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É o Brasil um país racista? (Parte 2)

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Para ler a primeira parte, clique aqui. 

Como não poderia deixar de ser, há uma tentativa de dar uma roupagem “cientifica” à tese do racismo estrutural, donde somos frequentemente confrontados com estatísticas e mais estatísticas que deveriam funcionar como uma evidência inabalável da coisa. É que a estatística é um recurso atraente, colaborando para conferir pesos a argumentos. Conforme diz Darrel Huff, em seu Como mentir com estatísticas: “A linguagem secreta da Estatística, com tanto apelo à nossa cultura “baseada em fatos”, é empregada para sensacionalizar, inflar, confundir e supersimplificar”.  A leitura do livro de Huff, aliás, seria muito salutar para muitos que, mesmo que bem intencionados, acabam se deixando levar por números e percentuais jogados no ventilador. O problema não é só que as estatísticas possam estar eventualmente equivocadas ou mal elaboradas, mas sim que, mesmo quando corretas, é preciso ter a prudência de não olhar os números brutos e tirar conclusões precipitadas.

Peguemos como exemplo a questão do acesso ao ensino superior. De acordo, com o IBGE, com base em informações do Pnad Contínua de 2018, 36,1% dos jovens brancos haviam concluído o ensino superior, contra 18,3% dos pretos e pardos. Temos, portanto um contraste de fato assombroso. Sem perder tempo, muitos dizem que isso é mais uma prova de racismo estrutural, de quebra tratando por “negacionista” quem discorde, a despeito de tal retumbante evidência. Debrucemo-nos, por um momento, no que isso implicaria dizer. Para que o racismo estrutural seja a explicação para tal disparidade, é necessário que determinadas engrenagens institucionais tenham sido previamente estabelecidas, de modo a colocarem óbices no ingresso de jovens pretos e pardos nas universidades. A questão é: como isso seria possível, em um país em que, via de regra, o acesso ao curso superior se dá via ENEM e vestibular? Para que estejamos a falar de racismo, é preciso que, ainda que de forma velada, haja a intenção deliberada de instituições barrarem, ou ao menos limitarem o ingresso de determinados grupos; mas como isso é possível quando as universidades simplesmente não têm poder discricionário para barrar ninguém?

Fica patente que a disparidade em questão não se explica por as universidades serem “racistas”. Para chegar a uma conclusão do fator, ou melhor, dos fatores que incidem e explicam tal desigualdade, é preciso mais do que olhar os números brutos, mas me arrisco a sugerir algumas possibilidades que me parecem bastante plausíveis. Na verdade, podemos derivar parte da disparidade do plano histórico, remetendo sim à questão da escravidão. Eu não pensaria nem por um momento em sugerir que tal chaga ainda não produza seus efeitos — a diferença é que, enquanto os identitários enxergam a sua reprodução dia após dia na vida social, pautando as relações entre brancos e negros (como se o país pudesse ser dividido em tal dualidade) em uma lógica de “opressor e oprimido”, eu enxergo os efeitos econômicos da mesma, afetando, aí sim, os que dela descendem — e não pensem que só a melanina define isso.

Como os negros foram historicamente “sacaneados”, não tendo a abolição da escravidão sido acompanhada por nenhuma forma de indenização para os libertos, é fácil concluir que isso produziu e produz seus efeitos nos indicadores socioeconômicos até os dias de hoje. Ainda com base nos dados de 2018, dentre os jovens de 18 e 24 anos que, tendo concluído o ensino médio, não estudavam por precisar trabalhar ou buscar um emprego, 61,8% eram pretos e pardos. Ora, esses jovens não estão deixando de ingressar em uma universidade por supostas barreiras institucionais racistas, e sim por uma necessidade econômica. O fato de esta necessidade remeter a uma raiz de fundo racial — escravidão —, o que certamente é um mal, não implica reprodução dessa lógica racial, seja aberta ou oculta nas “estruturas”.

As estatísticas só podem ser tão imprudentemente usadas, com tais interpretações encontrando ampla guarida e pouco questionamento, devido ao viés da confirmação. Quem já tem plena convicção de que o Brasil é racista e que o racismo em questão é do tipo estrutural, tenderá, naturalmente, a interpretar toda e qualquer disparidade estatística entre negros, pardos e brancos como uma prova do nível de penetração do racismo. Trata-se do mesmo tipo de efeito que observamos com estatísticas que demonstram certas desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho, dando vazão a explicações institucionais/estruturais muito similares, tais como “é culpa do patriarcado”, e afirmações simplesmente mentirosas como a de que as mulheres recebem, de forma geral, menos do que os homens exercendo a “mesma função”.

O viés da confirmação certamente não combina com o pretenso rigor científico que dizem ter ao esmiuçar essas explicações. Em qualquer curso introdutório de Metodologia Científica, mesmo que medíocre, aprendemos, ou ao menos deve ser esse o caso para aspirantes a uma carreira acadêmica/científica, que correlação não implica causalidade. É o básico do básico, o bê-á-bá, mas o que não falta são doutores e acadêmicos bem gabaritados (pelo menos no papel) jogando o rigor científico no ventilador para vender como fato aquilo que na verdade não passa da própria opinião enfeitada com muito apelo à autoridade.

