peço licença ao meu amigo Percival Puggina — um ítalo-rio-grandense dos bons — para reproduzir um trecho de seu artigo “O Rio Grande em sua hora mais amarga”, que publicou em 11 deste mês em seu site www.puggina.org:

“A reação da sociedade gaúcha está registrando uma nova epopeia para a história desse povo. E o faz em poucas palavras, mas em tantas imagens quantas a tecnologia hoje permite. Acionados pelo nobre impulso interior da solidariedade se moveram e se comoveram. Tudo aconteceu tão de repente quanto subiam as águas. Foi como se todos dissessem — São meus irmãos, é a nossa gente, sitiada e levada pelas águas. Agora é conosco, pessoal!. Quase se ouvia o zumbido nas redes sociais febricitantes nos grupos de WhatsApp, e de toda parte já chegavam os botes à água, os abrigos abriam. Com o que podiam trazer, vinham médicos, enfermeiros, maqueiros, viaturas, motoristas, jipeiros e os preciosos trilheiros. Água potável, lanches, lâmpadas, lanternas! Utilidades chegavam e continuam a chegar, demandando verdadeira multidão de “estivadores” para a faina diuturna de carregar e descarregar pacotes de doações.”

E prossegue, em justo tom emocionado:

“Ninguém! Ninguém ali invoca qualquer tipo de identidade racial, sexual, social lá o que seja tão determinante para os identitaristas. A mão estendida não tem cor nem conta bancária. Os helicópteros particulares e os óbolos das viúvas são expressão do mesmo amor ao próximo. A brava gente do Rio Grande há muito tempo não chorava tanto diante das imagens que nos chegam diariamente mostrando que essa solidariedade mobilizou o país inteiro. Ela viaja em abençoados caminhões, provenientes de empresas e municípios dos quais, muitas vezes, nunca ouvimos falar. E se mobilizaram por nós! Por nós, distantes! É tão flagrante serem essas cargas puro amor em fardos que os caminhões em comboio partem ao som de canções motivadas por corações felizes, cantadas com vozes embargadas.”

A importância da subsidiariedade

Outro ensinamento que a consternação provocada pela tragédia está ministrando com bastante clareza é que a solidariedade, para ser mais efetiva, requer certas regras básicas, que compõem o princípio da subsidiariedade, a pedra angular do federalismo, da limitação do poder do Estado e da liberdade individual. O referido princípio foi tema de meu artigo “Mais Brasília e menos Brasil”, publicado na edição 174 de Oeste, de 21 de julho de 2023. Baseia-se na ideia de que é moralmente perigoso retirar-se a autoridade e a responsabilidade inerentes à pessoa humana para entregá-la a um grupo, porque uma organização maior e mais complexa não pode fazer melhor do que pode ser feito pelas organizações ou indivíduos envolvidos diretamente com os problemas. Aquele que socorre um vizinho que teve a casa alagada na parte de baixo da mesma rua pode tomar decisões melhores do que um burocrata na capital do país ou outro na sede do governo estadual. Podemos, talvez, resumir esse importante princípio invertendo o título do artigo mencionado para “Menos Brasília, mais Brasil”, significando que o vizinho de rua sabe mais do que o vereador, que sabe mais do que o prefeito, que sabe mais do que o deputado, que sabe mais do que o governador, que, por sua vez, sabe mais do que o senador, o ministro e o presidente. Isso é elementar.

A subsidiariedade é um antídoto eficaz contra a concentração de poder. É desejável também quando se trata de socorro privado a desastres e calamidades e a explicação é de simples entendimento ao atentarmos para a imensa capacidade de coordenação que os mercados apresentam em tempos normais, como, por exemplo, o trabalho dos caminhoneiros que descarregam suas mercadorias em grandes supermercados antes que estraguem; as quantidades de cada produto — e de que fabricantes — os atacadistas e varejistas sabem que são as necessárias; e o número ideal de pessoas para realizar todas essas operações.

