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Da legitimidade do voto nulo

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Quero dizer, antes de tudo, que não me proponho com este artigo a fazer uma defesa do voto nulo na eleição que se avizinha, mas sim tratar da legitimidade dessa opção, por aqueles que a fazem. Escrevo em resposta a quem demoniza o ato de se negar a escolher entre as opções postas em um determinado momento nas urnas. Eu mesmo costumava figurar na fileira dos que torcem o nariz em absoluto para o voto nulo e branco, prova de que não somos imunes a mudar de opinião, em especial quando circunstâncias não previstas se impõem.

A principal razão da minha objeção de outrora é que a não escolha sempre foi justificada por muitos com uma retórica antipolítica com a qual nunca simpatizei. Sempre pensei, e continuo a pensar, que o discurso de que não adianta gastar energia escolhendo o(a) candidato(a) pois todos são iguais e o resultado será sempre o mesmo é um discurso preguiçoso. Contra isso, a resposta usual é a de que, mesmo que as opções postas sejam todas ruins, é praticamente impossível que sejam igualmente ruins, cabendo sempre distinguir o “menos pior”, o “mal menor”, já que alguém terá que ser eleito de qualquer forma. A não escolha, portanto, seria também irrealista, já que a opção de não eleger alguém não existe — ao menos não na normalidade democrática. Este é um argumento bem convincente, embora desconsidere que a seleção do “menos pior” pode ser tão subjetiva quanto o diagnóstico de que todos são igualmente ruins: não há como quantificar de forma objetiva e imparcial os prós e contras de cada opção de modo a se chegar a um veredicto que tenha uma certeza matemática.

Ocorre que o voto nulo/branco não é apenas a escolha de antipolíticos e desiludidos. O fator que seus críticos ignoram é que, embora não tenha o poder de eleger ninguém, ele serve para comunicar algo, e essa comunicação é tão legítima e até mesmo tão lúcida quanto o voto popular que de fato elege alguém.

Quantitativamente o peso individual de um voto, em termos de definição de um pleito, tende a zero. Disso muitos concluem, com certa razão, que as querelas políticas do cotidiano — discutir com amigos, familiares e conhecidos — são, além de toscas, infrutíferas. Isso não é para dizer que o voto não tem importância, mas sim que sua relevância perde significância como uma decisão coletiva, em que cada eleitor deveria decidir em função da expectativa de voto de seus pares, e ganha importância como o que realmente é: uma decisão de foro íntimo. E, se o eleitor não tratar seu voto como uma questão de foro íntimo e como uma oportunidade de fazer valer aquilo em que acredita, os eleitos tratarão de fazer isso por ele. Um voto não significa uma anuência completa ao seu depositário; muitas vezes, é, como é comum no chamado “voto útil”, o resultado da comparação de rejeições, vencendo o menos rejeitado. Ocorre que a narrativa oportunisticamente ignora esse fato.

Dilma não teria sofrido o impeachment em 2016 se fosse uma governante popular à época, e às vésperas da queda chegou a registrar índices de desaprovação superiores aos de Collor; isso tudo menos de dois anos depois de ter sido reeleita. Dilma e seu partido, como todos sabem, passariam a acusar de golpe um processo legítimo e que cumpriu o rito estabelecido — rito esse que, muito longe de facilitar o processo, introduziu mais óbices, como é bom lembrar. Para dar corpo à retórica, quantas vezes não ouvimos Dilma falar dos 54 milhões de votos com os quais logrou derrotar Aécio Neves em 2014? Era patente que, dado o percentual da população que havia passado a apoiar o impeachment, ela tivesse perdido ao menos parte do apoio dos eleitores de outrora. Muito mais provável é que ela nunca tenha tido o respaldo total daqueles 54 milhões de eleitores. Muitos talvez simplesmente não gostassem do Aécio. Porém, mesmo um voto não sendo necessariamente um respaldo ideológico, cada um daqueles votos entrou na retórica petista como a aprovação das pautas econômicas encampadas pelo partido e uma rejeição a um “projeto neoliberal”.

Mais recentemente, vimos o apego aos números reprisado por Bolsonaro. Quantas vezes não ouvimos o presidente apelar, do alto do palanque do qual nunca desceu, para os 58 milhões de votos com os quais derrotou Haddad no segundo turno em 2018? — em verdade, Bolsonaro nunca se contentou com o número e, como todos sabem, disse em diversas ocasiões, sem prova alguma, que venceu a eleição já no primeiro turno. Novamente aqui, cada um dos votos recebidos não representou necessariamente uma aquiescência com tudo o que ele representava, sendo fator determinante a rejeição ao PT. Porém, esse fato não impediu que o presidente e seus asseclas se escorassem nos 58 milhões (ou na insanidade da vitória em primeiro turno) para forjar um apoio popular irrealista e tentar dar validade aos rompantes autoritários e ataques às instituições que temos visto nos últimos três anos e oito meses.

Em face disso, o voto nulo ou branco pode servir como uma recusa a ser computado(a) em retóricas populistas, ou como alguém que veste a camisa de determinada militância. Pode muito bem ser uma opção lúcida de quem identifica nas opções postas em um cenário de bipolarização uma tendência em usar o total de votos obtido no pleito como uma prova de que é a encarnação, não da vontade momentânea do povo, mas do povo em si. Isso se torna ainda mais relevante quando as tendências e as pesquisas apontam para uma direção. Quando tratamos de populistas, não importa apenas o resultado de fato, a vitória ou derrota de fulano ou beltrano, mas a forma como essa vitória ou derrota se dá. Quanto mais os candidatos investem, ou tem o histórico de investir em um discurso fortemente polarizador que sugira um governo apenas para o “lado vencedor”, maior é o risco caso obtenham uma vitória acachapante. Um populista que ganhe com, digamos, 51% dos votos, tem muito menos força do que um populista que vença a disputa com 70% dos votos.

Os que demonizam essa opção pregando o imperativo de se fazer um voto útil para salvar o país, ou coisa que o valha, quase nunca têm a neutralidade partidária/ideológica que fingem ter, e o discurso serve tanto a gregos quanto a troianos em defesa de seus próprios candidatos, ainda que não o confessem. Os que querem te compelir a uma escolha quase sempre vislumbram o voto em seu próprio candidato, nunca no rival.

Por fim, cabe destacar dois pontos. O primeiro é que o voto nulo ou branco parece fazer mais sentido em um segundo turno e naquelas circunstâncias tratadas acima, como a polarização entre populismos. No primeiro turno, é costumeiro que haja um leque maior de opções, sendo o voto nulo ou branco aqui mais característico do eleitor “antissistema”, do que de quem quer comunicar uma mensagem que de fato tenha relevância no cenário pós-disputa — como colaborar para evitar uma vitória acachapante de quem pudesse usar isso para governar com poderes hipertróficos. O segundo ponto é que, justamente pela intenção ser comunicar uma mensagem de rejeição às duas opções postas, o voto nulo ou branco tem uma natureza diferente da abstenção. Como defensor do voto facultativo, acredito que o cidadão deva ter garantido o direito de não votar (apesar de achar desejável que ele não faça essa opção), mas a abstenção tem uma natureza diferente, sendo mais comumente o produto de um eleitor fatigado com a política, ou motivado por motivos de força maior (uma impossibilidade de comparecer). O eleitor que sai de casa para fazer valer a expressão do seu descontentamento, ciente de que o os votos nulos e brancos costumam reverberar mais do que as abstenções, o faz com um propósito definido, e sua opção é tão legítima quanto as demais permitidas pelas urnas.

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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