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Mais Brasília menos Brasil

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Tinha razão o economista austríaco Friedrich A. Hayek (1899-1992) ao escrever que a tarefa mais importante dos liberais na sociedade é aperfeiçoar os mecanismos impeditivos da concentração de poder, o inimigo mais poderoso das liberdades individuais e ladrão da dignidade dos cidadãos. De fato, é incontestável que, quanto menos difuso é o poder, maiores são as restrições à liberdade de escolha de indivíduos e empresas, na economia, na política, na cultura e, de resto, na maioria das manifestações sociais.

É seguro afirmar que, no dia em que as sociedades conseguirem desenvolver instrumentos infalíveis e perfeitos para impedir a concentração de poder, não haverá mais ditaduras. Como esse tempo ainda não chegou e provavelmente nunca chegará, o que um liberal pode e deve fazer é empenhar-se para que os dispositivos institucionais existentes sejam razoavelmente capazes de represar a vontade insaciável de xeretar, controlar e dirigir as vidas alheias, um mal que sempre acometeu determinados grupos, pessoas, empresas e partidos. Inegavelmente, a teoria dos freios e contrapesos de Montesquieu, em que os Três Poderes se autocontrolam, foi um importante antídoto contra o absolutismo de monarcas, mas também é indiscutível que está longe da perfeição. É preciso algo mais.

Centralização de decisões e coletivismo são condições essenciais para qualquer regime totalitário, como atesta a história da civilização, com ênfase para os horrores do comunismo, do nazismo e do fascismo, nomes diferentes para ordens sociais com algumas características semelhantes, responsáveis pela supressão das liberdades e por muitos milhões de mortes. Presentemente, o Ocidente vem sendo vítima de tentativas de impor a servidão e a dependência dos cidadãos ao Estado, desfechadas pela união bastarda de dois inimigos da humanidade, a saber, o globalismo e o decrépito socialismo-comunismo submetido a cirurgias plásticas para esconder a caduquice.

Tal empreitada despótica exige a imposição de uma estrutura que permita a um Estado intumescido e empapuçado de impostos fazer de todos — gregos e troianos, cidadãos, famílias e empresas — seus dependentes, submetendo, mesmo que indiretamente, as atividades econômicas e as nuances sociais ao arbítrio dos donos do poder.

Uma sociedade de cidadãos livres deve necessariamente respeitar o princípio da subsidiariedade, simples e límpido: sempre que surgem problemas entre pessoas, empresas ou grupos, as instâncias mais adequadas para fornecer a assistência necessária são as pessoas, empresas ou grupos mais próximos dos que estão com os problemas. Isso significa que nada que possa ser feito por uma organização menor e mais simples deve ser feito por uma organização maior e mais complexa, a não ser em casos excepcionais, como tragédias e guerras. Afinal, se a pia da sua cozinha entupir, não é mais eficiente você mesmo chamar um bombeiro hidráulico do que pedir ao síndico do condomínio que telefone para um órgão da prefeitura e solicite a um burocrata (que provavelmente nunca lavou louça na vida) que resolva o problema?

A subsidiariedade é um fundamento tanto do governo limitado quanto da liberdade individual e repousa em três colunas. A primeira, de natureza moral, é a própria dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus: quando se remove a autoridade ou a responsabilidade de um indivíduo, ele é tratado de um jeito que não reconhece suas habilidades e, portanto, é agredido em sua dignidade, ou seja, é considerado um imbecil, um mané perdedor, que só merece alguma atenção dos iluminados porque, afinal, é um eleitor de quem episodicamente necessitam.

A segunda é a limitação do conhecimento humano. Negar esse princípio, atribuindo a solução dos problemas sociais ao Estado ou a instituições mediadoras muito acima dos indivíduos, é acreditar em uma miragem, uma ilusão sinóptica, de aceitar implicitamente que existe um “olho central” que pode ver tudo e todos, na forma de uma autoridade única, capaz de detectar todos os problemas, mudanças e necessidades e regular os setores da sociedade de maneira a resolver esses problemas. Ora, a centralização é sempre ineficiente, não só porque tal olho não existe, mas porque, simplesmente, não pode existir, pelo fato de que ninguém, por mais sábio, bem-intencionado e sensível às necessidades humanas que possa ser, pode ver as necessidades profundas da alma humana. Voltando a Hayek, isso significa que a pretensão de conhecimento e o racionalismo utópico característicos dos engenheiros sociais bloqueiam e impedem a ordem necessária que surgiria natural e espontaneamente. A natureza não dá saltos, mostrou Leibniz.

A terceira característica é que a subsidiariedade estimula a verdadeira solidariedade com os pobres, um tema importante e explorado pelos tiranos como bandeira, porém sempre maliciosamente, com os olhos do populismo. Pobres devem ser encarados além de suas circunstâncias financeiras, pois são pessoas dotadas de dignidade, e os programas governamentais não conseguem ir além das necessidades materiais, já que o volume de casos, a floresta intrincada da burocracia, a limitação de conhecimento dos burocratas sobre as características objetivas e subjetivas de cada pobre e a distância entre ambos impossibilitam esses programas de atenderem integralmente a pessoa humana. A ajuda, portanto, deve ser prestada por instituições mediadoras, até porque a “caridade” dos governos, a rigor, não é caridade. Por exemplo, taxar a riqueza para combater a pobreza não é uma ação caritativa, mas pura extorsão, que, além de não resolver o problema, o amplifica, porque afugenta ou extermina os “ricos” e aumenta o número de pobres. É só olhar para as experiências socialistas, sem exceção.

