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“Contra Toda Censura”: o assunto mais grave do momento

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Não faz nenhum sentido falar em liberdade e liberalismo, conceitualmente e historicamente, sem incluir, em primeiro lugar, a liberdade religiosa e, concomitantemente a ela, a liberdade de expressão. Sempre fui crítico a um enfoque exclusivo dos liberais na temática econômica; um dos motivos para isso, porém, era a sensação de que a liberdade de dizer o que se pensa não se encontrava, no Brasil, sob ameaça iminente.

O livro absolutamente necessário do diplomata Gustavo Maultasch, Contra Toda Censura – Pequeno tratado sobre a liberdade de expressão, um lançamento da editora Avis Rara, parte da constatação de que, se assim foi algum dia no país, já não é mais a nossa realidade, o que impõe um debate sério e vigilante sobre a importância deste valor supremo da agenda liberal. O trabalho resulta de mais de dez anos de reflexões e ponderações do autor.

O maior objetivo de Maultasch, que ele muito humildemente declara, é provocar a discussão, suscitando argumentos e ângulos que, devido, sobretudo, como ele mesmo diz, às “prestidigitações retóricas” correntes, se tornaram abjeções impronunciáveis, mas alguém precisa proclamá-los. Ele não deixa, contudo, de levantar uma bandeira. A tese principal da obra de Maultasch é a defesa da legislação americana sobre liberdade de expressão, isto é, a permissão de qualquer discurso, mesmo os discursos ofensivos, racistas ou xenófobos.

Justamente por isso, ele adverte desde o princípio que seu objetivo “não é descrever como o governo brasileiro regula a liberdade de expressão atualmente, em especial porque a visão hoje cristalizada em lei (e validada pelos tribunais) é uma visão demasiado paternalista e tutelada do debate público, a qual minimiza a autonomia individual, desconfia da nossa maturidade em conduzir-nos no ecossistema de informação e, por isso, não corresponde aos anseios por maior liberdade do nosso país”.

A abordagem de Maultasch é bastante original: ele escreve efetivamente como se estivesse travando uma conversa informal com seu leitor, em tom brilhantemente acessível e que dispensa qualquer tipo de mediação explicativa ou esclarecimento. Limitar-me-ei, portanto, a pontuar alguns dos conceitos com que ele trabalha em sua obra.

A premissa de Maultasch é que o princípio da liberdade de expressão não faz sentido se for empregado apenas para defender as ideias que consideramos positivas e agradáveis. Se um indivíduo tolerar apenas os modos de pensar com que tem afinidade e decidir que todos os outros devem ser banidos, ele não fará nada melhor do que qualquer tirano e estará em contradição ao atribuir a si mesmo virtudes nobilitantes como a fraternidade e a “consciência social”.

Ainda segundo Maultasch, a liberdade de expressão “existe para permitir aquilo que o pensamento hegemônico considera ofensivo, errado, ruim, feio, injusto ou hediondo; ele protege o discurso que nós consideramos vil e odioso, em especial se proferido por pessoas que julgamos desprezíveis. Se ele protege até isso, ele protegerá todo o resto – e assim nós teremos, sob a força inabalável desse princípio, a liberdade para pensar, falar e criticar o que quisermos. É preciso, assim, defender a livre-expressão de todos, inclusive a dos nossos maiores e mais odiosos inimigos”.

O autor sustenta que essa posição de defesa quase irrestrita e inegociável da liberdade de expressão pode ser, como, de resto, todos os princípios liberais, sustentada com base em argumentos filosóficos de diferentes naturezas: uns deontológicos, principiológicos, e outros utilitaristas. Para ele, os argumentos da primeira natureza são mais importantes, mas o livro lança mão de inúmeros exemplos de casos e raciocínios que demonstram também a utilidade de se permitir que as pessoas odiosas bradem suas odiosidades, identificando, aos olhos de todos, a feiura moral de suas propostas nefastas.

Afastando qualquer objeção quanto a estar defendendo a liberdade para discursar contra minorias por estar “fora de seu lugar de fala”, Maultasch ressalta que é proveniente de família judaica e sua avó era fugida de um campo de concentração nazista, mas defende o direito de os defensores da negação do Holocausto ou mesmo os militantes de partidos nazistas existirem e se organizarem, a fim de serem confrontados por meio da liberdade e não da censura. Conforme ele ressalta, “a perseguição, a restrição de direitos e a censura sempre se iniciam direcionadas contra aqueles tipos de pessoas e de discursos considerados impopulares e indesejáveis; por isso é que é comum que muitos se resignem ou julguem até toleráveis esses primeiros avanços da libido censória: o sujeito exagerou, ninguém pode falar isso, ele meio que mereceu mesmo, né. O problema é que, como se sabe, todo poder corrompe-se, e em breve pessoas e discursos “desejáveis” também passam a ser alvos de silenciamento e censura. Quando menos se espera, o medo se espalha e todos estaremos receosos de dizermos palavras “erradas” na direção “errada” (ou seja, na direção daqueles que detêm poder)”.

