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Como seria o julgamento de uma empresa em um país que respeita a liberdade de expressão

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Quem gosta de debater as instituições certamente tem apreço por filmes de tribunais, quando os advogados vão à frente do juiz e dos jurados com uma argumentação simples e ao mesmo tempo sofisticada, uma tese defendida de um modo que cria um frenesi na plateia e inspira profundas reflexões. E uma dessas obras de arte que só o cinema consegue produzir é “O Povo Contra Larry Flynt”, de 1996. A película conta as peripécias do editor da revista adulta Hustler, Larry Flynt, e sua saga nos tribunais. Flynt foi processado pelo reverendo Jerry Falwell pela publicação de charge em anúncio satírico obsceno envolvendo sua imagem. Condenado nas instâncias inferiores, o editor apelou e levou o caso à Suprema Corte. Sua defesa enquadrou o caso sob a bandeira da liberdade de expressão. O argumento era que, se os tribunais poderiam proteger a liberdade de expressão de um sujeito depravado como Flynt, a liberdade estaria resguardada na América.

Na ficção, o advogado Alan Isaacman, brilhantemente interpretado por Edward Norton, faz uma exposição cristalina do conceito de liberdade de expressão:

“Eu não estou tentando sugerir que vocês devam gostar do que Larry Flynt faz. Eu não gosto do que Larry Flynt faz. Mas eu gosto do fato de que moro num país em que vocês podem tomar essa decisão por vocês. Eu gosto do fato de que eu vivo num país onde eu posso pegar uma revista Hustler e ler ou jogar na lata de lixo se eu achar que é o lugar dela. […] Vivemos em um país livre. Isso é um importante ideal. Esta é uma forma magnífica de viver. Mas a liberdade tem um preço, que algumas vezes significa que temos de tolerar algumas coisas com que nós não concordamos. […] Se começarmos a separar o que achamos obsceno, nós podemos acordar um dia e perceber que existem grandes barreiras em lugares que nem ao menos esperávamos. E não poderemos ver ou fazer nada. E isso não é liberdade. Isso não é liberdade.”

Flynt venceu por 8 a 0 no caso “Hustler Magazine v Falwell”, de 1988. A opinião da corte foi redigida pelo chefe de Justiça William Rehnquist, que sustentou que “a liberdade de expressão não é apenas um aspecto da liberdade individual — e, portanto, uma boa por si só — mas também é essencial para a busca comum da verdade e da vitalidade da sociedade como um todo”. “Temos, portanto, sido particularmente vigilantes para assegurar que as expressões individuais de ideias permaneçam livres de sanções impostas pelo governo”, lembra o juiz.

O contraste com o Brasil é desanimador, pois aqui um direito individual dos mais caros a uma sociedade evoluída é atacado e relativizado como um direito de segunda classe. Embora supostamente defenda a liberdade de expressão, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o sistema judiciário brasileiro como um todo deixam uma série de brechas para que esse pilar de uma democracia liberal seja afastado nos casos concretos.

As linhas de defesa desse valor inestimável a um debate robusto de ideias são frágeis desde a Carta Magna. A Constituição de 1988 versa sobre liberdade de expressão, assegurando-a nos aspectos de liberdade de manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, vedando censura política, ideológica e artística. Porém, o texto apresenta uma série de hipóteses em que ela não se aplica: proibindo o anonimato, a ofensa à imagem, à honra, à intimidade e à privacidade. Também garante o direito de resposta no caso de “abuso do direito de expressar” do indivíduo.

Nas mãos de um advogado criativo, essas exceções tornam-se um campo aberto onde a liberdade de expressão vira presa fácil para quem deseja cercear uma divergência. Há menos resistência a retirar do ar algo que incomoda por aqui do que nos EUA, país onde “ninguém tem o direito de não ser ofendido”, segundo o escritor britânico Phillip Pullmann. O modo de atuação do judiciário brasileiro favorece o descarte desse direito, em função do “livre convencimento do juiz” — o modo pelo qual valoram as provas e decidem os casos. Quer dizer que, mesmo nos casos com jurisprudência favorável à liberdade de expressão, o efeito vinculante não é tão forte. Por quê? O magistrado pode, sem prejuízo à sua atuação (leia-se, punição), afastar o precedente e não reconhecer a situação concreta como protegida sob a liberdade de expressão. O fenômeno é bem diferente dos Estados Unidos, onde o stare decisis (a estabilidade das decisões e a vinculação ao precedente em casos semelhantes) oferece um seguro, um muro de contenção às chuvas e trovoadas à liberdade de manifestação.

Com esses flancos abertos, esse direito está sempre na mira dos togados e, dia após dia, é sacrificado no altar das conveniências, ao sabor do momento e dos atores envolvidos no Brasil. Os donos do poder e a elite mainstream, que buscam mover a opinião pública em direção à sua agenda, aproveitam essas fragilidades para limitar questionamentos e eliminar do painel análises, opiniões e exposições que contrariam a linha dominante. Eles sabem que a base de sustentação jurídica é precária desde o topo do Judiciário.

