É tudo uma questão de onde a linha é traçada
Autor: Pedro Henrique Dias*
O grande economista e jornalista Henry Hazlitt certa vez afirmou que poucas áreas do conhecimento humano são tão permeadas por falácias quanto a ciência econômica. Algumas dessas falácias são tão intrínsecas aos nossos conhecimentos que raramente notamos que se tratam de conceitos falhos do ponto da lógica econômica. Um grande exemplo disso é a ideia quase dogmática de que o governo deve nos “proteger” das terríveis ameaças dos produtos estrangeiros sob o pretexto de incentivar a produção nacional desses mesmos produtos. Como a maioria das falácias econômicas, esse conceito não sobrevive a cinco minutos de análise lógica. Para analisar as falhas dessa doutrina, vamos nos imaginar numa economia simples e que pratique a troca direta.
Vamos supor que você tenha uma pequena horta especializada em produzir tomates. Você acorda cedo num sábado, pega o jornal, lê qualquer notícia sobre alguma medida do governo pra diminuir nossas liberdades e vai para a rua buscando trocar seus tomates pelas tortas do Seu Walter, um vizinho seu. Você anda uns dois quarteirões e chega à simpática casa do Seu Walter, que produz tortas deliciosas. Seu Walter aceita lhe vender uma unidade de torta em troca de três unidades de tomate. Você julga que o preço está excelente e aceita o acordo. Os dois saem felizes da troca, pois o Seu Walter valoriza mais os três tomates do que a sua própria torta e você valoriza mais a torta do que seus três tomates. Esse é um ponto chave no entendimento da questão. Uma troca só pode ser realizada se ambas as partes esperarem se beneficiar dela.
Como Seu Walter é especialista em fabricar tortas, ele pode concentrar todo o seu esforço em produzir a maior quantidade possível de tortas e trocá-las por outras coisas produzidas por outras pessoas. O mesmo raciocínio se aplica a você, que é um excelente produtor de tomates. Quanto mais tomates você conseguir produzir, mais trocas você consegue realizar pela produção de outras pessoas. A esse mecanismo de especialização e troca nós damos o nome de Divisão do Trabalho. A divisão do trabalho permite que utilizemos nossos talentos no que fazemos melhor e com isso aumentemos o padrão de vida de todos.
Você e Seu Walter possuem a mesma nacionalidade, produzem seus produtos no mesmo bairro e inclusive torcem pelo mesmo time. A situação atual é satisfatória para ambos os lados. Porém, em um determinado momento, um grupo de pessoas resolve traçar uma linha imaginária que divide o seu bairro em duas zonas diferentes. Sob uma justificativa qualquer, da noite para o dia, você e Seu Walter passaram a viver em áreas “diferentes”. Chamaram a sua área de Área Sul e a área do Seu Walter de Área Norte.
Inicialmente, você não vê muitos problemas com essa divisão imaginária. Afinal, você ainda poderia continuar trocando seus tomates pelas tortas do Seu Walter naqueles termos que vocês sempre fizeram e continuar indo aos jogos do seu time com ele. É apenas uma linha. No entanto, para sua surpresa, ao tentar ultrapassar a fronteira para realizar a troca, uma moça que fazia parte daquele grupo que traçou a linha imaginária entre as duas áreas do bairro lhe aborda:
– O que é isso que você está levando na sacola?
– São três tomates. Estou levando-os para trocar pelas tortas do meu amigo Walter. Elas são uma delícia, você deveria experimentar!
– Sinto lhe informar, mas isso não será possível. A partir de hoje, todos os produtos feitos do outro lado da linha não poderão entrar aqui. Quer dizer, eles até podem entrar, mas será necessário me pagar três tomates para que eu permita que você ultrapasse a fronteira e realize a troca.
– Mas eu sempre troquei a torta do Seu Walter por três tomates. Isso significa que eu terei que produzir mais três tomates se quiser continuar realizando essa troca?
– Exatamente. Mas essa é uma medida que visa melhorar o desenvolvimento da nossa parte do bairro. Impedindo a torta do Seu Walter de entrar na nossa área, queremos incentivar as pessoas da nossa área a produzir tortas!
– Mas nós moramos no mesmo bairro, que diferença faz se as tortas estão sendo produzidas na Área Sul ou na Área Norte? O Seu Walter sempre produziu tortas de excelente qualidade e a preços baixos. Ele sempre supriu nossa demanda por tortas. Caso ele estivesse prestando um serviço de forma insatisfatória para alguma parte da população, você mesma ou qualquer outra pessoa poderia começar a produzir tortas e ganhar os clientes que não gostam da torta do Seu Walter. Ainda não entendo como diminuir nossas possibilidades de escolha, dificultar as trocas ou taxar produtos da Área Norte pode ser bom para a Área Sul.
A moça não se importa muito com a sua argumentação e manda você voltar quando estiver adequado às novas regras. Você volta para sua casa, pega mais três tomates no seu estoque, paga o tributo à moça e realiza a troca com Seu Walter. A partir desse dia, por causa de uma linha imaginária, todos os habitantes da Área Sul que quiserem realizar trocas com os habitantes da Área Norte terão que utilizar parte de sua produção para pagar os fiscais da nova fronteira.
Através desse pequeno conto, podemos enxergar o absurdo total que é a ideia do protecionismo. É como se os moradores do Vidigal tivessem que pagar a mais para trocar o fruto do seu trabalho com moradores do Leblon ou como se moradores da Vila Mariana tivessem que pagar a mais para trocar com moradores do Jabaquara. Por que o raciocínio seria diferente com relação aos países? É tudo uma questão de onde a linha da fronteira é traçada.
Além disso, o protecionismo dificulta que alguns locais que não possuem determinados recursos tenham acesso a eles. Como mostramos anteriormente, é vantajoso para todos que a divisão do trabalho e a troca livre ocorram, pois isso proporciona acesso a produtos que não estão fisicamente próximos a algumas regiões. Se levado ao extremo, o protecionismo deveria defender que a água produzida em outros locais que não fossem o Nordeste brasileiro tivesse que ser taxada para “incentivar” os produtores locais a produzirem a água e acabar com seca.
Com isso, chegamos à conclusão de que não importa onde o produto está sendo produzido. O efeito econômico do local onde a produção está ocorrendo é totalmente irrelevante. Continua sendo uma troca mutuamente acordada entre dois seres humanos, sejam eles moradores da Área Sul, da Área Norte, da Venezuela, da Austrália ou de qualquer faixa de terra que você possa colocar um nome.
*Pedro Henrique Dias é economista