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Campeonato Brasileiro e a justa medida da pena na visão liberal

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Tivemos ontem o julgamento em primeira instância do caso do jogador escalado irregularmente pela Portuguesa, que decretou a sua queda para a segunda divisão e a manutenção do Fluminense na Série A.

Este blog já teve uma opinião a respeito do tema, emitida pelo meu amigo João Luiz Mauad, que eu recomendo avivamente, mas que eu discordo levemente pelas razões a seguir.

Mauad argumenta que o “rule of law” (cuja tradução mais usada nas faculdades de direito do Brasil é “Estado de Direito”) é um componente essencial para a estabilidade das relações sociais e que não se pode ignorar regulamentos em prol de um “bom senso” (usando aqui o termo de Helio Schwartsman). Esse é um argumento parcialmente verdadeiro.

O Direito, dentro de uma ótica liberal, funciona a partir de um binômio que se complementam para fundamentar a estabilização da sociedade: a justiça e a segurança jurídica. Mas mesmo tempo que se complementam para um Direito efetivo tanto na forma quanto no conteúdo, eles também podem divergir pontualmente.

Esse conflito pode ocorrer em várias áreas do Direito, mas é particularmente cruel quando ocorre no campo do Direito Penal. O Direito Penal é feito por homens, e homens podem errar tanto na elaboração do Direito (poder legislativo) quanto na sua aplicação (poder judiciário). A democracia e o Estado de Direito exigem um sistema de freios e contrapesos entre seus poderes justamente para, dentro de uma ideia de falibilidade humana, que possa haver uma correção interna sem que haja a necessidade de uma revolução, principalmente através do método de tentativa e erro.

Essa postura humilde do liberal frente à sua falibilidade é que criou um sistema de garantias individuais penais, como o habeas corpus, o contraditório, a ampla defesa e o direito de ser julgado em um tribunal previamente constituído com leis previamente conhecidas.

A pena é outro assunto particularmente sensível na seara do direito penal pois, ao contrário do direito civil, quase sempre a pena não substitui ou recompõe o dano, especialmente quando se trata de lesões corporais ou mortes.

O liberal, em regra, vai sempre buscar uma justiça que recomponha o “status quo ante” da ação danosa, ou seja, tentará restituir o dano causado, acrescido de uma compensação pelo tempo gasto. Alguns liberais chegam até a admitir o caráter repressivo da pena, ou seja, admitem que a pena tem um papel de estimular pessoas a não praticar danos. Embora essa última parte esteja longe de ser uma unanimidade dentro do liberalismo, vamos aceitá-la para fins argumentativos.

Qual o limite repressivo da pena? A Lei de Talião, que é caricatura mais evidente de uma lei altamente repressora, mesmo dentro dessa linha de raciocínio buscava aplicar penas proporcionais ao crime, preferencialmente retaliando na mesma medida. No máximo, uma restituição em dobro do dano (se alguém roubou x, devolve-se o x e se entrega mais x, perfazendo uma punição de 2x).

E estamos falando aqui do máximo de restituição possível em um sistema retaliador supremo. Qualquer punição acima do dobro do dano causado é visto como excessivamente punitivo em qualquer lugar do mundo civilizado.

Agora vamos para o exemplo concreto, o Campeonato Brasileiro.

A Portuguesa chegou à última rodada com 47 pontos, e com remotíssimas chances de queda, sendo IMPOSSÍVEL de ser alcançada pelo Fluminense. Escalou irregularmente um jogador por 18 minutos, ganhou um ponto e chegou a 48.

A Portuguesa praticou um crime desportivo culposo, sendo negligente ao desconhecer o impedimento do jogador de entrar em campo. Essa negligência já poderia ser descaracterizada dado o fato de que a CBF não publiciza de maneira ampla tais fatos, o que poderia ocasionar uma co-culpabilidade entre a Portuguesa e a CBF, o que resultaria numa diminuição de pena em um sistema punitivo justo.

Se estamos falando a partir de uma base de segurança jurídica, que é o argumento favorito dos defensores da aplicabilidade da pena máxima à Portuguesa, há de se falar que a própria Portuguesa foi vítima da insegurança jurídica proporcionada pela CBF ao não ter um sistema público e informatizado sobre impedimentos de jogadores.

Essa insegurança fica manifestamente clara pelas notícias dos últimos dias, em que se aventou a possibilidade de punição a Botafogo, Corinthians, Cruzeiro (que foi julgado e condenado apenas a multa) e Flamengo (este condenado na mesma medida da Portuguesa).

Punir a Portuguesa no total da pena por um erro cuja culpa é dela sim, mas não isoladamente, pois em concorrência com a CBF, é legitimar o sistema de insegurança jurídica da CBF. Ao invés disso, em nome de uma segurança jurídica que não existe, rebaixa-se um clube que já não tinha como ser alcançado pelo clube beneficiado pela punição.

No que tange à justiça, punir a Portuguesa com a perda de 4 pontos, punição essa quatro vezes maior que o dano cometido, é totalmente desproporcional a qualquer medida de razoabilidade, especialmente se essa punição resulta em queda de divisão. Nem mesmo a Lei de Talião comportaria tamanha desproporcionalidade.

Fazendo uma analogia a um caso penal típico, é como se numa sexta-feira o Estado decidisse que vender pirulitos é crime, não tivesse um sistema seguro de publicização dessa regra, no domingo um vendedor de pirulitos vendesse 500 reais em pirulitos e, como punição, fosse obrigado a pagar ao Estado 2 mil reais, sendo que esse dinheiro seria necessário para comprar um remédio que manteria o vendedor vivo.

O julgamento de ontem nada teve a ver com justiça e nada teve a ver também com segurança jurídica. Segurança jurídica só faz sentido na medida em que contém justiça, e justiça só faz sentido na medida em que contém segurança jurídica. Não custa lembrar que muitos regimes totalitários eram grandes defensores da segurança jurídica, desde que o sistema jurídico “seguro” fosse de sua conveniência.

Por fim, não custa lembrar, o homem virtuoso se revela no momento em que se pode escolher entre a virtude e o vício, entre a justiça e a injustiça. Se a única escolha disponível for a virtude, não há valor nessa escolha. Pela terceira vez em menos de vinte anos, o Fluminense pode escolher entre a virtude e o vício. Em todas as vezes, a escolha não foi feliz, o que não condiz com a propalada grandeza do clube.

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Bernardo Santoro

Bernardo Santoro

Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Mestrando em Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política das Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal.

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