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Como a Alemanha ficou dependente do gás russo?

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Talvez a grande notícia desta semana – e que passou despercebida para muitos brasileiros por motivos óbvios – seja a sabotagem no gasoduto que liga a Rússia à Alemanha passando pelo mar Báltico, chamado de Nord Stream. Há vários atores que têm muito a ganhar com a destruição do ativo, inclusive a própria Rússia. Porém, não é de meu interesse ficar fazendo especulações sobre quem fez e etc., mas sim da geopolítica em torno do ato. Tal sabotagem pôs fim a 50 anos de política energética da Alemanha, algo que já foi muito discutido aqui na página. Mas como a Alemanha se “viciou” em gás russo? Essa é a história que pretendo contar para vocês.

Já abordamos aqui diversas vezes a resistência alemã à energia nuclear e o irresponsável fechamento dos reatores nucleares, então não pretendo gastar tempo com isso. Mas como o gás russo entra nessa história? Para responder a essa pergunta, precisamos voltar meio século atrás, mais especificamente no dia 01/02/1970.

Naquela data, gente graúda (empresários do setor energético e políticos) da União Soviética e da então Alemanha Ocidental se reuniu no sofisticado Hotel Kaiserhof em Essen. Eles estavam lá para celebrar a assinatura de um contrato para o primeiro grande gasoduto Rússia-Alemanha, que iria da Sibéria até a fronteira da Alemanha Ocidental em Marktredwitz, na Baviera. Obviamente o acordo beneficiaria ambos os lados: a Alemanha forneceria as máquinas e produtos industriais de alta qualidade; a Rússia forneceria a matéria-prima para abastecer a indústria alemã.

Porém, esse não era um acordo somente econômico, mas também geopolítico. Oleodutos de alta pressão, assim como sua infraestrutura de apoio, têm o potencial de unir os países, uma vez que exigem confiança, cooperação e dependência mútua. Naquela época, muitos alemães defendiam uma política de reaproximação à União Soviética e seus aliados, incluindo a Alemanha Oriental, que ficou conhecida como Ostpolitik. Lançada no ano anterior pelo então chanceler Willy Brandt, tinha o então ministro da Economia Karl Schiller como um grande entusiasta. Schiller a descreveu como um esforço de “normalização política e humana com nossos vizinhos orientais”.

Como diria Milton Friedman, devemos julgar as políticas públicas por seus resultados e não suas intenções. A Ostpolitik tinha um objetivo louvável, mas para alguns observadores era um movimento potencialmente perigoso. Antes da assinatura, a OTAN havia escrito discretamente ao Ministério da Economia alemão para perguntar sobre as implicações de segurança. Norbert Plesser, chefe do departamento de gás do ministério, havia assegurado à Otan que não havia motivo para alarme: a Alemanha nunca contaria com a Rússia para sequer 10% de seu suprimento de gás (guarde esse número).

Meio século depois, em 2020, a Rússia forneceu mais da metade do gás natural e um terço do petróleo que a Alemanha consome. Aproximadamente metade das importações de carvão da Alemanha, que são essenciais para a fabricação de aço, veio da Rússia. Um arranjo que começou como uma abertura em tempo de paz para um antigo inimigo se transformou em um instrumento de agressão.

Hoje a Alemanha financia a guerra de Putin. De acordo com o jornal britânico The Guardian, só nos primeiros dois meses após o início do ataque da Rússia à Ucrânia, estima-se que a Alemanha tenha pagado quase 8,3 bilhões de euros pela energia russa – dinheiro usado por Moscou para sustentar o rublo e comprar os projéteis de artilharia disparados contra posições ucranianas em Donetsk, Kiev, Lugansk e etc. Neste mesmo período, estima-se que os países da UE tenham pagado um total de 39 bilhões de euros pela energia russa, mais que o dobro da quantia que deram para ajudar a Ucrânia a se defender.

Agora os preços da energia na Alemanha, que já eram caros devido à resistência alemã à energia nuclear (que é bem barata), estão disparando. De acordo com o site Trading Economics, o preço do megawatt estava 19 euros no ano passado e chegou a bater 700 euros em agosto deste ano e agora está em aproximadamente 80 euros. Como a Alemanha acabou entrando em tal areia movediça?

Podemos culpar Merkel, que deveria ter visto que Putin estava levando a Rússia em uma direção autoritária quando anunciou seu retorno à presidência em 2011. Após a invasão russa da Ucrânia em 2014, a Alemanha não fez nenhum movimento para parar de importar gás russo e, embora Merkel tenha ameaçado introduzir sanções comerciais paralisantes, a indústria alemã a convenceu a não fazer nada. Porém, o buraco é mais embaixo. Sim, Merkel é culpada, mas ela foi “só” a herdeira de uma estupidez que começou há 50 anos, quando a Ostpolitik se baseou na falácia de que países autoritários podem ser transformados por meio do comércio.

A pior parte disso tudo é que a Alemanha foi avisada – por muita gente e por muitas vezes. Kissinger escreveu a Richard Nixon em 9 de abril de 1970: “Poucas pessoas, seja na Alemanha ou no exterior, veem Brandt como se vendendo para o Leste; o que preocupa as pessoas é se ele pode controlar o que começou.” Ao longo de 50 anos, a Alemanha travou inúmeras batalhas com uma série de presidentes dos EUA sobre sua crescente dependência da energia russa (para quem não se lembra do discurso do Trump na ONU, o link estará nas fontes). Por sua vez, os alemães viam a visão anticomunista dos americanos como ingênua e acreditavam que somente eles entendiam a URSS.