O próprio Supremo Tribunal Federal estimula o desrespeito ao não se dar o respeito, notadamente no chamado “inquérito do fim do mundo”, aquele aberto de ofício pelo então presidente da Corte, quando Dias Toffoli escolheu a dedo o relator, Alexandre de Moraes, que despacha à revelia do Ministério Público Federal (MPF), atropelando garantias constitucionais e a separação de poderes na decretação de prisões, na retirada de conteúdo da internet, no afastamento de mandados de políticos e na proibição de monetização nas plataformas digitais. Em suma, um descarte sumário do devido processo legal em nome de, supostamente, combater fake news e ameaças ao tribunal.

O lendário juiz da Suprema Corte americana Louis Brandeis, em um poderoso voto dissidente na época da Lei Seca, já assentava que “os maiores perigos para a liberdade escondem-se traiçoeiramente nos ataques feitos por homens zelosos, bem-intencionados, mas sem compreensão”. Segundo ele, “se o Estado age fora da lei, incentiva os outros a fazer o mesmo, convida à anarquia. Declarar que, na luta contra o crime, os fins justificam os meios – ou seja, que o Estado pode cometer crimes com o objetivo de obter uma condenação criminal – terá consequências terríveis.”

Aqui no Brasil, o comportamento anômalo do STF já estimula um sem-número de ações flagrantemente ofensivas aos direitos basilares de uma nação que se quer respeitável.

Na CPI da Covid, instalada no Senado com o objetivo de apurar omissões do governo federal no combate à pandemia, bem como investigar irregularidades em repasses para estados e municípios, aproveitaram-se essas fissuras para quebrar o sigilo de veículos de mídia digital e produtoras de conteúdo com viés liberal ou conservador. A título de exemplo, para facilitar a ilustração do argumento, vamos pegar uma das atingidas por essa medida — a produtora de filmes, séries e documentários “Brasil Paralelo”, que utiliza elementos do entretenimento para abordar temas que transitam entre história, filosofia e política.

A comissão parlamentar de inquérito pediu a quebra dos sigilos telefônico, fiscal e bancário, bem como o fornecimento de todos os dados da Brasil Paralelo no Telegram, Facebook, WhatsApp e Google. Como justificativa, o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), diz que a Brasil Paralelo é suspeita de integrar uma rede responsável por atentar contra a ciência, a saúde pública e a vida na disseminação de notícias falsas.

Quer ver como não bate? É só observar o alcance da quebra de sigilo solicitado. Indiscriminadamente, sem diferenciação, desde janeiro de 2019. O período é muito antes de qualquer caso suspeito de coronavírus. A pandemia de covid-19 só foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020 – mais de um ano depois!

Resta evidente que é uma tentativa de silenciar vozes divergentes, que apresentem nuances ainda não exploradas ou marginalizadas pela velha mídia, por instituições de ensino e espaços de debate público. Meticulosamente, cercaram a Brasil Paralelo por outros meios, enquadrando a perseguição politico-judicial de uma forma que escape às proteções constitucionais, de um modo que não pareça uma censura escancarada.

Nada disso aconteceria se o Brasil tivesse elevados padrões de proteção à liberdade. Precisamos parar com defesas genéricas — aquelas frases pomposas usadas por magistrados quando falam de liberdade, mas que, na primeira oportunidade, são abandonadas quando lhes convêm. O discurso precisa ser condizente com a prática. Garantias no papel têm que ser transpostas para ações no mundo real, onde as consequências se desenrolam.

Nossos juízes, políticos, acadêmicos e expoentes com espaço na opinião pública têm que ter um claro entendimento sobre o conceito de liberdade para que não deixem suas capacidades de leitura serem nubladas por cortinas de fumaça, utilizadas para levar o debate a um ambiente no qual a liberdade de expressão fica indefesa diante de quem quer impor seu modo de vida, sua agenda política e interesses pela força dos instrumentos do Estado.

Falta ao Brasil atingir o estágio de maturidade dos EUA e compreender que a liberdade de expressão não é a causa de tensões, mas a única solução delas, pois é a matriz, a condição indispensável para todas as outras formas de liberdade, o alicerce de uma sociedade livre.

Os americanos sabem que a liberdade de pensamento e de expressão é a condição primeira que fez do país uma potência mundial, mesmo com os seus problemas. “Restrição de pensamento livre e liberdade de expressão é a mais perigosa de todas as subversões. É o único ato não americano que poderia mais facilmente nos derrotar”, reconheceu o doutrinário ex-juiz William O. Douglas, também da mais alta corte do país.

*Douglas Sandri, graduado em Engenharia Elétrica, é presidente do Instituto de Formação de Líderes (IFL) de Brasília e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados.

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