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Combate à corrupção versus medidas totalitárias: o claro-escuro da nossa cena jurídica

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A leitura do artigo intitulado Combate à corrupção e medidas totalitárias: qual a nossa participação nisso tudo?, de autoria do advogado criminalista Igor Damous e publicado neste espaço[1], me inspirou reflexões críticas sobre fatos recentes protagonizados pelo Judiciário nacional e que perpassaram a esfera dos tribunais para produzirem efeitos diretos sobre nosso panorama político. O texto sustenta que a recente busca e apreensão determinada pelo ministro Alexandre de Moraes contra empresários não teria sido um ato isolado de arbítrio, mas um fenômeno gestado por anos de indiferença em relação às nossas garantias fundamentais, razão pela qual seríamos “responsáveis diretos pela escalada de poder dos membros do Poder Judiciário”. Nas palavras de Damous, nossa empolgação, nos anos da Operação Lava-Jato, com uma sucessão de medidas restritivas à liberdade, tais como prisões preventivas, quebras de sigilo ou conduções coercitivas, teria sido um comportamento típico de sociedades massificadas, que “sustentaram os totalitários que tiveram o desprazer de conhecer”, e que o atual autoritarismo togado não seria uma surpresa, pois nós mesmos teríamos trocado “nossa liberdade pelas cabeças de um ou outro corrupto”.

Em primeiro lugar, concordo com o colega em seu repúdio à atitude tomada contra os empresários, que mostrou o quão perigoso se tornou expressar opiniões em nossos “círculos mais recônditos”, no que ele, com acerto, designou como “último estágio da tirania”. Aliás, como você bem sabe, eu mesma publiquei dois artigos de repúdio incisivo à aludida decisão de Moraes, que classifiquei como autoritarismo escancarado[2],[3]. Contudo, quis me parecer que, após esse lúcido introito, o criminalista tenha incorrido em um açodamento de conceitos, tendo sido, por isso mesmo, levado a conclusões equivocadas.

Lá pela sua metade, o texto se referiu a prisões preventivas e quebras de sigilo do período lavajatista como meras “fishing expeditions”, ou intromissões de autoridades na privacidade alheia, sem alvo definido. De pronto, nota-se que o autor aludiu às medidas em caráter genérico, ou seja, sem especificar a quais delas estaria se referindo, o que revelou enorme imprecisão e comprometeu sua clareza argumentativa. Ora, quem critica o faz necessariamente em relação a algo, sob pena de sermos levados a crer que o autor tenha se insurgido contra os próprios institutos das prisões preventivas e das quebras de sigilo, o que seria inimaginável na voz de um criminalista.

Em seguida, o colega comparou os indícios que embasaram diversas condenações no âmbito da Lava-Jato, mais uma vez, em termos genéricos, aos supostos indícios sobre existência de uma organização criminosa para a prática dos tais “atos antidemocráticos”, e chegou ao raciocínio de que, em ambos os casos, todos os indícios poderiam ser suficientes para a decretação de medidas invasivas contra os investigados. Nesse aspecto, Damous banalizou indevidamente o próprio conceito de indício, chegando a um silogismo que poderia ser assim resumido: se, no passado, bastava “dizer” que havia indícios de formação de organização criminosa para lavagem de dinheiro, e se as prisões e até condenações promovidas pela Lava-Jato foram consideradas legítimas com base em tais indícios, hoje seria igualmente suficiente alegar indícios de formação de grupos delitivos pelos empresários para autorizar o pente-fino em seus bens, pois, segundo o autor, “todos temos esqueletos no armário”.

Ao adotar esse raciocínio, o colega menosprezou a robustez da prova indiciária que, apesar de indireta, ou seja, incapaz de demonstrar imediatamente o fato em questão, como consta do artigo 239 do Código de Processo Penal (CPP)[4], figura, muitas vezes, como a única ferramenta probatória viável para permitir a punição efetiva de agentes de delitos. Sobretudo em se tratando de crimes cuja prática requeira um grau diferenciado de ardil, como, por exemplo, o de lavagem ou ocultação de bens, definido como sendo a conduta de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens[5], é claro que investigadores, acusadores e magistrados têm de lançar mão de indícios para identificarem e punirem os responsáveis. Afinal, como corruptos não passam recibos com firma reconhecida, certos fatos totalmente destoantes da realidade cotidiana, tais como reformas milionárias em imóveis de suposta propriedade alheia, a existência de malas com milhões de reais em espécie em um apartamento, ou sinais externos de riqueza incompatível com a remuneração percebida em um determinado cargo, podem, sim, induzir à existência de outras circunstâncias, incluindo-se aí práticas crimes graves.

Caso bem diverso foi o dos empresários, pretensamente suspeitos de incorrerem nos crimes previstos na Lei 14197/21, seja na modalidade, “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais” (artigo 359-L), seja na de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”, e sujeitos a medidas restritivas sem que houvesse um indício sequer de treinamentos paramilitares por eles capitaneados, ou de disposição de mísseis ou drones em direção a prédios oficiais!

