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Decisões individuais x Decisões coletivas (IV)

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Para ler as partes anteriores, clique nos respectivos links: parte 1, parte 2, parte 3.

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2. A ordem liberal e o processo político da democracia

Democracia é uma coisa. Ordem liberal, outra. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, em seu elegante e expressivo estilo, nos ensinava que os liberais estão preocupados especialmente em conter a jurisdição do Estado dentro de rigorosas e estreitas fronteiras. E isso ocorre porque os liberais têm por missão a defesa da liberdade individual, vítima frágil da concentração dos poderes estatais. Conter o Estado é irrigar a liberdade pessoal. Diferentemente dos liberais, mas não necessariamente em oposição direta a eles, os democratas têm o exercício dos poderes públicos como seu principal objeto: quem deve ocupá-los? E respondem: o poder público é do povo e por ele deve ser exercido.

O liberalismo se preocupa especialmente com a maximização e a preservação do processo não político de decisões individuais, decisões essas tomadas no dia a dia do cidadão, no seio da família, na profissão, no clube, na rua, no mercado. O processo decisório individual, contrapartida da autonomia pessoal, começa no café da manhã e termina no leitinho morno da noite, numa cadeia incessante de opções, escolhas e renúncias pelas quais o responsável é o agente individual. O liberalismo se interessa particularmente pela existência de instituições que tornem esse processo eficaz, preservando a liberdade individual e legitimando os direitos de propriedade. Os liberais não querem ser conduzidos pelos ocupantes dos poderes públicos; esperam que estes se limitem a criar o espaço no qual a iniciativa particular possa ser livremente exercida.

Os democratas não estão especificamente preocupados com o processo de decisões individuais. Coerentes com o seu compromisso para com a representação popular no governo, eles estão em sintonia com o processo político de decisões coletivas.  Nessas decisões coletivas, políticas, os cidadãos decidem como se fossem uma unidade; supostamente, o que decidirem valerá para todos. O exemplo mais expressivo desse tipo de decisão é o funcionamento de uma assembleia constituinte. Diferentemente das decisões individuais, essas decisões políticas são difusas quanto à responsabilidade da decisão tomada. Não seria exagerado dizer que as decisões políticas carecem do sentido contundente da responsabilidade explícita das decisões individuais.

Na realidade, o processo político de decisões coletivas é não apenas “irresponsável”, como é ineficaz e com irresistível vocação para a corrupção. De todos os processos sociais, o processo político é de longe o mais precário, e esta é a avaliação que dele se faz universalmente. E por esse mesmo motivo é surpreendente que nas eleições frequentemente os eleitores deleguem à política decisões que podem ser tomadas de maneira mais eficiente pelos particulares no seio do mercado. Todas as vezes em que isso se dá, politiza-se desnecessariamente o problema. Isto é, torna-se mais precária a sua solução. Resumindo: o liberalismo se refere principalmente ao mercado, enquanto a democracia diz respeito à política.

Isso tudo sugere que o liberalismo e a democracia podem estar em conflito, numa relação antitética. E de fato sempre estão assim. Sugiro aos leitores a leitura do livro de Norberto Bobbio, Liberalismo e Democracia, Editora Nova Fronteira, bem como os trabalhos de James Buchanan e seus colegas da assim chamada “Escola da Escolha Pública”.

Muito antes de Bobbio e Buchanan, Simón Bolivar, Alex de Tocqueville e os Founding Fathers tiveram aguda percepção de que a prática da democracia – dada a precariedade do processo político – poderia comprometer a ordem liberal. Há mais de dois séculos se procura algum meio de impedir que tal ameaça se concretize. Essa é a razão de ser do constitucionalismo e da sugestão de Hayek da criação da Demarquia. (Ver, do autor, Os Fundamentos da Liberdade, Ed. Visão).

Uma das coisas que podem ser feitas é a conscientização das pessoas a respeito de que o exercício da democracia pode ameaçar a liberdade individual. Lamentavelmente, há sinais de um crescimento indesejável de pseudoideais democráticos (democratismo) que, em seu afã de privilegiar a democracia (isto é, o processo político), podem acabar enterrando o ideal liberal da liberdade. Isso ocorre, por exemplo, quando se pretende ingênua e erradamente “democratizar” a organização de instituições baseadas em decisões individuais como são, por exemplo, as empresas e as famílias. A prática do “assembleísmo” nessas instituições do tipo taxis, que dependem essencialmente da responsabilidade individual de proprietários, empresários e chefes de família, ignora que o sistema decisório por meio de votos foi concebido para outro tipo de instituição, as sociedades abertas liberal-democráticas conhecidas como kosmos (ver Hayek, Os Fundamentos da Liberdade e Direito, Legislação e Liberdade, Universidade de Brasília). Pode-se conceber uma empresa ou uma família com “estilo democrático” de organização e funcionamento, mas transformá-las realmente em “democracias” é condená-las à inoperância, à disfunção e à perda de eficácia. O leitor amante de futebol certamente se lembrará da tentativa patética de se organizar um clube paulista de futebol profissional nos moldes de uma democracia, a “democracia corintiana”. Não se pode duvidar das boas intenções dos líderes daquele movimento,  como não se pode igualmente atribuir-lhes o mínimo de conhecimento em matéria de organização social. Felizmente para o clube, a ideia não se concretizou.

Por algum bom motivo, o processo político de decisões públicas ou coletivas da democracia passou a ser associado à prosperidade. O resultado desse culto indevido da democracia tem sido a glorificação da política em detrimento do mercado, a expansão dos poderes públicos à custa da liberdade pessoal, o debilitamento das forças geradoras da riqueza e do bem-estar social. As pessoas geralmente têm dificuldades para entender que é a redução dos poderes coercitivos do Estado que fortalece a autonomia pessoal e a prosperidade, e não necessariamente a democracia. Elas têm dificuldade para entender que é a liberdade econômica típica dos mercados abertos e suas instituições que propicia o desenvolvimento, não a democracia. Enquanto essas diferenças fundamentais entre processo político e ordem liberal não forem entendidas pela maioria das pessoas, continuaremos com a liberdade e a prosperidade ameaçadas. A seara da democracia é a política com suas decisões grupais; a da ordem liberal são decisões pessoais livres e responsáveis. A primeira é uma atividade pública, a segunda é individual.

Sei que estou correndo o risco de ser taxado de “inimigo da democracia”. Não o sou; sou amigo do liberalismo. Não conheço processo político melhor do que o democrático, como não conheço sequer um processo político que pelas suas limitações constitutivas não ameace a integridade dos direitos individuais.

(conclui na próxima parte)

Artigo retirado do livro de crônicas Og Leme, um liberal, editado pelo Instituto Liberal em 2011 e à venda em nossa livraria por R$ 10,00 (frete não incluso). Adquira essa e outras obras e colabore com o trabalho do IL.
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Og Leme

Og Leme

Og Leme foi um dos fundadores do Instituto Liberal, permanecendo por décadas como lastro intelectual da instituição. Com formação acadêmica em Ciências Sociais, Direito e Economia, chegou a fazer doutorado pela Universidade de Chicago, quando foi aluno de notáveis como Milton Friedman e Frank Knight. Em sua carreira, foi professor da FGV, trabalhou como economista da ONU e participou da Assessoria Econômica do Ministro Roberto Campos. O didatismo e a simplicidade de Og na exposição de ideias atraíam e fascinavam estudantes, intelectuais, empresários, militares, juristas, professores e jornalistas. Faleceu em 2004, aos 81 anos, deixando um imenso legado ao movimento liberal brasileiro.

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