A soma do viés da confirmação com a confusão entre correlação e causalidade serve para alimentar afirmações hiperbólicas ou simplesmente nonsense, a exemplo da tese do “genocídio do povo negro”. Os identitários são, em geral, desprovidos de senso de proporção e equilíbrio, e sintomática disso é a forma como usam o termo genocídio, não apenas como um recurso retórico — o que, por si só, já seria condenável —, mas como algo que levam ao pé da letra. Quando chegamos ao ponto de ter que explicar para “gabaritados” o que genocídio realmente enseja, percebemos a que nível chegou o debate racial no Brasil, mas pouparei o leitor de uma definição que acredito ser óbvia.

Os que apregoam que o Brasil pratica genocídio contra os negros novamente se valem de estatísticas. Segundo dados do Atlas da Violência, em 2019, 77% das vítimas de homicídio no Brasil foram negros (somam-se aqui os pretos e pardos). Considerando a taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes, conclui-se que os negros têm 2,6 mais chances de morrerem assassinados. A leitura descuidada e preguiçosa das cifras — mal que afeta diversos ditos especialistas e comentaristas de jornal — pode nos fazer perder de vista o que está nas entrelinhas. Primeiro de tudo, será tal disparidade explicada pelo racismo? Para que assim o seja, precisamos que parte significativa das mortes de pretos e pardos tenha sido causada “em razão” de serem negros e pardos. O número por si só não nos permite concluir isso, e seria absurdo afirmar que os quase 35000 homicídios em questão tenham tido motivações racistas. Além disso, para encaixar esse número nesta narrativa racial dualista, é preciso conhecer o perfil de outro protagonista: o homicida. Novamente, o número bruto não é capaz de destrinchar a cor de cada um, ou da maioria, que seja, dos homicidas. O assassinato de um negro pelas mãos de outro negro, pela lógica do racismo estrutural, deveria ser desconsiderado no cômputo racialista. Mesmo em casos em que seja possível determinar a cor do assassino, isso não significa que a vítima negra de um assassino branco tenha sido vítima de racismo; do contrário, uma vítima de latrocínio, por exemplo, poderia ser facilmente transformada em uma vítima de racismo, só importando para a classificação as cores dos agentes envolvidos: assassino(a) e assassinado(a).

Como um genocídio implica um genocida, o Estado brasileiro ocupa esse papel na narrativa, sendo a polícia a responsável pelo “trabalho sujo”. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020 registrou um total de 6.416 mortes decorrentes de intervenção policial, sendo 78,9% de pessoas negras (lembrem, as estatísticas costumam somar nesse grupo os pretos e pardos). A cifra, novamente, pode servir de combustível para os desatentos. Genocídio implica uma política deliberada, e para tal, seria preciso concluir — o que é impossível com o número bruto — que essas mortes foram, em sua totalidade, ou ao menos em sua grande maioria, fruto de execução extrajudicial pelas mãos dos policiais. Trata-se de acusação gravíssima. Sim, lamentavelmente há casos de violência policial no Brasil. Sim, os perpetradores disso devem ser devidamente encarcerados. Sim, qualquer liberal que se preze tem ojeriza pelo abuso de autoridade. Mas não, as polícias como instituição de Estado não são agentes de fantasiosos genocídios. Talvez aqui seja um dos pontos em que a tentativa de forçar a ótica do racismo estrutural mais vacila diante da realidade. Para satisfazer a tese do genocídio do povo negro, ou genocídio de qualquer outra ordem, deveríamos acreditar que todos os mortos por intervenção policial estavam rendidos e foram injustamente assassinados. Um traficante que abre fogo contra a polícia e é abatido em confronto seria alçado à condição de vítima, e o policial que não estava muito a fim de morrer, à de vilão.

Mas se os números brutos não implicam o racismo como causa, o que explica a tão aparente desvantagem estatística dos pretos e pardos? Não seria o fato de que os dados parecem apontar todos para a mesma direção a prova definitiva? É preciso reiterar que trato por racismo aqui aquilo que é deliberado, fruto de ações concretas tomadas com o fim de causar desvantagem aos negros. O mero desnível estatístico não prova a tese do racismo estrutural, especialmente quando uma explicação muito mais óbvia se faz presente. Temos aqui um exemplo de que a insistência dos identitários em pautas concorrentes causa inevitável contradição.