A pobreza tem múltiplas formas e faces e muitas são bem mais complexas do que a simples falta de recursos materiais. Portanto, é óbvio que os indivíduos mais próximos da pessoa necessitada desfrutam de maior conhecimento para lidar com cada situação, além de melhor percepção de outras necessidades que possam eventualmente existir. Ambos podem ganhar com esse encontro. A erradicação da miséria e a redução da pobreza impostas pela verdadeira solidariedade, então, não devem ser buscadas por vias unidirecionais. A solidariedade não mora em gabinetes, mas em corações.

Não há fórmulas prontas para a aplicação da subsidiariedade, pois a sua eficácia depende de cada situação e de cada cultura, o que requer prudência para determinar em cada caso qual agente mediador é o melhor para solucionar o problema. Porém, há um princípio orientador geral, que é o da proximidade, o de que, quanto mais próximo, melhor, por oferecer entendimento e diagnóstico mais precisos, além de ser um meio para o surgimento de uma interação que favoreça benefícios mútuos.

A subsidiariedade, sem dúvida, é um dos elementos presentes no federalismo, uma forma de organização do Estado em que o poder político-administrativo é dividido entre a União e os governos de unidades territoriais menores, a saber, Estados e municípios. O federalismo tem inúmeras vantagens comparativamente aos modelos centralizadores, entre as quais: a difusão de poder possibilita que os cidadãos tenham maior controle sobre aqueles que sustentam com os impostos, pela maior proximidade; estimula a responsabilidade individual e social; permite maior mobilidade dentro do território nacional, em resposta a decisões de política acertadas ou equivocadas; impede que governadores e prefeitos formem filas em Brasília para pedir recursos; e é indubitavelmente superior em termos de eficiência econômica. Infelizmente, o federalismo brasileiro, diferentemente do norte-americano, é de fachada, porque, ao fim e ao cabo, quem dita cartas é Brasília.

É inequívoco que o atual governo do Brasil, bem como os de vários outros países da América Latina, está pondo em curso sua velha intenção — que agora já nem esconde mais — de estabelecer um ordenamento coletivista caracterizado por forte centralização, controle social, político, econômico e cultural, visando ao comando de praticamente todas as facetas da vida de seus cidadãos, seja restringindo suas liberdades individuais, seja controlando suas atividades econômicas e sociais, seja pelo domínio da linguagem e seja, até mesmo, tolhendo pela via da censura a autonomia e a livre expressão de pensamento dos cidadãos.

Entre 2019 e 2022, o país experimentou com sucesso um processo de descentralização administrativa e econômica, de incentivos à liberdade para empreender, privatizações, desburocratização, controle da dívida interna do setor público e diminuição do peso do Estado, mediante uma série de reformas microeconômicas, no bojo de ajustes macroeconômicos expressivos nos regimes fiscal, monetário e cambial. Em suma, andamos para a frente. Porém, desde janeiro deste ano, estamos assistindo a uma rápida reversão desse processo, em que a descentralização vem perdendo cada vez mais espaço em prol da construção de uma estrutura econômica serôdia, extemporânea, batida, mofada, repleta de teias de aranhas e sabidamente destinada a fracassar. Nessa toada, é indiscutível que estamos caminhando para o centralismo, o que significa, em poucas palavras, além de menor autonomia individual, mais Brasília e menos Brasil, uma inversão manifesta, indigesta e funesta do jargão do governo anterior.

Pelo menos quatro fatos atestam essa tendência autoritária: (1) o chamado arcabouço fiscal, que, como salientamos em artigos anteriores, é uma verdadeira carta branca para a União aumentar gastos, arrecadar mais impostos e, sufocando-a, submeter a iniciativa privada; (2) a reforma tributária — aprovada recentemente na Câmara, por métodos inaceitáveis, a uma velocidade supersônica —, que, além de semear incertezas quanto à fixação de alíquotas futuras, a pretexto de simplificar a estrutura de tributos, é fortemente centralizadora e aumenta a carga sobre cidadãos, famílias e empresas; (3) as investidas seguidas contra a autonomia do Banco Central, com críticas ininterruptas aos “altos juros” praticados pelo Copom e a decisão, equivalente à de “colocar água no feijão”, de nomear como novo diretor de Política Monetária da instituição um economista “desenvolvimentista”, conhecido pela falta de intimidade com o verdadeiro significado da inflação e pelo aparente desconhecimento de um fenômeno identificado pelo menos desde a década de 1970 — a estagflação (inflação com desemprego); e (4) as tentativas de criação pelo Executivo de vários “conselhos” (sovietes) por ele controlados, formados por “representantes da sociedade civil”, para dar aparência democrática a decisões importantes, como as de investimentos, produção, distribuição, alocação de recursos, fixação de alíquotas e políticas de preços. Tais incursões do governo sobre a verdadeira cidadania — frise-se, vindas de um governo que se diz salvador da democracia, mas que trata ditadores com salamaleques, mesuras e rapapés — sem dúvida revelam a opção pela centralização e concentração de poder, que o mesmo Hayek chamou nos anos 1940 de caminho da servidão. Em linguagem mais direta, está em curso um movimento para nos empurrar sorrateiramente o totalitarismo goela abaixo. As coisas não estão nada boas para os brasileiros.

 

*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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