Jimmy Carter e o chanceler alemão Helmut Schmidt tinham pouco respeito um pelo outro. Carter achava Schmidt mal-humorado, enquanto o chanceler, em sua autobiografia, definiu Carter como um pregador idealista, que não sabia nada da Europa e “simplesmente não era grande o suficiente para o jogo”. Os dois líderes não apenas se criticaram pessoalmente, eles discordaram em questões de fundo – incluindo como proteger os direitos humanos na Rússia.

Como muitos alemães daquela época, Schmidt carregava um profundo sentimento de vergonha decorrente de lembranças dolorosas da guerra (foi da Luftwaffe e serviu no front oriental na IIGM). Ele também acreditava que a estabilidade do bloco oriental era do interesse da Alemanha Ocidental, dada a capacidade nuclear da Rússia. Em sua autobiografia, ele escreveu que queria desenvolver relações comerciais com a Rússia, a fim de promover “uma maior dependência soviética dos suprimentos europeus”, levando a “mais influência europeia” nas políticas de Moscou. A crise do petróleo de 1973 fez Schmidt se convencer de que a União Soviética representava um fornecedor de energia mais confiável para a Alemanha do que os países do Oriente Médio.

Já Carter via a paralisação do comércio como a melhor maneira de influenciar os soviéticos. Em julho de 1978, respondendo à prisão de Moscou de dois dissidentes soviéticos, Aleksandr Ginzburg e Anatoly Shcharansky, Carter restringiu as exportações americanas de tecnologia para a exploração e desenvolvimento das indústrias soviéticas de petróleo e gás natural.

Além do Estado alemão, os empresários do país também eram entusiastas da compra de energia russa. Mesmo após a invasão soviética do Afeganistão em 1979, uma grande delegação empresarial alemã realizou uma visita a Moscou em 1980. Os soviéticos (Soyuzgazexport) e os europeus (Ruhrgas e Gaz de France) concluíram as negociações sobre um novo gasoduto de 4.500 km – saindo do campo de Urengoy na Sibéria. Com tal acordo, a dependência da Alemanha do gás russo iria aumentar de 15% para 30%. Quando os ministros alemães revisaram as implicações de segurança, concluíram que não havia perigo de a Rússia usar mal seu potencial domínio. O raciocínio deles era simples. “A interrupção de longo prazo seria contra o interesse próprio da União Soviética”, decidiu o ministério.

“Aqueles que negociam uns com os outros não atiram uns nos outros”, disse Schmidt em um telefonema com Carter ao justificar seu apoio ao oleoduto. Bobagem, claro. Antes da Primeira Guerra estourar os dois maiores parceiros comerciais da Alemanha eram Rússia e Inglaterra que, por sua vez, tinham na Alemanha seus maiores “sócios”.

Se as coisas já eram difíceis com Carter, quando Reagan assume a Casa Branca a coisa vira um desastre. Quando a URSS impôs uma lei marcial na Polônia em 82, os EUA responderam à intervenção soviética proibindo as empresas americanas de ajudar no oleoduto. No verão de 1982, Reagan tentou forçar as empresas europeias a parar de trabalhar no oleoduto, impondo sanções secundárias sobre elas. Hoje tais sanções são um lugar-comum no arsenal da política externa dos EUA, particularmente em relação ao Irã, mas antes eram vistas como uma incursão na soberania europeia. Thatcher protestou dizendo ao Parlamento que “é errado” que “uma nação muito poderosa [impeça] que os contratos existentes sejam cumpridos”.

Na virada do século, os defensores da mudança por meio do comércio estavam em seu auge. O Muro caiu e a Alemanha estava unida. O chanceler Schröder, com crescente confiança, promoveu a ideia de uma parceria estratégica com a Rússia e convidou o novo presidente russo, Vladimir Putin, para discursar no Bundestag em 2001, onde conquistou o público ao fazer o discurso em alemão fluente e declarando que “a guerra fria acabou”. Schröder, na época do discurso de Putin, viu uma perfeita confluência de interesses entre Europa, Alemanha e Rússia: paz, estabilidade, multilateralismo e crescimento econômico. Schröder estava convencido de que Putin queria “transformar a Rússia em uma democracia”.

Foi nessa época que começou a construção do Nord Stream 1. Se antes os gasodutos passavam pelos países do Leste Europeu, agora não mais: a conexão será direta, via mar Báltico. Desta vez, os protestos contra o oleoduto não vieram apenas dos EUA, mas dos estados que haviam emergido recentemente do domínio soviético, como Polônia e Lituânia. Radosław Sikorski, então ministro da Defesa da Polônia, notoriamente comparou o plano ao pacto de não agressão Molotov-Ribbentrop de 1939 entre a Alemanha nazista e a União Soviética, que abriu caminho para a invasão da Polônia. Nem mesmo a invasão da Crimeia em 2014 paralisou os planos de integração entre Alemanha e Rússia, e em 2015 foi assinado um acordo para o Nord Stream 2. O resto da história nós sabemos.

Há algumas teorias sobre os motivos que levaram a ignorar o conselho de tanta gente sobre os perigos da dependência da energia russa. Não vou falar todas aqui porque a maioria me parece bobagem. Tudo se resume à combinação de dois fatores: a energia russa ser barata e a resistência à energia nuclear. Se nenhum desses dois existisse, tal dependência não ocorreria.

Agora a ironia é dolorosa. O historiador Timothy Snyder definiu bem a situação: “Durante trinta anos, os alemães deram palestras aos ucranianos sobre o fascismo. Quando o fascismo realmente chegou, os alemães o financiaram e os ucranianos morreram lutando contra ele.”

* Artigo publicado originalmente por Conrado Abreu na página Liberalismo Brazuca no Facebook.

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