Quando o governo, com 80% do Rio Grande submerso na lama, dá a entender que o grande problema a ser enfrentado é o de supostas fake news, torna-se bem mais evidente que, se não fosse a mobilização surgida espontaneamente de milhares de heróis anônimos, muito mais pessoas poderiam ter morrido

É verdade que em tragédias e desastres naturais a situação costuma ser mais complicada. Em tais ocasiões, algumas rotas de produção e distribuição podem ser interrompidas por tempo indeterminado, e — o que é muito relevante — as preferências dos consumidores subitamente sofrem mudanças, levando muita gente a achar que as soluções devem estar a cargo do Estado. Entretanto, contrariamente ao senso comum, justamente nessas situações é que o dinamismo e a flexibilidade do livre mercado se tornam mais necessários. Não precisa haver alguém ou algum órgão “responsável” pelo rápido socorro, assim como não precisa haver alguém em uma cadeira de um ministério encarregado de definir a quantidade de sofás ou de bolas de bilhar que o país deve produzir. Em ambos os casos, o mercado é quem “sabe”.

Em situações emergenciais, enquanto os funcionários do governo encarregados dos esforços de socorro para áreas atingidas debatem-se inevitavelmente no emaranhado da floresta burocrática e na escuridão das decisões políticas, milhares de pessoas e agências já são capazes de oferecer a ajuda necessária. Esses funcionários certamente não têm planos contingenciais preestabelecidos e, até mesmo, que sejam úteis para situações específicas. Não podem saber onde, por exemplo, mil cobertores ou 2 mil pacotes de leite precisam ser entregues com maior urgência, e, por conseguinte, até que tenham ciência razoável da situação, muitas pessoas podem congelar e bebês podem sofrer inanição.

O que o Estado deveria fazer, então, nessas situações?

Não estou afirmando que o poder público não tem um papel importante a cumprir nessas situações. É evidente que tem. Mas também é inequívoco, primeiro, que o Estado é sempre pesado e lento; segundo, que o Estado brasileiro é muito inchado e, portanto, muito pesado e muito lento; terceiro, que os recursos provenientes dos impostos estão concentrados na União; quarto, que mais de 90% desses recursos federais estão comprometidos com alguma vinculação orçamentária. Ou seja, mesmo com boa vontade e senso patriótico, a margem de manobra da União é menor do que se imagina.

Mas quando o governo, com 80% do Rio Grande submerso na lama, dá a entender que o grande problema a ser enfrentado é o de supostas fake news que o estariam impedindo de ajudar as pessoas atingidas pela catástrofe; quando ameaça punir quem, exercendo um direito democrático elementar, discorde de sua atuação; quando, em 17 meses no poder, mostra ausência de um plano de governo; quando ministros mais parecem baratas tontas passeando no chão da cozinha e dando declarações desencontradas em um momento de comoção; e quando a imprensa tradicional, subserviente, dá azo a tudo isso, o resultado é que se torna bem mais evidente que, se não fossem a solidariedade e a mobilização surgidas espontaneamente de milhares de heróis anônimos, muito mais pessoas poderiam ter morrido, porque não teriam como ser salvas se só pudessem contar com a ajuda do Estado. Não se trata de criticar o governo federal ou o do Rio Grande do Sul apenas por criticar, pois, mesmo no caso hipotético de ser competente, o Estado, qualquer que seja o partido governante, não tem como responder melhor do que os agentes privados, com um mínimo de rapidez e eficiência, a uma hecatombe como a que devastou o Rio Grande. No curto prazo, com vidas em jogo, talvez o melhor mesmo que possa fazer seja, tão somente, não atrapalhar.

Portanto, a calamidade no Sul atesta mais uma vez que as ações humanas individuais e o livre mercado são superiores aos governos monopolistas também em situações de tragédias. Esforços privados de socorro, estimulados pela solidariedade e guiados pelo princípio da subsidiariedade, ajudam as vítimas, em um primeiro momento, muito mais do que decisões políticas, burocráticas e centralizadas.

Todo esse triste episódio reforça, então, entre outras, a necessidade de uma grande reforma em busca de um federalismo de fato — o que, nas condições políticas atuais, equivale a esperar pelo Dia de São Nunca. Definitivamente, não precisamos de “Plano Marshall” (ou qualquer outro nome com apelo midiático). Precisamos, simplesmente, de descentralização, seja administrativa, política e econômica, seja, principalmente, de recursos.

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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