Os exemplos e argumentações de Maultasch na obra são qualificados judiciosamente por ele de “agnósticos”, isto é, independem, ou deveriam independer aos olhos de um juízo honesto, da orientação ideológica do leitor. Não importa se é um social-democrata, um liberal, um conservador, um evangélico ou umbandista, o leitor tenderá a se identificar com os argumentos que o autor apresenta e reconhecer que, se hoje pode aplaudir a censura de seus inimigos e adversários, amanhã poderá ser a vítima, sem direito a recurso.

Um dos conceitos abordados é o de “paradoxo do oprimido”, segundo o qual, se a sociedade é aberta, tolerante e sem preconceitos, nenhum discurso de ódio poderá ser hegemônico, não se justificando a regulação estatal para contê-lo, pois jamais atingirá seu objetivo. Ao contrário, se esse discurso nefasto tiver poder suficiente, não haverá lei ou burocracia alguma que possa contê-lo, até porque legisladores, burocratas e agentes de repressão também pertenceriam à estrutura social e estarariam atrelados a esse discurso. “É por isso que leis visando à proibição do discurso de ódio costumam ser ou desnecessárias, ou inúteis”, conclui Maultasch.

O paradoxo da tolerância popperiano, que o autor considera vago, por não deixar claro se a intolerância a ser vetada na sociedade seria aquela que incita diretamente e pratica a violência; a esdrúxula teoria de que o limite da discussão sobre liberdade é a lei, sendo que é essencial ao próprio regime democrático que possamos questionar e discutir as próprias leis em si mesmas; e a tese de que se pode dizer o que se queira, desde que arcando com as consequências legais posteriores, como se a censura, apenas pelo fato de não ser prévia, deixasse de ser censura, são alguns dos outros problemas muito interessantes sobre os quais Maultasch se debruça. Ele também analisa detidamente as restrições à liberdade de expressão contidas na legislação da República de Weimar, na Alemanha, cuja suposta tolerância irrestrita é suscitada como fator que impulsionou a ascensão do hitlerismo.

O autor, é claro, não proclama que a liberdade de expressão se deve dar sem absolutamente nenhuma exceção. As exceções, porém, deveriam ser muito menos numerosas que as que são atualmente aplicadas, por exemplo, no Brasil. Maultasch inclui nessa lista o discurso associado a uma ação violenta, como a contratação verbal de um matador de aluguel, ou a atitude irresponsável de entrar em um recinto fechado, como um cinema, gritando “fogo”, o que gera danos imediatos e irreparáveis por meio da simples argumentação. Ou seja, “se o dano é iminente, se é emergencial, se não há tempo de combatermos o discurso com outro discurso antes que se irrompa a violência, nessa circunstância caberia a intervenção estatal para a limitação da expressão”. Ele também menciona a difamação, através da imputação de fatos contra o alvo e não a mera expressão de opiniões a seu respeito.

Outros temas extremamente atuais, como a atribuição do status de “científico” a um discurso como forma de legitimá-lo como verdade absoluta e inquestionável, olvidando-se que a ciência se desenvolve através do questionamento, e toda a contenda criada em torno do conceito de “fake News” nas mídias sociais, relativizando-se a presença de notícias falsas há muito tempo no seio da vida social, são também objeto das ponderações de Maultasch. Como pano de fundo de toda essa verborragia, ele identifica a presença de uma pretensa “vanguarda”, autodeclarada “progressista”, que já não consegue disfarçar sua preferência por uma espécie de “Democracia Tutelada”, na qual a massa de ignaros e imbecis seria conduzida, por intermédio da “censura virtuosa”, por suas consciências esclarecidas e superiores.

Por vezes, diz-se com exagero que determinada obra é essencial. Nos tempos que correm, no Brasil contemporâneo de inquéritos tortuosos censurando revistas e justiceiros sociais execrando defensores da lei americana, retratando-os paradoxalmente como nazistas, dizê-lo a respeito deste breve trabalho de Gustavo Maultasch passa longe de ser um excesso. A leitura desse livro poderá ajudar qualquer leitor a entender melhor onde existe realmente um problema a ser enfrentado e onde, por outro lado, está-se apenas ocultando, sob o verniz de palavras bonitas e invencionices da moda, a velha luta entre os defensores da liberdade e aqueles que anseiam por ser os donos da verdade.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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