Há, de fato, pesquisas que relacionam a pobreza com a criminalidade. Isso não implica, é claro, nem determinismo para quem é pobre, nem uma desculpa para quem é bandido. No entanto, também sabemos que muitos progressistas modernos, adeptos de uma versão radical da tábula rasa, costumam tomar tais pesquisas como forma de redimir criminosos e torná-los vítimas do “meio”, da sociedade. Deixando a extrapolação de lado, a pobreza é um fator relevante a ser considerado quando se estuda a violência. Sabemos também, como algumas das estatísticas apresentadas aqui demonstram, que os negros (pretos e pardos) apresentam maior desnível socioeconômico. Nesse sentido, um maior encarceramento de negros (lembrem que aqui também se encontram os pardos), bem como uma maior letalidade por intervenção policial, podem, provavelmente, ser em grande parte explicados, não por uma suposta propensão genética, ou tampouco moral, dos negros ao crime, como defenderiam racistas natos, mas em razão de a pobreza ter maior protuberância nesse grupo. Contraditórios como são, os “tabularasistas” de plantão escolhem ignorar as explicações ambientais, ainda que parciais, quando realmente presentes, sob risco de colocarem em cheque o tal racismo estrutural.

Por fim, não posso tratar de estatísticas raciais no Brasil deixando de fora a “cereja do bolo”. Em meu artigo intitulado “O uso dos pardos como curingas em  nosso baralho racial”, abordei como os pardos ocupam um elemento oportuno, ora inflando, ora murchando estatísticas, a depender do que se queira provar; é o famoso “pardo de Schrödinger”. No artigo supracitado, eu comentava uma manchete que anunciava que pela primeira vez os negros ultrapassavam os brancos em universidades públicas. Para o brasileiro médio, os negros em questão equivalem aos pretos, mas, para o IBGE, somam-se a eles os pardos. O pulo do gato é que os pardos são o maior estrato racial do Brasil, chegando à coisa de 46% da população, contra cerca de 10% dos pretos. Talvez nada contribua tanto para obscurecer a questão racial no Brasil quanto a forma como os pardos são encarados pelo discurso identitário. Eles costumam servir para inflar estatísticas, dentre as quais a mais famosa e mais capciosa: “os negros representam mais da metade da população brasileira”. Na outra ponta eles (pardos) são tratados como inexistentes, por gente que, com a desculpa de combater o racismo, muitas vezes não têm pudor em praticar racismo descarado contra esse grupo.

Uma vez turbinadas as estatísticas, parte-se para as abstrações. Se mais da metade da população é formada por “negros”, então o fato de que o conselho administrativo de uma grande empresa, para citar um exemplo, não tenha a mesma estratificação, só pode ser mais uma prova de racismo estrutural. Eventuais membros pardos do conselho podem não entrar no cômputo se o tom de suas peles não for condizente com a paleta de cores empunhada pelos identitários. Fala-se em uma maioria de cerca de 56%, dos quais 46% são pardos, mas cobra-se uma abstração de ao menos 50/50 de pretos e brancos.

Não falo aqui em termos identitários como advogado dos pardos ou coisa que o valha. Pelo contrário, advogo em prol da inadequação das abstrações identitárias, quaisquer que sejam. Outro sintoma dessa inadequação é desconsiderar as diferenças regionais. No Censo Demográfico de 2010, a população branca do Brasil correspondia a 47,5%. Pensando em extremos, o número era de 83,9% em Santa Catarina, e de 20,9% em Roraima. Já considerando a população preta, a média nacional era de 7,5%, contra 17% na Bahia e 2,9% em Santa Catarina. Cobrar uma igualdade estatística regional, como abstração da média nacional, como podemos notar, não faria nenhum sentido; isso continuaria sendo verdade ainda que incluíssemos os pardos, que chegavam ao menor número no Rio Grande do Sul (10,6%) e ao maior no Pará (69,9%). Temos então que, ainda que não houvesse nenhum desnível de caráter econômico e com raízes históricas, muitas destas abstrações raciais continuariam sendo inatingíveis.

Lembro-me, quando cursava o ensino médio, de um professor usando tal abstração numérica para defender as cotas raciais. Após pedir para contarmos o número de alunos negros (pretos) em sala de aluna, informou-nos que eles estariam sub-representados naquele espaço (escola pública) em face de serem mais da metade da população. Era um argumento atraente, tanto é que me convenceu à época, bem como, estou certo, convenceu outros tantos. O que meu professor esqueceu de informar é que a) os pardos compunham mais de 80% da parcela dos negros, e b) Santa Catarina tinha o maior percentual de brancos dentre os estados da federação. De posse dessas informações, o contraste não pareceria tão aterrador, já que dentro da sala também havia pardos, e mesmo o número de pretos, como percentual do todo, não estava sequer abaixo da média nacional; mesmo se estivesse, haveria que se levar em conta a particularidade regional.

(Continua…)

Fontes:

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-11/pela-primeira-vez-negros-sao-maioria-no-ensino-superior-publico

Como Mentir Com Estatísticas — Darrel Huff (Traduzido por Alda B. S. Campbell)

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-08/risco-de-negro-ser-assassinado-e-26-vezes-superior

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/07/15/no-de-mortos-pela-policia-em-2020-no-brasil-bate-recorde-50-cidades-concentram-mais-da-metade-dos-obitos-revela-anuario.ghtml

https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html

https://sidra.ibge.gov.br/tabela/2094#/n1/all/n2/all/n3/all/v/1000093/p/last%201/c86/allxt/c133/0/d/v1000093%201/l/v,p+c86,t+c133/resultado

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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