Igualmente imprópria foi a comparação, promovida pelo colega, entre as críticas à tramitação das medidas contra os empresários junto ao STF e aquelas direcionadas à apreciação dos processos da Lava-Jato pela 13ª. Vara Federal de Curitiba.

Ora, em relação ao primeiro caso, o senso comum bem sabe que cabem ao Supremo, em grossas linhas, as atribuições, como instância originária, de zelar pelo cumprimento da Constituição Federal e de julgar pessoas dotadas de foro privilegiado, e, como instância revisora de decisões de outros tribunais, a de examinar recursos em torno de possíveis infrações à Constituição Federal. Em outras palavras, a competência do STF é definida, pela nossa Lei Maior, em razão da matéria em discussão (controle de constitucionalidade), e em razão das pessoas em questão (foro privilegiado), sendo, desse modo, absoluta e não-sujeita a modificações. Assim, como os empresários nem possuem prerrogativa de foro, nem estão envolvidos em um processo que já tramite em grau de recurso, não é preciso ser atuante na esfera jurídica para intuir o total despropósito no exame do assunto pelo STF. Aliás, outra aberração processual omitida por Damous se refere ao fato de ter sido a medida contra os empresários pleiteada por um Senador da República, e não pelo Ministério Público, que seria a parte legítima para tanto!

Já no tocante à primeira instância paranaense, os principais questionamentos disseram respeito ao local de tramitação, como ocorreu nos processos envolvendo o ex-presidente Lula, que, no entender do STF, deveriam ter sido julgados em Brasília, e não em Curitiba. No entanto, esse fenômeno conhecido, em juridiquês, como competência em razão do local, possui natureza relativa, podendo ser alterado até por decisões de tribunais de hierarquia superior. Como de fato o foi, no caso Lula, pois nem a segunda instância (TRF-4) nem o STJ apreciaram qualquer irregularidade nesse sentido, tendo, desse modo, firmado a competência da vara curitibana.

E se você, caro leitor, tiver tido paciência para chegar até aqui, ainda gastará uns poucos minutos na leitura dos meus comentários sobre o ápice do artigo de Damous. Ao final de seu texto, e como subsídio retórico, o colega aludiu a uma entrevista concedida pela pensadora Hannah Arendt, onde esta afirmou ter percebido a gravidade do cenário político de seu país por ocasião do incêndio do Reichstag (Parlamento Alemão), em 33, momento em que foram efetivadas diversas prisões preventivas e encaminhadas muitas pessoas aos campos de concentração.

O argumento, por sua natureza extrema, não só estarrece como descortina mais um equívoco no domínio da lógica. De fato, todas as formas de totalitarismo – sobre as quais Arendt viria a escrever com tanta propriedade – implicam o cerceamento às liberdades; porém, a recíproca não é verdadeira, já que nem todo cerceamento caracteriza um regime de força. Qualquer conclusão em contrário nos conduziria à perigosa seara do desencarceramento em massa e do próprio abolicionismo penal, pois todas as prisões seriam, por definição, ilegítimas.

Portanto, ouso divergir de parcela substancial do artigo, e definitivamente não creio que a dita República de Curitiba tenha engendrado nossa atual República Alexandrina, por diferirem elas, a meu ver, em essência. Na primeira, observamos o prestígio ao devido processo legal, com ampla defesa, contraditório e direito aos recursos cabíveis, e presenciamos, ainda, o desempenho das funções de investigador, acusador e juiz por pessoas distintas. Na segunda, presenciamos medidas instauradas de ofício, ou seja, por iniciativa do próprio julgador, assim como iniciativas legislativas por autoridades togadas, censura a manifestações de pensamento e inexistência de indícios minimamente aptos a fundamentares as acusações. Não se trata de idolatrar o magistrado A ou demonizar o B, mas de respeitar os institutos que promovam a nossa segurança jurídica e, ao mesmo tempo, propiciem a efetividade das normas, com a devida punição de responsáveis por condutas gravosas a toda uma coletividade.

Entre o recomendável combate à corrupção e o autoritarismo de toga, a luz e a sombra de qualquer instituição democrática, está o respeito aos princípios do Estado de Direito, incluindo as normas sobre o devido processamento dos ritos, que são indispensáveis à previsibilidade almejada por qualquer civilização. Quanto às possíveis causas dos insuportáveis arbítrios de muitos de nossos tribunais, em particular, dos superiores, talvez seja mais recomendável, caro Damous, legar o assunto a historiadores e cientistas sociais que, muitas décadas após a nossa travessia por este planeta, venham a se debruçar sobre as peculiaridades da sociedade brasileira deste início de século XXI.

[1] https://www.institutoliberal.org.br/blog/combate-a-corrupcao-e-medidas-totalitarias-qual-a-nossa-participacao-nisso-tudo/

[2] https://diariodorio.com/katia-magalhaes-a-ditadura-travestida/

[3] https://www.institutoliberal.org.br/blog/autoritarismo-escancarado/

[4] Art. 239.  Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.

[5] Artigo 1 da Lei no. 9613/98

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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